(HP, 18/11/2016)
O artigo que publicamos hoje foi escrito pelo juiz federal Sergio Fernando Moro em 2004, portanto, 10 anos antes da Operação Lava Jato.
No ano anterior, Moro começara a trabalhar no caso Banestado, um vasto esquema de evasão de divisas, sonegação, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Ainda que 97 pessoas tenham sido condenadas, o fato é que a operação abafa, que juntou próceres ex-governistas e neo-governistas, acabou por paralisar as investigações, sobretudo após o afastamento do delegado José Francisco de Castilho Neto.
No artigo, Moro expõe seus pontos de vista sobre a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite), ocorrida na Itália – e as perspectivas para o combate à corrupção no Brasil.
O mais interessante do texto – além do fato, já conhecido, de que Moro tem um domínio da linguagem escrita incomum entre os juristas atuais – é que seu autor examina a questão sempre do ponto de vista da democracia. Essa é a questão de fundo que lhe interessa – e ele não superestima o papel da ação judicial na renovação dos costumes da sociedade. É verdade que também não subestima esse papel, mas sempre concede a berlinda, o primeiro plano, à mobilização da sociedade.
Os pontos de contato são muitos com a situação atual no Brasil. Inclusive as tentativas de abafar a Operação Mãos Limpas (até as tentativas de alterar leis para proteger ladrões) são quase idênticas às aventuras (e, sobretudo, às desventuras) de Renan, Gilmar Mendes, do PT, etc.
Que o leitor aproveite a condensação que fizemos do artigo de Moro, publicado na Revista do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), nº 26, jul./set. 2004, p. 56-62.
C.L.
SERGIO FERNANDO MORO
A denominada “operação mani pulite” (mãos limpas) iniciou-se em meados de fevereiro de 1992, com a prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo de diretor de instituição filantrópica de Milão (Pio Albergo Trivulzio [entidade pública, pertencente ao município de Milão]).
Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros.
A ação judiciária revelou que a vida política e administrativa de Milão, e da própria Itália, estava mergulhada na corrupção, com o pagamento de propina para concessão de todo contrato público, o que levou à utilização da expressão “Tangentopoli” ou “Bribesville” (o equivalente à “cidade da propina”) para designar a situação.
A operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente.
Por certo, tem ela os seus críticos, especialmente após dez anos. Dez suspeitos cometeram suicídio. Silvio Berlusconi, magnata da mídia e um dos investigados, hoje ocupa o cargo de primeiro-ministro da Itália.
A QUEDA
As investigações mani pulite minaram a autoridade dos chefes políticos – como Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes da DC e do PSI – e os mais influentes centros de poder, cortando sua capacidade de punir aqueles que quebravam o pacto do silêncio.
Não faltaram tentativas do poder político interrompê-la. Por exemplo, o governo do primeiro-ministro Giuliano Amato [PSI] tentou, em março de 1993 e por decreto legislativo, descriminalizar a realização de doações ilegais para partidos políticos.
A reação negativa da opinião pública, com greves escolares e passeatas estudantis, foi essencial para a rejeição da medida legislativa.
Da mesma forma, quando o Parlamento italiano, em abril de 1993, recusou parcialmente autorização para que Bettino Craxi fosse processado criminalmente, houve intensa reação da opinião pública. Um dos protestos populares assumiu ares violentos. Uma multidão reunida em frente à residência de Craxi arremessou moedas e pedras quando ele deixou sua casa para atender uma entrevista na televisão.
Em julho de 1994, novo decreto legislativo, exarado pelo governo do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, aboliu a prisão pré-julgamento para categorias específicas de crimes, inclusive para corrupção ativa e passiva.
Novamente, a reação popular, com vigílias perante as Cortes judiciais milanesas, foi essencial para a rejeição da medida.
Na verdade, é ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações.
Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial.
A coragem de muitos juízes, que ocasionalmente pagaram com suas vidas para a defesa da democracia italiana, era contrastado com as conspirações de uma classe política dividida e a magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública. No final dos anos oitenta e na década de noventa, havia ainda um enfraquecimento na atitude de cumplicidade de alguns juízes com as forças políticas e que havia retardado a ação judicial.
A OPERAÇÃO
Iniciou-se com a prisão de Mário Chiesa, que devia seu cargo administrativo ao Partido Socialista Italiano e foi preso com propina no bolso, cerca de sete mil liras (US$ 4.000,00), que teria recebido de uma companhia de limpeza. Posteriormente, mais de quinze bilhões de liras teriam sido arrestadas em contas bancárias, imóveis e títulos públicos de sua propriedade. Por volta do final de março de 1992, Chiesa, recolhido na prisão de São Vittore de Milão, começou a confessar.
Chiesa exigiria o pagamento de propina em cada contrato celebrado pela instituição filantrópica e a utilizaria para o financiamento de suas ambições políticas e de seu Partido, a fim de manter o cargo junto à instituição filantrópica.
Chiesa, que mantinha relações importantes com o líder do Partido Socialista, Betino Craxi, revelou toda uma trama de relações corruptas na cidade de Milão. Sua colaboração inicial gerou um círculo virtuoso, que levou a novas investigações, com outras prisões e confissões.
A estratégia de ação adotada pelos magistrados incentivava os investigados a colaborar com a Justiça.
Há quem possa ver com maus olhos tal estratégia de ação e a própria delação premiada. Cabem aqui alguns comentários.
Não se prende com o objetivo de alcançar confissões. Prende-se quando estão presentes os pressupostos de decretação de uma prisão antes do julgamento. Caso isso ocorra, não há qualquer óbice moral em tentar-se obter do investigado ou do acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito. O próprio isolamento do investigado faz-se apenas na medida em que permitido pela lei. O interrogatório em separado, por sua vez, é técnica de investigação que encontra amparo inclusive na legislação pátria (art. 189, Código de Processo Penal [atualmente esta previsão corresponde ao art. 191 do CPP: “Havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente”).
Um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio.
Registre-se que crimes contra a Administração Pública são cometidos às ocultas e, na maioria das vezes, com artifícios complexos, sendo difícil desvelá-los sem a colaboração de um dos participantes.
Usualmente é ainda levantado outro óbice à delação premiada, qual seja, a sua reduzida confiabilidade. Um investigado ou acusado submetido a uma situação de pressão poderia, para livrar-se dela, mentir a respeito do envolvimento de terceiros em crime. Entretanto, cabível aqui não é a condenação do uso da delação premiada, mas sim tomar-se o devido cuidado para se obter a confirmação dos fatos por ela revelados por meio de fontes independentes de prova.
Por certo, a confissão ou delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando este se encontrar em uma situação difícil. De nada adianta esperar ato da espécie se não existem boas provas contra o acusado ou se este não tem motivos para acreditar na eficácia da persecução penal. A prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais morosos. Desde que presentes os seus pressupostos, não há óbice moral em submeter o investigado a ela.
Não há motivo para o investigado confessar e tentar obter algum prêmio em decorrência disso se há poucas perspectivas de que será submetido no presente ou no futuro próximo, caso não confesse, a uma ação judicial eficaz.
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.
Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios.
É oportuno destacar o ocorrido com um dos principais investigados ou talvez o principal: Bettino Craxi. Líder do PSI e ex-primeiro-ministro, foi um dos principais alvos da operação mãos limpas. Craxi, já ameaçado pelas investigações, reconheceu cinicamente a prática disseminada das doações partidárias ilegais em famoso discurso no Parlamento italiano, em 3/7/1992.
“O que é necessário dizer e que, de todo modo, todo mundo sabe, é que a maior parte do financiamento da política é irregular ou ilegal. Os partidos e aqueles que dependem da máquina partidária (grande, média ou pequena), de jornais, de propaganda, atividades associativas ou promocionais… têm recorrido a recursos adicionais irregulares. Se a maior parte disso deve ser considerada pura e simplesmente criminosa, então a maior parte do sistema político é um sistema criminoso”.
Em dezembro de 1992, Craxi recebeu seu primeiro avviso di garanzia, um documento de dezoito páginas, no qual era acusado de corrupção, extorsão e violação da lei reguladora do financiamento de campanhas. A acusação tinha por base, entre outras provas, a confissão de Salvatore Ligresti, preso em julho de 1992, de que o grupo empresarial de sua propriedade teria pago aproximadamente US$ 500.000,00 desde 1985 ao PSI.
Na segunda semana de janeiro de 1993, Craxi recebeu o segundo avviso di garanzia, com acusações de que a propina teria também como beneficiário o próprio Craxi, e não só o PSI. Os pagamentos seriam feitos a Silvano Larini, que seria amigo próximo de Craxi. Larini e Filippo Panseca seriam os proprietários da empresa da qual Craxi alugaria suas mansões opulentas em Como e Hammamet [na Tunísia].
Larini entregou-se à polícia em fevereiro de 1993 e admitiu que agiu como intermediário entre Craxi e a comunidade empresarial de Milão para pagamento de propina.
Craxi ainda recebeu novos avviso de garanzia antes de renunciar ao posto de líder do PSI em fevereiro de 1993.
Também viu seu nome envolvido no escândalo da Enimont. A Enimont era empresa química formada por joint venture da ENI (Ente Nazionale Idrocarburi), a empresa petrolífera estatal italiana, e a Montedision, empresa química subsidiária do grupo Ferruzi (considerado o segundo maior da Itália após a FIAT). Pelos termos do acordo, o grupo privado não poderia possuir mais do que 40% das ações. No entanto, Raul Gardini, líder do grupo Ferruzi, quebrou o pacto e tentou obter agressivamente o controle da Enimont, encontrando resistência política. Em novembro de 1990, atendendo a pedido da Enimont, foram suspensas judicialmente todas as negociações de ações da empresa e nomeado como interventor pessoa ligada a Craxi. Bloqueada em suas aspirações, a Montedision concordou em vender ao Governo sua parte no negócio por aproximadamente dois bilhões de dólares. O preço, superestimado (cada ação, com o valor de 1,374 lira, foi adquirida pela ENI por 1,540 lira), tinha uma razão de ser, o pagamento de cerca de cem milhões de dólares a vários líderes políticos, dentre eles Craxi. A propina foi paga por Gardini com o auxílio de Sergio Cusani, consultor financeiro próximo a Craxi e outros políticos. Em julho de 1993, Gardini, ciente de que a fraude estava para ser revelada pela operação mani pulite, suicidou-se. Cusani foi preso também em julho e, em seu julgamento, foram ouvidos como testemunhas vários políticos que teriam recebido propina. Alguns deles, como Carlos Vizzini, Giorgio Malfa e Cláudio Martelli, este último ex-ministro da Justiça, admitiram o fato, ou seja, o recebimento da propina.
A operação mani pulite também revelou que a ENI funcionaria como uma fonte de financiamento ilegal para os partidos. Florio Fiorini e Gabriele Cagliari, diretor financeiro e presidente da empresa, respectivamente, confessaram, após suas prisões em 1993, que a gigante estatal teria efetuado pagamentos mensais aos principais partidos políticos durante anos.
Bettino Craxi, diante das acusações e posteriores condenações, autoexilou-se, em 1994, na Tunísia, onde veio a falecer no ano 2000.
De particular relevo é a figura de Giulio Andreotti, líder da Democracia Cristã (DC) e ex-primeiro-ministro, processado pela Procuradoria de Palermo em 1993, por associação à máfia.
Salvo Lima, que era representante da DC na Sicília e pessoa de confiança de Andreotti, possuía ligações comprovadas com a máfia, sendo improvável que Andreotti desconhecesse tais fatos. Mafiosos “arrependidos” e colaboradores da Justiça, como Tommaso Buscetta, revelaram encontros entre o ex-primeiro ministro e mafiosos, inclusive com o chefe Toto Riina.
CONCLUSÃO
Uma ação judicial bastante eficaz, como foi o caso, pode no máximo interromper o ciclo ascendente da corrupção. Não é crível que, por si só, possa eliminá-la, especialmente se não forem atacadas as suas causas estruturais.
Não deixa ainda de ser um símbolo das limitações da operação mani pulite o cenário atual da política italiana, com o cargo de primeiro-ministro sendo ocupado por Silvio Berlusconi. Não obstante, o próprio Berlusconi figura desde 1994 entre os investigados pelos procuradores milaneses por suspeita de corrupção de agentes fiscais. Além disso, era amigo próximo de Craxi (este foi padrinho do segundo casamento de Berlusconi).
Talvez a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia. É esta quem define os limites e as possibilidades da ação judicial. Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados. Se isso não ocorrer, dificilmente encontrará êxito. Por certo, a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados. Somente investigações e ações exitosas podem angariá-la. Daí também o risco de divulgação prematura de informações acerca de investigações criminais. Caso as suspeitas não se confirmem, a credibilidade do órgão judicial pode ser abalada.
Além disso, a ação judicial não pode substituir a democracia no combate à corrupção. É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais próprios, atacar as causas estruturais da corrupção.
No Brasil, encontram-se presentes várias das condições institucionais necessárias para a realização de ação judicial semelhante. Assim como na Itália, a classe política não goza de grande prestígio junto à população, sendo grande a frustração pelas promessas não-cumpridas após a restauração democrática. Por outro lado, a magistratura e o Ministério Público brasileiros gozam de significativa independência formal frente ao poder político. Os juízes e os procuradores da República ingressam na carreira mediante concurso público, são vitalícios e não podem ser removidos do cargo contra a sua vontade.
O destaque negativo é o acesso aos órgãos superiores, mais dependentes de fatores políticos. Destaque também negativo merece a concessão, por lei, de foro especial a determinadas autoridades públicas, como deputados e ministros, a pretexto de protegê-los durante o exercício do cargo. O pretexto não parece coerente com as modificações decorrentes da controvertida Lei nº 10.628/2002, que estenderam o privilégio para período posterior ao exercício do cargo.
De todo modo, o principal problema parece ser ainda uma questão de mentalidade consubstanciada em uma prática judicial pouco rigorosa contra a corrupção, prática que permite tratar com maior rigor processual um pequeno traficante de entorpecente (por exemplo, as denominadas “mulas”) do que qualquer acusado por crime de “colarinho branco”, mesmo aquele responsável por danos milionários à sociedade.
A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta. Vencida a carga probatória necessária para a demonstração da culpa – aqui, sim, cabendo rigor na avaliação – não deveria existir maior óbice moral para a decretação da prisão, especialmente em casos de grande magnitude e nos quais não tenha havido a devolução do dinheiro público, máxime em país de recursos escassos.
No Brasil, a prisão pós-julgamento foi também tornada exceção, para ela exigindo-se, por construção jurisprudencial, os mesmos pressupostos da prisão pré-julgamento. Com efeito, a regra tornou-se o apelo em liberdade. Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade. É previsível que aquele já condenado a sentenças longas seja tentado a furtar-se ao cumprimento da lei penal, especialmente quando, como no Brasil, não é exigida a sua presença no julgamento (salvo nos processos submetidos ao júri). Jogos semânticos à parte, não há como equiparar a situação processual do acusado antes do julgamento com aquela após a condenação, ainda que esta não seja definitiva.
Registre-se que a construção excessivamente liberal brasileira não é um resultado necessário do princípio da presunção de inocência previsto no inc. LVII do art. 5º da Constituição Federal, pois este comporta várias alternativas interpretativas.
A corrupção tende a espalhar-se enquanto não encontrar barreiras eficazes. O político corrupto, por exemplo, tem vantagens competitivas no mercado político em relação ao honesto, por poder contar com recursos que este não tem. Da mesma forma, um ambiente viciado tende a reduzir os custos morais da corrupção, uma vez que o corrupto costuma enxergar o seu comportamento como um padrão e não a exceção.
O mais grave ainda é que a corrupção disseminada não coloca em xeque apenas a legitimidade do regime democrático (o que, por si só, já é bastante grave), mas também a do sistema judicial.