A “Lancet” é a mais respeitada revista médica do mundo – e não apenas pela antiguidade, pois existe, na Inglaterra, desde 1823, há quase 200 anos, quando o Brasil independente tinha apenas um ano de nascido. Há somente uma outra publicação médica no mundo que, na opinião da maioria dos médicos, lhe é comparável, o “New England Journal of Medicine”, fundado em 1812 nos EUA.
Foi na “Lancet” que os médicos chineses publicaram seu estudo retrospectivo da epidemia de COVID-19 em Wuhan (v. Clinical course and risk factors for mortality of adult inpatients with COVID-19 in Wuhan, China: a retrospective cohort study, The Lancet, 11/03/2020).
No sábado (28/03), a “Lancet” publicou editorial sobre o enfrentamento da pandemia, mostrando as dificuldades a superar – e com uma única citação pelo nome, entre aqueles governantes que, nessa epidemia, se tornaram um perigo para o seu país, e, na opinião da “Lancet”, ainda que isso não seja dito desta forma direta, para o mundo: Jair Bolsonaro.
No que a revista – isto é, os profissionais que a fazem – tem razão. O que nós enfrentamos é uma luta de toda a espécie humana. É verdade que esta se organiza em nações – mas o coronavírus ignora as fronteiras, políticas ou étnicas. Por isso mesmo, necessitamos de governo nacional, assim como da iluminação da ciência e da solidariedade nacional e internacional.
Abaixo, reproduzimos o editorial dessa importante revista médica.
(C.L.)
COVID-19: aprendendo com a experiência
(The Lancet, 28/03/2020)
Nas últimas duas semanas, a pandemia da doença causada pelo coronavírus 2019 (COVID-19) marchou implacavelmente para o ocidente. Em 13 de março, a OMS disse que a Europa era, agora, o centro da pandemia. Alguns dias depois, as mortes na Itália superaram as da China. O Irã e a Espanha também registraram mais de 1.000 mortes em 23 de março, e muitos outros países europeus, e os EUA, relataram um número crescente de casos, anunciando uma iminente onda de mortes.
Seguindo a expansão do COVID-19, foram tomadas uma série de medidas dramáticas de contenção, que refletem a escala da ameaça representada pela pandemia. Os bloqueios, que pareciam draconianos, quando adotados em Wuhan, há apenas dois meses, agora estão se tornando comuns.
No entanto, muitos países ainda não seguem as recomendações claras da OMS sobre contenção (testes generalizados, quarentena de casos, rastreamento de contatos e distanciamento social), e, em vez disso, implementaram medidas aleatórias, com alguns tentando evitar as mortes apenas protegendo os idosos e aqueles com determinadas condições de saúde.
A lenta resposta inicial à epidemia em países como o Reino Unido, os EUA e a Suécia agora aparece, cada vez mais, como uma indigente avaliação. Enquanto governantes lutam para adquirir testes de diagnóstico, equipamentos de proteção individual e respiradores para hospitais sobrecarregados, há um crescente sentimento de ira. A colcha de remendos das reações iniciais nocivas de muitos governantes, da negação e do otimismo equivocado à aceitação passiva de mortes em larga escala, foi justificada por palavras que não têm precedentes.
Mas isso esconde o dano causado pela SARS, pela síndrome respiratória do Oriente Médio, pelo Ebola, pelo Zika, pela pandemia de influenza H1N1 de 2009, e uma aceitação generalizada, entre os cientistas, de que uma pandemia um dia ocorreria. Hong Kong e Coreia do Sul foram testadas por essas infecções emergentes anteriores, o que as deixou mais capazes de ampliar os testes e o rastreamento de contatos.
Em todo o mundo, muitas pessoas estão com medo, raiva, insegurança e falta de confiança em seus governantes nacionais. Mas, ao lado desses sentimentos sombrios, surgiram imagens de solidariedade. Os profissionais de saúde demonstraram um compromisso incrível com suas comunidades e responderam à ameaça identificando-se com elas e com a determinação de combater o vírus, apesar das condições desafiadoras e, às vezes, perigosas. Vizinhos se organizaram para apoiar as pessoas vulneráveis; as empresas e os governos nacionais têm intensificado providências para oferecer apoio a quem precisa e fortalecer os serviços de previdência social e saúde. A pandemia também trouxe exemplos de solidariedade internacional, com o compartilhamento de recursos, de informações e de conhecimentos dos países que foram antes atingidos pela epidemia ou que tiveram melhores resultados no controle da disseminação. A experiência da China será crucial para entender como levantar as restrições com segurança.
Inevitavelmente, a próxima onda de infecções atingirá a África e a América Latina. O Africa CDC [Africa Centres for Disease Control and Prevention] registrou casos em 41 países; Brasil, México e Peru já relataram centenas ou milhares de casos. A maioria dos países africanos ou latino-americanos possui apenas dezenas ou centenas de respiradores, e muitos estabelecimentos de saúde não possuem nem mesmo terapias básicas, como o oxigênio. Os sistemas de saúde frágeis logo serão sobrecarregados, se a infecção se espalhar amplamente.
As pessoas que vivem em áreas urbanas pobres e superlotadas são especialmente vulneráveis; muitos não têm saneamento básico, não podem se auto-isolar e não têm plano de saúde ou previdência social. Em resposta à ameaça, a OMS lançou o Fundo de Resposta à Solidariedade COVID-19, que arrecadou mais de US$ 70 milhões, e algumas organizações regionais adotaram fortes ações proativas, compartilhando informações e recebendo doações de kits de testes e suprimentos médicos.
Muitos governos nacionais responderam rapidamente, mas muitos ainda não levam a sério a ameaça do COVID-19 – por exemplo, ignorando a recomendação da OMS para evitar aglomerações de pessoas. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, tem sido fortemente criticado por especialistas em saúde e enfrenta uma reação pública cada vez maior, pelo que é visto como sua débil resposta à situação.
Além da profunda aflição, sentida pelo fato de muitos países experimentarem um pico de casos ou se prepararem para isso, também há um entendimento crescente sobre a importância do coletivo e da comunidade. A Europa e os EUA mostraram que adiar a preparação do combate ao coronavírus, na esperança de que ele seja contido em outro lugar, ou cultivar o fatalismo, não é eficaz.
É imperativo que a comunidade mundial aproveite esse espírito de cooperação para evitar a repetição desse erro nos países mais vulneráveis. A OMS forneceu recomendações consistentes, claras e baseadas em evidências; comunicou-as efetivamente; e tratou com sagacidade as situações políticas complicadas.
Não falta ao mundo uma liderança global eficaz. O papel central desempenhado pela OMS na coordenação da resposta global deve continuar e os países e doadores precisam apoiar a OMS nesses esforços.
O original, em inglês, pode ser lido em COVID-19: learning from experience.