(HP, 07/12/2016)
Nesta página, publicamos, para informação dos nossos leitores, a exposição inicial do juiz federal Sérgio Fernando Moro, no Senado Federal, na última quinta-feira.
O debate foi bastante esclarecedor. Moro demonstrou que o projeto apadrinhado por Renan Calheiros e Gilmar Mendes, supostamente contra o “abuso de autoridade”, era mera forma de criminalizar magistrados, policiais e procuradores por cumprirem o seu dever de descobrir, provar e colocar ladrões da coisa pública na cadeia.
“Nunca quis estar acima da lei, mas sim cumprir a lei”, disse Moro. “Também acho que não posso ser acusado de abuso de autoridade, considerando que minhas decisões vêm sendo sufragadas pelas cortes recursais e cortes superiores – salvo se essas acusações são estendidas a essas cortes”.
Referindo-se à histérica fala do senador Lindbergh Faria (PT-RJ) na sessão, Moro alertou: “Eu fico preocupado sobre essa afirmação de que o projeto não tem nenhuma intenção de frear a Operação Lava Jato, que a Operação Lava Jato é sagrada. Não obstante, com todo o respeito ao eminente senador, fica claro aqui que se está afirmando que eu, na condução do caso, cometi abuso de autoridade e devo ser punido. Parece-me claro que a intenção que subjaz – não digo em relação a todos – é de que o Projeto de Lei de Abuso de Autoridade seja utilizado especificamente para criminalizar condutas de autoridades envolvidas na Operação Lava Jato. Para mim, ficou evidente, com o discurso do eminente Senador, que o propósito é exatamente esse, ao afirmar aqui categoricamente que eu teria cometido atos de abuso de autoridade na condução dessa operação”.
A intervenção do ministro Gilmar Mendes, novo herói do PT, limitou-se a levantar abusos de autoridades reais – tão reais que não precisam de nenhuma lei nova para ser punidos, p. ex., o caso de um réu que permaneceu 14 anos preso, sem julgamento – como justificativa para paralisar a Operação Lava Jato.
Quanto à deformação do projeto de iniciativa popular contra a corrupção – transformado, na Câmara, em projeto de acoitamento e anistia para os ladrões do dinheiro do povo – Mendes usou um curioso argumento:
“Hoje, frequento muito São Paulo e aprendi que quem contrata o Sindicato dos Camelôs, em uma semana consegue 300 mil assinaturas. Portanto, não vamos canonizar iniciativas populares.”
Se isso é verdade – ou se tem alguma coisa a ver com o projeto em foco – Gilmar Mendes não falou. Nem podia, pois sabe que fez uma mistura de velocípedes com carambolas.
Por fim: na intervenção inicial, Moro se refere ao embate entre Júlio de Castilhos, que, além de governador do Rio Grande do Sul, escreveu as primeiras leis estaduais gaúchas, com Rui Barbosa.
Castilhos e Rui foram colegas de faculdade, de campanha abolicionista, republicana e de Constituinte. Nos parece que, na questão em pauta, Rui estava com a razão (ele próprio demonstra, no trabalho citado por Moro, que Castilhos afirmara o mesmo que ele, Rui, na lei que escrevera – cf. Rui Barbosa, Obras Completas, vol. XXIII, t. III, pp; 135-286). No entanto, convenhamos, isso não era, para ninguém, uma vergonha.
SÉRGIO CRUZ
JUIZ SÉRGIO FERNANDO MORO
É evidente que nenhum juiz, nenhuma autoridade judicial é conivente com o abuso de autoridade. É uma contradição evidente qualquer juiz ser favorável ao abuso de autoridade. Portanto, qualquer legislação que venha a aprimorar e reduzir desvios é sempre muito bem-vinda.
Não obstante, há que se ter um cuidado todo especial para que, a pretexto de se coibir o abuso de autoridade, a legislação prevista não tenha o efeito prático contrário, de cercear não o abuso, mas, sim, o mero cumprimento do dever.
Diante disso, eu teria várias sugestões sobre esse projeto, mas eu vim aqui com o propósito de fazer apenas uma sugestão. Essa sugestão, exatamente, visa a preservar que o agente da lei – seja ele o juiz, o membro do Ministério Público, seja desembargador ou ministro, promotor, procurador ou Procurador-Geral da República, assim como todos os policiais, que muitas vezes estão na linha de frente do combate à criminalidade, que são aqueles que mais sofrem o impacto desse enfrentamento da criminalidade – não venham a ser penalizados por uma interpretação equivocada ou uma aplicação errada de uma lei de abuso de autoridade, que, a pretexto de coibir abusos, venha puni-los pelo correto exercício da função.
Nesse aspecto, eu fico muito feliz por falar nesta Casa e sob a estátua do nosso maior jurista, maior advogado, que foi também um notável senador, um dos pais fundadores da República, o advogado Rui Barbosa.
Rui Barbosa, no final do século XIX, assumiu uma causa em que um juiz de direito do Rio Grande do Sul, Alcides de Mendonça Lima, havia sido condenado, àquele tempo, por abuso de autoridade. Alcides de Mendonça Lima, ao decidir um caso concreto, entendeu que uma lei então promulgada no Rio Grande do Sul, uma lei estadual, era inconstitucional, porque estabelecia um regramento do tribunal do júri, que ele reputava incompatível com a garantia da instituição do júri, prevista na então Constituição de 1891, no artigo 72. Por exemplo, dizia que o voto dos jurados não seria mais secreto.
Alcides de Mendonça Lima, na primeira oportunidade que teve de decidir um caso, de aplicar essa lei estadual, disse: a lei é inconstitucional.
Na época, o Presidente do Estado, Júlio de Castilhos, revoltado com a posição daquele juiz, oficiou ao então Superior Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, solicitando – as expressas palavras dele foram essas – que o juiz faccioso fosse punido – nem processado, fosse punido. E ele foi, de fato, condenado pelo então crime de abuso de autoridade, que constava do primeiro Código Criminal republicano, artigo 226.
Rui Barbosa, advogado, assumiu essa causa e a levou até o Supremo Tribunal Federal (STF). Apresentou um texto, que depois se tornou célebre, “O júri e a responsabilidade penal dos juízes”, no qual defendeu, com todo o vigor e a eloquência de Rui Barbosa, que todos nós conhecemos, que divergências na interpretação da lei não poderiam ser jamais criminalizadas, sob pena de transformar o juiz em um servo, sob pena de retirar aquilo que é um dos fundamentos da liberdade de qualquer Nação, que é uma justiça independente.
Então, com essa defesa de Rui Barbosa – em 1896 ela foi acolhida pelo STF – restou sepultada entre nós, há mais de um século, a possibilidade do crime de hermenêutica. Isso foi uma conquista da República brasileira, que jamais se pode pensar em deixar a perder no presente momento.
Nessa linha, urge um dispositivo, uma salvaguarda nesse projeto de lei que limite a possibilidade da reinstituição, entre nós, do assim chamado crime de hermenêutica. Seria a simples adição de uma norma de salvaguarda nesse projeto com o seguinte texto, bastante singelo:
“Não configura crime previsto nesta lei a divergência na interpretação da lei penal ou processual penal ou na avaliação de fatos e provas”.
Com essa salvaguarda, eu diria que grande parte dos receios de uma aplicação equivocada desse projeto de lei provavelmente possam ser evitados, mas eu reputo – e, por isso, quis trazer uma única sugestão – essa adição fundamental, inclusive para afastar eventuais receios de que isso, de alguma forma, venha a ser utilizado para criminalizar a jurisdição ou a atuação independente do Ministério Público ou o dever da polícia de apuração das infrações penais, independentemente dos interesses que sejam afetados.
É claro que, para alguns dispositivos [do projeto de] lei, isso não é uma preocupação. Por exemplo, o texto tem lá o artigo 19: “Constranger preso com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual”. Não há nenhuma dúvida quanto a esse tipo penal, que se alguém cometer qualquer conduta dessa espécie, comete abuso de autoridade.
Mas existem outros tipos que não são assim tão óbvios e que podem sugerir essas dificuldades. Para colocar um exemplo, que não diz respeito ainda à magistratura, mas um exemplo muito simples e que afeta, inclusive, aqueles que estão lá na linha de frente do combate à criminalidade:
“Art. 15. Submeter o preso ao uso de algemas, ou de qualquer outro objeto que lhe restrinja ou impeça a locomoção, quando não houver resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso ou de terceiro.”
Ninguém discorda dessa norma. Ninguém discorda que as algemas devem ser utilizadas apenas em casos necessários, mas a grande indagação é: a quem cabe fazer essa avaliação?
Ao juiz, sentado na sua poltrona, confortável no seu gabinete?
Ou ao Senador, que elabora um projeto de lei contendo uma norma dessa espécie?
Ou ao policial, que vai realizar aquela prisão e aquela locomoção e tem que – muitas vezes sem qualquer espécie de informação mais concreta a respeito do comportamento do preso – decidir, naquele momento, se utiliza ou não utiliza algemas em relação àquele preso?
O que [o projeto de] lei faz é estabelecer que, se ele comete um erro de avaliação, se ele eventualmente utiliza as algemas em um caso que se mostra desnecessário, fica sujeito a uma ação penal por crime de abuso de autoridade.
Então, é importante que haja uma salvaguarda ao policial, para que ele não seja penalizado, se eventualmente cometeu um erro de interpretação ou de avaliação dos fatos, quanto à necessidade ou não da utilização dessas algemas. Do contrário, o policial, eventualmente, vai utilizar o caminho mais fácil para não ser responsabilizado, ou seja, não utilizar as algemas. O que pode acontecer, se era um caso em que elas eram realmente necessárias?
Da mesma forma, um dispositivo do artigo 30: “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada”.
Qualquer ação penal, seja ação penal privada ou seja uma denúncia, tem que ter justa causa, que é mais ou menos entendido como um substrato probatório, que não precisa ser cabal naquele momento, mas precisa ter um substrato probatório para formular uma acusação contra qualquer pessoa. Não há nenhuma disputa quanto a isso.
Quando, por exemplo, o Ministério Público oferece uma denúncia, isso vai ao juiz, que avalia se tem ou não a justa causa e, não havendo a justa causa, o juiz tem a possibilidade de rejeitar. Esse é o sistema de salvaguarda que foi estabelecido pela nossa legislação.
O que significa esse dispositivo [do projeto de lei]?
Se o juiz rejeitar a denúncia ou a queixa, isso significa que o promotor ou o procurador cometeu abuso de autoridade?
Ou será que houve apenas uma divergência de avaliação de fatos e provas?
Nós vamos criminalizá-los, então, pelos erros de avaliação de fatos e provas cometidos pelos promotores ou procuradores?
Isso não vai ter um impacto na liberdade e autonomia do Ministério Público em oferecer essas denúncias e ações penais, quando entender que existe substrato probatório, sem que haja qualquer intencionalidade negativa, malévola, má intenção na atuação desse membro do Ministério Público?
Então, é importante ter uma norma de salvaguarda que estabeleça que erros, divergências na avaliação de fatos e provas não representam abuso de autoridade.
Aqui, indo para a parte do Judiciário, da prisão: “ordenar ou executar captura, detenção ou prisão fora das hipóteses legais ou sem o cumprimento e observância de suas formalidades” (redação do art. 9º).
Os fundamentos da decretação das prisões cautelares são objeto de inúmeras controvérsias no âmbito dos tribunais. Não raramente, nas próprias sessões do STF, ministros divergem na concessão ou denegação de habeas corpus, havendo, não raramente, julgamentos que não são por unanimidade, minorias e maiorias.
O que significa esse dispositivo?
Se o juiz de primeira instância, se o juiz de segunda instância, se o juiz dos tribunais superiores, decretar uma prisão cautelar e ela vier a ser reformada, ainda que seja na última instância, ainda que seja por voto de maioria e minoria, vai ficar ele sujeito à persecução penal por abuso de autoridade?
Ou seja: nós estamos ignorando a herança de um dos nossos pais fundadores, Rui Barbosa?
Vamos tolher a independência da magistratura?
Então, é importante que haja uma salvaguarda que deixe claro que divergências na interpretação da lei, divergências na avaliação de fatos e provas não representam abuso de autoridade.
Foi mencionado o caso da condução coercitiva. Alguns juízes utilizam esse instrumento; outros entendem que ele não é cabível. Há uma divergência de interpretação.
Ilustrativamente, há não muito tempo, este ano, em abril de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região entendeu que a condução coercitiva era uma medida que encontrava abrigo legal, inclusive, mesmo sem haver uma intimação prévia.
Cometeram esses magistrados – seis magistrados de seção do tribunal de apelação, tribunal federal, de Porto Alegre, um tribunal renomado, conhecido – abuso de autoridade?
Ou se trata aqui de mera divergência de interpretação a respeito do significado da nossa lei?
Então – e esta é a sugestão que apresento –, reputo fundamental que, caso haja, realmente, essa intenção de atualizar a Lei de Abuso de Autoridade, que essa lei seja muito bem refletida.
Mas, em qualquer aspecto, é essencial uma norma de salvaguarda como essa que sugeri, invocando aqui, com toda a humildade, o espírito, o trabalho e o exemplo do maior jurista brasileiro, pai fundador da República, também senador, Rui Barbosa, que nos ensinou isto ainda no século XIX.
Também tenho alguma preocupação – e aqui a faço como uma preocupação externa – com todo o respeito, de que, talvez não seja o melhor momento para deliberação de uma nova lei de abuso de autoridade, considerando o contexto de que existe uma investigação importante, não só a chamada Operação Lava Jato, mas várias outras investigações importantes e, talvez, independentemente das intenções dos ilustres senadores e senadoras, uma nova lei de abuso de autoridade poderia ser interpretada, no presente momento, como tendo o efeito prático de tolher investigações e persecuções penais.
Faço essa sugestão, Presidente, com extrema humildade. Não me cabe aqui censurar o que deve o Senado ou não deve o Senado deliberar, mas eu acredito que, talvez, não seja o melhor momento – e o Senado Federal pode passar uma mensagem errada à sociedade brasileira.
O que se assiste é a sociedade brasileira ansiosa diante de casos graves de corrupção que vêm sendo revelados não só nessa Operação Lava Jato, mas pelo trabalho de investigação de policiais, de membros do Ministério Público e com atuação de magistrados espalhados em todo o País.
O que a sociedade anseia no presente momento é o enfrentamento mais efetivo – claro que com resguardo dos direitos fundamentais e do devido processo legal – desse tipo de criminalidade, e a aprovação de um projeto, neste presente momento, poderia dar uma mensagem errada à sociedade.
Essas são as considerações a fazer a respeito do projeto de lei do Senado e, aqui me permito, porque chegou ao Senado esse recente projeto da Câmara que tem algumas exposições similares, uma breve reflexão.
Não quero também censurar a Câmara de maneira nenhuma, mas esse tipo de provisão, de crime de responsabilidade para juízes e promotores, teria que ser objeto de um debate, de uma reflexão maior por parte do Parlamento, seja da Câmara ou seja do Senado.
Essas emendas da meia-noite – e, aqui, não quero ser ofensivo, mas de certa maneira retrata um pouco o que aconteceu – que não permitem uma avaliação da sociedade, não permitem um debate mais aprofundado do Parlamento, não são apropriadas, tratando de temas assim tão sensíveis.
Tenho severas críticas, acho que há coisas ali sobre as quais não tem nem cabimento se falar em crime de responsabilidade, como juiz que acumula mais um cargo de magistério.
Isso é algo que é proibido pela lei e merece, sim, censura. Mas crime? Crime? É crime o juiz acumular outro cargo de professor? Ou o juiz externar opinião? Estamos, então, criminalizando a opinião? Eu concordo que o juiz não deve opinar sobre casos pendentes, ainda que perante outros foros, mas criar um crime, me parece que é um tanto quanto exagero.
Além disso, há também, naquele projeto, alguns tipos abertos: juiz ou promotor que viola o decoro – que é algo que não sabemos exatamente o que significa – erigido à conduta criminosa.
Ou seja, há que se tomar todo um cuidado para evitar a criminalização do exercício da jurisdição, do exercício da autonomia do Ministério Público e também da vinculação do agente policial à lei.
Não digo isso por conta da Operação Lava Jato, não digo isso por conta de qualquer outra operação; mas digo isso porque esses são fundamentos nos quais se esteia a nossa liberdade: independência da Justiça, autonomia do Ministério Público e vinculação da polícia à lei, assim como nossa liberdade se esteia na soberania da Constituição e também na liberdade e na soberania constitucional, limitada apenas pela Constituição, destas Casas Legislativas.
Agradeço mais uma vez a atenção de todos os presentes, em especial dos Srs. e das Srªs senadores e senadoras. Muito obrigado. (Palmas.)