(HP, 09-14/12/2016)
A “História das Agriculturas no Mundo”, de Marcel Mazoyer e Laurence Roudart (tradução, do original em francês, de Cláudia F. Falluh Balduino Ferreira, Ed. Unesp, 2010) é uma obra colossal. Nem tanto por suas mais de 550 páginas. Mais pela profundidade e quantidade de dados que abarcam as várias épocas do cultivo agrícola da Humanidade, desde o neolítico até os tempos atuais.
Há, nesse último e mais recente estágio, no entanto, um paradoxo: as mudanças na produção agrícola, desde a década de 50 e 60 do século XX, e sobretudo após 1991, foram capazes de um estupendo aumento de produtividade – com a consequência de que os preços das mercadorias agrícolas tiveram uma imensa queda. Mas isso, ao invés de reduzir a fome no mundo, fez com que aumentasse o número de pessoas na miséria, com desnutrição, tornando mais distante a agricultura mais desenvolvida daquela menos desenvolvida. Por consequência, aumentando também a distância entre os países centrais e os países da periferia.
Trata-se do problema do “agronegócio” e de suas consequências devastadoras para o conjunto da agricultura e do conjunto dos países.
No trecho que escolhemos – o prefácio da obra, que é aprofundado e estendido nos dois últimos capítulos do livro – os autores traçam um retrato da situação.
Em outras oportunidades, tratamos da questão, mas sobretudo sob o prisma da crise alimentar aguda (ver, p. ex., HP 25/04/2008 e 09/05/2008).
Trata-se, realmente, de uma tragédia – ao mesmo tempo em que a produção foi multiplicada e os preços baixaram, a fome aumentou.
É interessante a conclusão dos autores:
“… a ideia que fazemos das causas e dos remédios para a crise contemporânea é bem diferente da ideia, hoje politicamente dominante, de que os males deste mundo proviriam essencialmente da concorrência insuficiente para a qual a melhor política econômica seria sempre a de facilitar essa concorrência, limitando-se a atenuar seus efeitos mais insuportáveis, considerados como passageiros. Nossa posição se aproxima das análises, cada vez mais numerosas, de que somente uma política mundial coordenada de reorganização equitativa dos comércios internacionais, dos sistemas monetário e financeiro internacional, visando ao desenvolvimento equilibrado de todos os países, pode remediar uma crise que é mais mundial que nunca” (M. Mazoyer e L. Roudart, op. cit., pp. 553-554).
Embora os autores não o digam, é evidente que isso implica numa transformação nos países, ou seja, em transformações nacionais.
Pois, se há algo que a situação crítica da agricultura mundial expõe de forma eloquente é que, na época do imperialismo – sobretudo o imperialismo atual, o chamado neoliberalismo – mesmo quando há algum avanço das forças produtivas (e sempre há algum, ainda que essas forças estejam travadas), isso redunda em riqueza para muito poucos e miséria para muitos (neste caso, pelo menos 1,5 bilhão de pessoas, provavelmente mais, pois os números dos autores vão até 2010).
Este é exatamente o problema: esses avanços de produtividade estão submetidos ao domínio de monopólios financeiros extremamente vorazes e criminosos.
Há muitas questões científicas e teóricas envolvidas. Porém, no extrato que apresentamos da obra de Mazoyer e Roudart, preferimos nos ater, na medida do possível, aos fatos.
Marcel Mazoyer é engenheiro-agrônomo, professor e pesquisador, foi titular da cadeira de agricultura comparada e desenvolvimento agrícola do Institut National Agronomique Paris-Grignon. É professor emérito do Institut des Sciences et Industries du Vivant et de l’Environnement, escola de engenharia conhecida como AgroParisTech, que abarcou a primeira instituição.
A professora Laurence Roudart, que foi aluna de Marcel Mazoyer, é Mestre de Conferências de Economia Política Agrícola, na mesma cátedra.
Agradecemos a Werner Rempel ter chamado a nossa atenção para essa obra – e, como sempre, gentilmente, nos presenteado com ela.
C.L.
MARCEL MAZOYER E LAURENCE ROUDART
Nesse princípio de século XXI, com os aproximadamente seis bilhões de seres humanos com que conta o planeta, por volta da metade vive na pobreza, com um poder aquisitivo equivalente a menos de dois dólares americanos por dia. Perto de dois bilhões sofrem de graves carências de ferro, iodo, vitamina A, de outras vitaminas ou minerais [NOTA: aproximadamente 1,5 bilhão de indivíduos têm carência de ferro, 740 milhões têm carência de iodo, 200 milhões de vitamina A, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, normalmente designada por sua sigla em inglês, FAO (Food and Agriculture Organization)].
Mais de um bilhão de pessoas não têm acesso à água potável e por volta de 840 milhões são vítimas de subnutrição, o que significa que elas nem sempre dispõem de ração alimentar suficiente para cobrir suas necessidades energéticas básicas, em outras palavras, elas têm fome quase todos os dias [NOTA: De acordo com a FAO, há por volta de 800 milhões de pessoas subnutridas nos países em desenvolvimento, ou seja, quase um a cada cinco indivíduos, 30 milhões nos países em transição (anteriormente com economia planificada) e 10 milhões nos países desenvolvidos, Esses números, que são incertos, devem ser considerados como ordens de grandeza.].
Quanto aos surtos de fome que eclodem aqui e ali quando há uma seca, inundação, tempestade, doença das plantas, dos animais ou dos homens, ou ainda da guerra, elas não deixam de ser, por outro lado, a consequência última da pobreza e da subnutrição. Na verdade, esses acidentes climáticos, biológicos ou políticos levam à fome apenas as regiões do mundo em que amplas camadas da população sofrem já de uma pobreza e de uma insegurança alimentar tão grandes que não dispõem dos meios para lutar de maneira eficaz contra essas catástrofes e suas consequências.
Essa situação dramática, que não é nova, não está, tampouco, em vias de melhorar. Certamente, a parte da população subnutrida dentro da população mundial total diminuiu no decorrer das três últimas décadas do século XX, mas o número de pessoas subnutridas no mundo não baixou nem um pouco. É por isso que mais de oitenta chefes de Estado e de governo, reunidos em Roma em 1996 para a Cúpula Mundial da Alimentação, comprometeram-se a “realizar um esforço constante a fim de erradicar a fome em todos os países e, de imediato, de reduzir pela metade o número de pessoas subnutridas daqui até mais tardar 2015”. Isso levava a considerar que o mundo contaria ainda com cerca de 400 milhões de pessoas subnutridas em 2015. Mas os meios mobilizados para essa finalidade, não tendo sido nem tão significativos nem tão eficazes quanto o previsto, cinco anos depois, em 2001, foi preciso reconhecer que o mundo contaria ainda com 600 a 700 milhões de subnutridos em 2015 e que, nesse ritmo, seria necessário mais de um século para ver desaparecer essa catástrofe.
Dessa forma, mesmo reforçados, os meios convencionais de luta contra a fome mostraram-se, uma vez mais, incapazes de suplantá-la em um prazo suficientemente curto para ser moralmente aceitável, socialmente suportável e politicamente tolerável. Para reduzir a pobreza extrema, que chega até a fome e, às vezes, à penúria e à morte, não basta tratar dos sintomas mais alarmantes desses males, é preciso combater suas causas profundas e, para isso, é preciso apelar para outras análises e outros meios.
Para começar, é preciso levar em consideração o fato essencial de que aproximadamente três quartos dos indivíduos subnutridos do mundo pertencem ao mundo rural. Homens do campo pobres, dentre os quais encontramos, majoritariamente, camponeses particularmente mal equipados, instalados em regiões desfavoráveis e em situação difícil, assim como trabalhadores agrícolas, artesãos e comerciantes que vivem em contato com eles e que são tão pobres quanto eles. Quanto aos outros subnutridos, muitos são ex- -camponeses recentemente forçados pela miséria a irem para os campos de refugiados ou periferias urbanas subequipadas e subindustrializadas, nas quais eles ainda não puderam encontrar meios de subsistência satisfatórios.
E como o número de pobres e famintos dos campos não diminui em nada, mesmo que ele caia anualmente em muitas dezenas de milhões de pessoas em virtude do êxodo rural, é preciso deduzir daí que um número mais ou menos igual de novos pobres e famintos forma-se todo ano nos campos.
A maioria das pessoas que tem fome no mundo não é, portanto, de consumidores urbanos compradores de alimento, mas de camponeses vendedores de produtos agrícolas. E seu número elevado não é uma simples herança do passado, mas o resultado de um processo, bem atual, de empobrecimento extremo de centenas de milhões de camponeses sem recursos.
Para explicar esse processo, trataremos das questões a seguir: qual a dimensão das desigualdades entre as diferentes agriculturas do mundo; como a revolução agrícola contemporânea, desenvolvida por uma minoria de agricultores dos países desenvolvidos e de alguns países em desenvolvimento, multiplicou de maneira enorme essas desigualdades; por que a revolução verde, desenvolvida por aproximadamente dois terços dos agricultores dos países em desenvolvimento, reduziu apenas parcialmente essas desigualdades; como a baixa tendencial dos preços agrícolas reais, resultante dessas revoluções agrícolas, bloqueou o desenvolvimento e está empobrecendo ao extremo mais de um terço dos camponeses do planeta.
AGRICULTURAS MUITO DESIGUAIS
Podemos medir a produtividade bruta do trabalho agrícola pela produção de cereais ou de equivalente-cereal [quantidade de cereais que possuem o mesmo valor calórico que a produção agrícola considerada] por trabalhador agrícola e por ano. Em pouco mais de meio século, a relação entre a produtividade da agricultura menos produtiva do mundo, praticada exclusivamente com ferramentas manuais (enxada, pá, facão, faca, ceifadeira, foice…) e a agricultura mais bem equipada e produtiva do momento realmente se acentuou: passou de 1 contra 10 no período do entre-guerras, para 1 contra 2.000 no final do século XX.
REVOLUÇÃO AGRÍCOLA CONTEMPORÂNEA
De fato, no decorrer da segunda metade do século XX, a revolução agrícola contemporânea (elevada motorização-mecanização, seleção de variedades de plantas e de raças de animais com forte potencial de rendimento, ampla utilização dos fertilizantes, dos alimentos concentrados para o gado e produtos de tratamento das plantas e dos animais domésticos) progrediu vigorosamente nos países desenvolvidos e em alguns setores limitados dos países em desenvolvimento.
Nos países desenvolvidos, os agricultores, que já eram relativamente produtivos, beneficiaram-se de políticas de apoio ao desenvolvimento agrícola, assim como de preços agrícolas reais que, no início do período considerado, eram muito mais elevados que os atuais, ainda que pudessem investir e progredir ao máximo. Mas, no final das contas, são menos de 10% dos grandes estabelecimentos agrícolas que conseguiram superar todas as etapas dessa revolução. Hoje, as mais bem equipadas, as mais bem dimensionadas e as mais bem colocadas entre elas atingem uma produtividade bruta da ordem de 2.000.000 kg de equivalente-cereal por trabalhador e por ano (200 ha/trabalhador x 10.000 kg/ha = 2.000.000 kg/trabalhador). Os ganhos de produtividade agrícola obtidos dessa forma foram tão rápidos e tão elevados que ultrapassaram os da indústria e do setor de serviços. Disso resultou uma forte queda dos preços agrícolas reais: de acordo com os produtos, esses preços foram divididos por 2, 3 ou 4 ao longo da segunda metade do século XX. Consequentemente, durante esse período, mais de 90% dos estabelecimentos agrícolas menos favorecidos tiveram seu desenvolvimento bloqueado e empobreceram em virtude dessa baixa dos preços, a tal ponto que, umas após as outras, deixaram de existir e alimentaram com mão de obra a indústria e o setor de serviços em expansão.
Nos países em desenvolvimento, a maioria dos camponeses não encontrou formas de acesso à motorização-mecanização, muito dispendiosa. Em algumas regiões, no entanto (América Latina, Oriente Médio, África do Sul…), alguns grandes empresários agrícolas, que dispunham de milhares de ha e que utilizavam trabalhadores agrícolas diaristas muito mal pagos aproveitaram-se da inflação e dos baixos preços agrícolas internacionais, relativamente elevados da primeira metade dos anos 1970, assim como dos créditos vantajosos, para, por sua vez, equiparem-se. Hoje, os mais bem sucedidos desses grandes estabelecimentos agrícolas têm uma produtividade do trabalho tão elevada quanto a dos grandes estabelecimentos agrícolas norte-americanos ou do oeste-europeu mais bem equipados, mas com um custo de mão de obra infinitamente menor.
REVOLUÇÃO VERDE
Ainda nos países em desenvolvimento, a partir dos anos 1960, a revolução verde, uma variante da revolução agrícola contemporânea desprovida de motorização-mecanização, desenvolveu-se muito mais amplamente. Baseada na seleção de variedades com bom rendimento potencial de arroz, milho, trigo, soja e de outras grandes culturas de exportação, baseada também numa ampla utilização de fertilizantes químicos, dos produtos de tratamento e, eventualmente, em um eficaz controle da água de irrigação e da drenagem, a revolução verde foi adotada pelos agricultores que eram capazes de adquirir esses novos meios de produção e nas regiões favorecidas, onde era possível rentabilizá-los. Ressaltamos que em muitos países, os poderes públicos favoreceram intensamente a difusão dessa revolução, comandando políticas de incentivo aos preços agrícolas, de subvenções aos insumos, de bonificação dos juros de empréstimo e de investimentos em infraestruturas de irrigação, drenagem e transporte. Dessa forma, hoje, um agricultor que utilize plenamente os meios da revolução verde pode atingir uma produção bruta do trabalho de cerca de 10.000 kg do equivalente-cereal se ele dispuser apenas de ferramentas manuais (1 ha/trabalhador x 10.000 kg/ha), de cerca de 50.000 kg se ele dispuser de equipamentos de tração animal (5 ha/trabalhador x 10.000 kg/ha), e mesmo mais se ele puder realizar diversas colheitas por ano.
AGRICULTURAS ESQUECIDAS
Assim, muitos camponeses dos países em desenvolvimento nunca tiveram acesso aos meios de produção de uma ou outra dessas revoluções agrícolas. Dessa forma, a motorização-mecanização está praticamente ausente, e as sementes selecionadas, os fertilizantes, os agrotóxicos só são pouco ou não são utilizados em extensas zonas de culturas pluviais ou sumariamente irrigadas das florestas, savanas, estepes intertropicais da África, da Ásia e da América Latina. E mesmo nas regiões que assimilaram amplamente uma ou outra dessas duas revoluções, muitos camponeses nunca puderam adquirir os novos meios de produção e progredir em rendimento e em produtividade. Eles, portanto, também foram empobrecidos pela baixa dos preços agrícolas reais, e ainda sofreram, por vezes, inconvenientes resultantes dessas duas revoluções (poluições diversas, baixa do nível de lençóis freáticos, salinização dos solos irrigados e mal drenados…).
Consequentemente, centenas de milhões de camponeses continuam hoje a trabalhar com ferramentas estritamente manuais, sem fertilizantes nem produtos de tratamento e com variedades de plantas que não foram objeto de pesquisa e de seleção sistemática (milheto, quinoa, eleusine, batata doce, ocá, taro, inhame, banana prata, mandioca…). Os rendimentos obtidos nessas condições são inferiores a 1.000 kg de equivalente-cereal por hectare (por exemplo, o rendimento médio do milheto no mundo atual é de, quando muito, 800 kg por hectare). E como um instrumental manual mal permite cultivar mais de um hectare por trabalhador, a produtividade bruta não ultrapassa 1.000 kg de equivalente-cereal por ativo e por ano (1 ha/trabalhador x 1.000 kg/ha).
AGRICULTURA MANUAL
No fim das contas, para uma população agrícola ativa mundial de um bilhão e trezentos milhões de pessoas, ou seja, a metade da população ativa total do mundo, contamos hoje, quando muito, com apenas 28 milhões de tratores [de acordo com a AOSTAT, FAO, 1999], ou seja, algo em torno de 2% do número de ativos agrícolas! Notemos que a população agrícola total mundial (ativa e não ativa) é de aproximadamente 3 bilhões de pessoas, ou seja, a metade da humanidade.
Além disso, podemos estimar que por volta de dois terços desses ativos beneficiaram-se da revolução verde. Aproximadamente a metade deles dispõe da tração animal, ao passo que os outros continuam trabalhando com ferramentas manuais. Consequentemente, um terço da população agrícola do mundo, ou seja, mais de 400 milhões de trabalhadores ativos (o que corresponde a mais de um bilhão de pessoas a serem alimentadas), trabalham não somente com ferramentas estritamente manuais, mas ainda sem fertilizantes, nem alimento do gado, nem agrotóxicos, nem variedades de plantas ou raça de animais selecionadas.
DESIGUALDADES DE ACESSO À TERRA
Além disso, em muitos países ex-coloniais (América Latina, África do Sul, Zimbábue…) ou ex-comunistas (Ucrânia, Rússia, entre outros) que não tiveram reforma agrária recente, a maioria desses camponeses mal equipados são mais ou menos destituídos de terra pelos grandes estabelecimentos agrícolas de muitos milhares de dezenas ou dezenas de milhares de hectares, estabelecimentos que são privados ou públicos, ou em vias de privatização. Esses pequenos camponeses dispõem de uma superfície ainda inferior àquela que poderiam cultivar com suas ferramentas simples, e inferior àquela que lhes seria necessária para cobrir as necessidades de autoconsumo de suas famílias. Esses camponeses “minifundistas” são, portanto, obrigados a procurar trabalho dia após dia nos grandes estabelecimentos agrícolas “latifundistas”, com salários de 1 a 2 dólares por dia.
RAZÕES DO EMPOBRECIMENTO EXTREMO
Os aumentos de produtividade e de produção resultantes da revolução agrícola contemporânea e da revolução verde não provocaram somente uma forte baixa dos preços agrícolas reais nos países envolvidos: elas também permitiram a alguns desses países liberarem excedentes exportáveis a baixos preços. Porém, as trocas internacionais de produtos agrícolas de base recaem somente sobre uma pequena fração da produção e do consumo mundiais (algo em tomo de 12% para os cereais, por exemplo). Os mercados correspondentes são, portanto, mercados residuais, que são constituídos de excedentes difíceis de vender, a não ser por preços particularmente baixos. Com esses preços, mesmo os produtores beneficiários da revolução agrícola ou da revolução verde só podem ganhar parcelas de mercado, ou se manter, se contarem com alguns latifundistas agroexportadores sul-americanos, zimbabuenses e, agora, ucranianos, russos…, que não somente estão bem equipados mas que, além disso, dispõem de vastos espaços pouco dispendiosos e de uma mão de obra que está entre as mais baratas do mundo. Hoje, nesse tipo de latifúndio, um trabalhador agrícola que ganha menos de 1.000 dólares por ano pode produzir mais de 1.000.000 kg de cereais, o que reduz o custo da mão de obra por quilo de cereais a menos de um milésimo de dólar (1.000 dólares/ativo/ano divididos por 1.000.000 de kg/ativo/ano). Consequentemente, o preço da tonelada de cereais exportáveis por essas regiões é inferior a 100 dólares americanos.
Com esse preço, uma grande quantidade de agricultores americanos ou europeus teria uma renda do trabalho nula ou negativa. Eles não poderiam, portanto, nem ganhar parcelas de mercado, nem resistir a essas importações, nem se manter em atividade se não pertencerem a países desenvolvidos com altas rendas e preocupados com sua soberania alimentar e onde, consequentemente, beneficiar-se-iam de incentivos públicos bastante significativos.
Enfim, em certos países em desenvolvimento, no sudeste asiático particularmente (Tailândia, Vietnã, Indonésia…), o aumento da produção devido à revolução verde combina-se com altos níveis de rendas e de salários locais tão baixos que esses países tornaram-se exportadores de arroz enquanto a subnutrição arruína os campos.
Mas, para a maioria dos camponeses do mundo, os preços internacionais dos gêneros alimentícios de base são excessivamente baixos para permitir-lhes viver de seu trabalho e renovar seus meios de produção e, portanto, ainda menos para permitir-lhes investir e progredir. Porém, devido à baixa dos custos de transporte e à liberalização crescente das trocas agrícolas internacionais, camadas sempre novas do campesinato subequipado, instalado em regiões desfavorecidas, com pouca disponibilidade de terras e pouco produtivo, são confrontadas com a concorrência de gêneros alimentícios a preços muito baixos provenientes dos mercados internacionais. Essa concorrência desencadeia o bloqueio do desenvolvimento e o empobrecimento deles, chegando a levá-los à pobreza extrema e à fome.
Para melhor compreender esse processo, consideremos um cerealicultor sudanês, andino ou himalaico, que disponha de um instrumental manual e produza 1.000 kg de grão líquido (ou seja, subtraindo-se as sementes utilizadas), sem fertilizantes nem produtos fitossanitários. Há mais ou menos cinquenta anos, tal cerealicultor recebia o equivalente a 300 dólares (valor referente ao ano de 2001) por tonelada de cereais: ele devia, então, vender 200 kg para renovar seus equipamentos, suas vestimentas etc., e restavam-lhe 800 kg para alimentar modestamente quatro pessoas; privando-se um pouco, ele podia até vender 100 kg de cereais a mais para comprar uma ferramenta nova, mais eficaz. Há aproximadamente 20 anos, ele não recebia mais do que o equivalente a 200 dólares (de 2001) por tonelada: ele devia, então, vender 400 kg para renovar seu equipamento e restavam-lhe apenas 600 kg para alimentar, dessa vez insuficientemente, quatro pessoas; ele não podia mais, portanto, comprar novas ferramentas. Enfim, hoje, ele não recebe mais do que 100 dólares por tonelada de cereais: ele deveria vender mais de 600 kg para renovar seu material, o que é obviamente impossível, dado que não seria possível alimentar quatro pessoas com 400 kg de cereais. Na realidade, com esse preço, ele não pode nem renovar completamente suas ferramentas, contudo irrisórias, nem alimentar-se satisfatoriamente e renovar sua força de trabalho: ele está condenado, portanto, ao endividamento e ao êxodo rumo às favelas subequipadas e sub-industrializadas em que reinam o desemprego e os baixos salários.