(HP, 22/07/2016)
nenhum discurso,
nenhuma proclamação sobre a cultura
nos eximirá de nossas tarefas fundamentais,
que são a libertação do território nacional,
uma luta de todos os instantes contra
as formas novas do colonialismo
e uma recusa obstinada
a nos admirarmos reciprocamente no alto
No último dia 20 transcorreu o nonagésimo primeiro aniversário de Frantz Fanon. Nascido na Martinica, Fanon faleceu jovem, aos 36 anos. Mas teve tempo de se tornar um dos mais importantes pensadores da libertação nacional dos países da África – e, a rigor, de todo o mundo.
Fez parte dos “franceses livres” durante a II Guerra Mundial, no combate ao nazismo. Psiquiatra, depois de publicar uma candente denúncia do racismo (“Pele Negra, Máscaras Brancas”, de 1952), tornou-se chefe de um hospital na Argélia. Quando irrompe a luta pela independência argelina, soma-se à Frente de Libertação Nacional.
Expulso pelos franceses da Argélia, em 1957, passa a residir na Tunísia, continuando a luta no exílio. Nessa época, sobrevive a vários atentados organizados pelos colonialistas franceses. Em 1961, alguns meses antes da libertação completa da Argélia, Frantz Fanon faleceu de leucemia. Os trechos que publicamos abaixo são de seu livro mais importante, “Les Damnés de la Terre”, na tradução de José Laurênio de Melo para a editora Civilização Brasileira (“Os Condenados da Terra”), publicada em 1968.
C.L.
FRANTZ FANON
Nos países subdesenvolvidos as gerações precedentes ao mesmo tempo resistiram ao trabalho de erosão efetuado pelo colonialismo e prepararam o amadurecimento das lutas atuais. Precisamos perder o hábito, agora que estamos em pleno combate, de minimizar a ação de nossos pais ou de fingir incompreensão diante de seu silêncio ou de sua passividade. Eles se bateram como puderam, com as armas que então possuíam, e se os ecos de sua luta não repercutiram na arena internacional, cumpre ver a razão disso menos na ausência de heroísmo que numa situação internacional fundamentalmente diferente. Foi necessário que mais de um colonizado dissesse “isso não pode continuar”, foi necessário que mais de uma tribo se rebelasse, foi necessário mais de um levante sufocado, mais de uma manifestação reprimida para que pudéssemos hoje erguer a cabeça com esta confiança na vitória.
Quando refletimos nos esforços empregados para provocar a alienação cultural tão característica da época colonial, compreendemos que nada foi feito ao acaso e que o resultado global pretendido pelo domínio colonial era convencer os indígenas de que o colonialismo devia arrancá-los das trevas. O resultado, conscientemente procurado pelo colonialismo, era meter na cabeça dos indígenas que a partida do colono significaria para eles o retorno à barbárie, ao aviltamento, à animalização. No plano do inconsciente, o colonialismo não pretendia ser visto pelo indígena como uma mãe doce e bondosa que protege o filho contra um ambiente hostil, mas sob a forma de uma mãe que a todo momento impede um filho fundamentalmente perverso de se suicidar, de dar livre curso a seus instintos maléficos. A mãe colonial defende o filho contra ele mesmo, contra seu ego, contra sua fisiologia, sua biologia, sua infelicidade ontológica.
O colonialismo não julgou necessário perder tempo em negar umas após outras as culturas das diferentes nações. Por isso a resposta do colonizado será naturalmente continental. Na África, a literatura colonizada dos últimos vinte anos não é uma literatura nacional mas uma literatura de negros. O conceito de negritude, por exemplo, era a antítese afetiva senão lógica desse insulto que o homem branco fazia à humanidade. Essa negritude exacerbada contra o desprezo do branco revelou-se em certos setores apenas capaz de suspender interdições e maldições. Uma vez que se viam confrontados antes de tudo com o ostracismo global, o desprezo sincrético do dominador, os intelectuais guineenses ou quenianos reagiam admirando ou cantando a si mesmos. À afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana.
Vimos que os brancos estavam acostumados a por todos os negros no mesmo saco. No decorrer do primeiro congresso da Sociedade Africana de Cultura, realizado em Paris em 1956, os negros americanos espontaneamente refletiram sobre seus problemas no mesmo plano que os dos seus congêneres africanos. Os homens de cultura africanos, ao falar em civilizações africanas, outorgavam um estado civil razoável aos antigos escravos. Mas, pouco a pouco, os negros americanos foram percebendo que os problemas existenciais que se colocavam diante deles não se assemelhavam àqueles com que defrontavam os negros africanos. Os negros de Chicago só se pareciam com os da Nigéria e Tanganica na exata medida em que todos eles se definiam em relação aos brancos. Mas passados os primeiros confrontos, uma vez tranquilizada a subjetividade, os negros americanos perceberam que os problemas objetivos eram fundamentalmente heterogêneos. Assim, durante o segundo congresso da Sociedade Africana de Cultura os negros americanos deliberaram criar uma Sociedade Americana dos homens de cultura negros.
A cultura negra, a cultura negro-africana se fragmentou porque os homens que se propunham encarná-la compreenderam que toda cultura é antes de tudo nacional e que os problemas que mantinham Richard Wright ou Langston Hughes em estado de alerta eram fundamentalmente diferentes daqueles que poderiam desafiar Leopold Senghor ou Jomo Kenyatta.
Bater-se pela cultura nacional é em primeiro lugar bater-se pela libertação da nação, matriz material a partir da qual a cultura se torna possível. Não há um combate cultural que se desenrole ao lado do combate popular. Por exemplo, todos esses homens e todas essas mulheres que lutam com os punhos nus contra o colonialismo francês na Argélia não são estranhos à cultura nacional argelina. A cultura nacional argelina toma corpo e consistência no decurso desses combates, na cadeia, diante da guilhotina, nos quartéis franceses atacados e destruídos.
A cultura nacional não é o folclore onde um populismo abstrato julgou descobrir a verdade do povo. Não é a massa sedimentada de gestos puros, isto é, cada vez menos vinculados à realidade presente do povo. A cultura nacional é o conjunto dos esforços feitos por um povo no plano do pensamento para descrever, justificar e cantar a ação através da qual o povo se constituiu e se manteve. Nos países subdesenvolvidos, a cultura nacional deve portanto situar-se no centro mesmo da luta de libertação empreendida por esses países.
Digo que nenhum discurso, nenhuma proclamação sobre a cultura nos eximirá de nossas tarefas fundamentais, que são a libertação do território nacional, uma luta de todos os instantes contra as formas novas do colonialismo e uma recusa obstinada a nos admirarmos reciprocamente no alto.