A exposição de um dos nossos maiores artistas plásticos, Emiliano Di Cavalcanti, em São Paulo, traz mais de duzentas obras entre pinturas, desenhos e gravuras do artista que também se destacou pelos murais (como o do Teatro João Caetano do Rio, que escolhemos para ilustrar esta matéria). Uma mostra representativa do extenso trabalho de suas mais de 5.400 obras.
A exposição está nos seus últimos dias, vai até o dia 29 de janeiro. Há vinte anos não ocorria uma tão ampla mostra do pintor e vale a pena uma corrida para vê-la na Pinacoteca.
Além do prazer estético que é percorrer as salas da exposição onde está presente uma significativa mostra do seu firme traço e das bem aplicadas cores em seu diversificado trabalho, é oportuno perceber aspectos centrais das concepções que nortearam sua obra, princípios que fizeram dele uma excepcional conquista da cultura brasileira.
A primeira delas, que fica clara como marca de sua obra, é a percepção de que o cultuado abstracionismo é uma fuga do compromisso do artista com as pessoas e com o seu povo. Como ressalta, de forma clara e aberta, o próprio Di Cavalcanti: “Ora, minha crítica ao anarquismo modernista vem da seguinte observação: uma arte que, deliberadamente, o afasta da realidade, que submete a criação a teorias de um subjetivismo cada vez mais hermético, que leva o artista ao desespero de uma solidão irreparável, é uma arte inconsequente”. E prossegue: “hoje, quando se proclama como arte do nosso tempo o abstracionismo, o surrealismo, ou todos os outros cacoetes metafísicos do anarquismo modernista, caminha-se numa rua estreita, só agradável para aqueles refinados que amam a podridão”.
Mantendo-se firme a estes princípios, Di Cavalcanti, como ressalta o curador José Augusto Ribeiro, se inspira em autores como El Greco, Cézanne, Delacroix, Gauguin, Lautrec, Renoir e nos clássicos, desde Michelangelo a Da Vinci e Ticiano. Vai ao México e torna-se um admirador dos muralistas, Rivera, Siqueros e Orozco, que com suas obras falavam diretamente ao povo e não apenas aos frequentadores dos salões bem comportados, para construir uma obra nacional que dialoga com os melhores de seu tempo.
É o que podemos observar nos efeitos obtidos com as luzes e sombras, presentes tanto na obra dele como na pintura de figuras populares em Lasar Segall, assim como no cuidado com elementos decorativos das casas do povo que se pode ver em seus trabalhos, como nos de Guignard.
A segunda concepção é a de que a arte faz sentido na medida em que se incorpora às manifestações e às personalidades populares. Assim é que revela seu “fascínio pelos carros alegóricos” do carnaval carioca e a preferência por ilustrar suas obras com as mulheres simples, com sua beleza, imperfeições e idades variadas, às modelos dos estúdios, “dulçurosos nos quadros acadêmicos que ornavam as salas de visita”. Foi o pintor das mulheres do povo brasileiro, o que lhe valeu o apelido de “pintor das mulatas”. Quem passeia pela sua obra e vê quadros como: Mulher e paisagem, Arlequim oferecendo flores, Seresta e tantos outros, não pode deixar de concordar com o apropriado da denominação.
Para pintar o povo, o inovador e autodidata Di Cavalcanti viveu junto a ele. Era um incorrigível romântico e boêmio, de quem o cronista Rubem Braga disse “este aí pintou e bordou”.
Além disso, há um terceiro e não menos importante aspecto que, entre tantos outros que se poderia dizer deste profícuo autor, é observado pelo curador e que está imbricado com os anteriores: o compromisso não apenas em retratar os trabalhadores, as pessoas dos subúrbios, as mulheres e homens nos bares e bordéis, mas o envolvimento com a necessária transformação social. “Di sempre manteve estreita a ligação entre arte e política. Para ele, o trabalho de arte deveria estar comprometido com uma missão social, a ‘revolução’”. Em 1930, o artista publica o álbum Realidade Brasileira, com a reprodução de 12 desenhos originalmente realizados em nanquim. Os trabalhos combinam textos e desenhos assemelhados a charges. Nestes trabalhos – a exemplo de uma gravura que critica a submissão do Brasil à banca internacional – aparece um burguês de cartola com uma faixa ao peito onde se lê ‘Casa Rotschild’ e, mais abaixo, ‘para os problemas brasileiros, soluções brasileiras’ – saem de sua pena críticas às desigualdades sociais no país e aos intelectuais que idealizam uma noção idílica e romântica de ‘brasilidade’.
Num justo reconhecimento de tudo isso e em uma de suas medidas inovadoras, o presidente João Goulart o indicou para adido cultural do Brasil, na nossa embaixada em Paris, como relata seu filho João Vicente Goulart, em seu livro, “Jango e Eu”. Ele ficou na função apenas quinze dias. Veio o golpe de 1964 e, em mais uma de suas barbaridades, o afastou.
NATHANIEL BRAIA