SIDNEI SCHNEIDER
(Letras do HP, 29/03/2017)
Dona de uma escrita instigante e bem-humorada, Germana Zanettini tem conquistado elogios em antologias, redes sociais e saraus. Finalista do Prêmio Açorianos de Literatura, com um projeto de primeiro livro que, em breve, remodelado e ampliado, virá a público, sob o título Eletrocardiodrama – lançamento em maio, pela editora Laranja Original, em São Paulo, com prefácio deste colunista – a poeta busca o melhor modo de interferir, como diz num de seus poemas mais conhecidos, repleto de sons aliterantes em /f/:
não faço guerra
faço amor
mas, se preciso for,
encaro o front
de frente
armada
até os dentes
com uma flor
Ao Lauro do telemarketing, poema a que vamos dedicar algumas linhas, revela-se a partir do título ao evocar uma chatice cotidiana, geralmente promovida por cartéis e arapucas financeiras, que julgam não ter nada a perder se chatearam continuamente as pessoas. Por se tratar de um poema com versos longos, que tenderiam a ser quebrados em função dos limites laterais desta coluna, preferimos esboçar comentários a estrofes destacadas, com os versos separados por travessão.
Ao explorar o sentido diferente de palavras iguais quanto à escrita e pronúncia, o poema cria um recurso que o atravessa: “não, eu não quero nenhum cartão/ a não ser que você me envie um daqueles antigos/ escritos à mão/ (já reparou como ninguém manda mais cartão/ seja natal, páscoa ou postal?/ agora é só e-mail, comentário e post no mural)”. As rimas, não só nos finais de verso, mas também internas, junto a repetição de palavras iniciadas por /n/ e /p/ e iniciadas ou entremeadas por /k/ e /m/, objetivam a apresentação em voz alta ou sua simulação na leitura silenciosa.
A rima toante ou vocálica, a preferida de João Cabral de Melo Neto, quando as vogais tônicas rimam mas as consoantes não, além do significado distinto de palavras bastante próximas como gasta–gastar, dão o tom e a posição da voz poética: “lauro, a vida já anda tão gasta/ não quero nada que me faça/ gastar o que não tenho, obrigada”. Mais explícita no fim dos versos, com as vogais iguais de gasta-faça-obrigada, a rima toante também ocorre entre lauro-nada-gastar. Poesia não se lê como jornal ou romance: quem encontrou certo prazer ao ler o anagrama anda-nada, uma palavra embaixo da outra na formatação original, que acentua que “a vida já anda tão gasta”, para contrapor que “não quero nada que me faça/ gastar o que não tenho, obrigada”, está a caminho.
A extorsão telefônica passa a ser cada vez mais contestada: “não me fale sobre os juros, não quero saber sobre juros/ eu quero as juras, lauro, apenas as juras de amor!/ ainda que um dia elas possam se quebrar…/ se até a bolsa quebra, por que seriam as juras/ inquebrantáveis?” Novamente com paronomásias, conceito que incluiu o trocadilho e formas aparentadas, temos o par juros-juras, a tríade quebra-quebrar-inquebrantáveis e ainda o sentido divergente da dupla ocorrência do termo bolsa, quando, no final da estrofe seguinte, a voz finge ingenuidade: “não, lauro, da bolsa de valores nada sei, porém/ carrego uns versos/ dentro da minha bolsa de couro sintético, pode ser?”
Um pouco adiante, a síntese da oposição à chamada telefônica invasiva se dá a partir da contradição entre expressões, mais o significado plural das palavras graça e coisa: “lauro, nada que custe os olhos da cara/ se compara ao olhar de quem a gente gosta/ que é de graça/ e essa é a graça da coisa/ e hoje em dia tem tanta coisa valendo mais do que gente”.
Após refutar proposições de consumo indesejadas nas estrofes seguintes, o poema termina exercendo o bom-humor desenrolado desde o início. Ou seja, o exato oposto do que normalmente causam as chamadas de telemarketing, o que somente a poesia, aqui no sentido amplo de a crítica pela arte, poderia oferecer. Para tanto, serve-se da similaridade fônica ou rímica de palavras como frio-fio e manhã-semanas-cama, além de ressaltar o momento em que a ligação incômoda se deu, o que agudiza a situação e a comicidade: “lauro, tá bem frio aqui do outro lado do fio/ é sábado de manhã e eu não durmo há semanas/ então, me dá licença que agora vou desligar/ e voltar pra minha cama”.
Saborear a forma do conteúdo ou o conteúdo da forma – num poema esteticamente acabado, o conteúdo está se transformando continuamente em forma e a forma está se transformando continuamente em conteúdo, após a síntese formal do conteúdo durante o trabalho de escrita literária – pode ser proveitoso. Evidentemente, haveria outras possibilidades de leituras a fazer ou encontrar, neste poema que se contrapõe à exploração financeira de maneira tão leve quanto aguda, o que não é nada fácil de obter.