WALTER NEVES
Professor sênior
Instituto de Estudos Avançados – USP
A pergunta acima parece simples, mas na verdade é extremamente complexa. A única coisa que podemos dizer com certeza é que nós, humanos modernos, somos capazes de algumas proezas que, em princípio, nos apartam completamente do reino animal e mesmo de nossos ancestrais, inclusive os mais recentes. Exemplo dessas proezas é o fato de andarmos de forma bípede (sobre duas pernas), produzir e usar ferramentas, termos um cérebro muito grande (em média 1.350cm3), uma organização social complexa e dependermos, mais das vezes, de comportamentos aprendidos do que instintivos, e de atribuir significado às coisas, aos fatos e à própria vida.
Muitos autores assumiram, no passado, que esse enxoval de coisas surgiu conjuntamente, provavelmente desde nossos primeiros ancestrais e que, portanto, garantida uma delas, todas estariam igualmente garantidas. As últimas quatro décadas de pesquisa paleoantropológica nos mostraram que não poderíamos estar mais errados. Essas características surgiram na história evolutiva dos hominínios (grupo ao qual pertencemos) de forma mais ou menos independentes e não como um pacote pronto e acabado.
Vamos iniciar pela bipedia. Hoje sabemos que andar sobre apenas dois membros surgiu há pelo menos 7 milhões de anos. Mas os primeiros bípedes eram verdadeiros chimpanzés em pé. Não se pareciam em nada com nossa espécie e apresentavam uma capacidade craniana muito reduzida, de cerca de 350 cm3. Portanto, a bipedia não pode ser usada como critério para definir humanidade, até porque ela não apareceu concomitantemente com a capacidade de fazer e usar ferramentas de pedra lascada, nem com um aumento significativo do cérebro, para dar dois exemplos.
Até meados dos anos 1960 éramos tidos como a única espécie a fabricar e utilizar ferramentas. Isso caiu por terra já com as pesquisas de Jane Goodall, em Gombe, na Tanzânia. Ela mostrou que os chimpanzés por ela detidamente estudados pela primeira vez eram capazes de pegar um galhinho de árvore, retirar as folhas, e usá-lo para pescar cupins. Essa descoberta revolucionou a paleoantropologia desde então. Hoje sabemos que os chimpanzés também são capazes de pegar uma pedra (bigorna), colocar sobre ela um fruto ou uma semente dura, usando outra pedra (martelo) para quebrá-los, extraindo deles a parte comestível. Em décadas mais recentes esses comportamentos foram também descritos para outros grandes primatas. Mais ainda, pesquisas mais recentes têm demonstrado que até mesmo os corvos são capazes de usar uma haste/sonda presa no bico para apanhar larvas sob a casca de árvores. As primeiras ferramentas de pedra lascada têm cerca de 2,6 milhões de anos e não estão associadas a cérebros grandes. Portanto, os primeiros hominínios que as fizeram, o Homo habilis, não tinham cérebros grandes (650 cm3), mostrando novamente que o enxoval que pintamos no início deste artigo não veio de uma vez como um pacote pronto e acabado. Portanto, a fabricação e o uso de ferramentas não podem ser utilizados como critério para definir humanidade.
Um grande paleoantropólogo inglês defendeu nos anos 1950 que nenhum fóssil poderia ser classificado como Homo se não apresentasse uma capacidade craniana acima de 750cm3. Esse critério, entretanto, tem se mostrado difícil de ser empregado. Um exemplo disso é que pesquisas efetuadas nas últimas duas décadas na Ilha de Flores, Indonésia, revelaram que ali viveu entre míseros 100 e 50 mil anos, uma espécie anã de hominínio, classificada como Homo floresiensis, com uma capacidade craniana de cerca de 400 cm3 (mais ou menos aquela de um chimpanzé) e com alguns comportamentos bastante modernos. Outro óbice à utilização de uma grande capacidade craniana para definir o humano é que os neandertais, que se extinguiram por volta de 39 mil anos atrás, apresentavam uma capacidade craniana de cerca de 1.650 cm3, portanto 10% maior que a nossa. Entretanto, não há evidências incontestáveis de que tinham toda a extensão de nosso pensamento abstrato, sobretudo comportamento simbólico. Em outras palavras, se cérebro grande for utilizado como critério de humanidade, teríamos que tornar os neandertais parte dela, ideia essa que causa arrepios à maioria dos paleoantropólogos, aí incluído o autor deste artigo.
Organização social complexa também não pode ser usada como critério para definir humanidade. Estudos de comportamento animal efetuados nas últimas três décadas têm mostrado que a maioria dos mamíferos gregários, a têm. Isso sem mencionar os insetos sociais, como abelhas e cupins, que têm uma estruturação social bastante complexa, incluindo aí a formação de castas e a definição de funções específicas. Dando um salto para os grandes símios, esses também apresentam organização social complexa, com a definição de machos dominantes e de haréns, por exemplo. Nesses símios, o status de um indivíduo jovem pode ser extremamente influenciado pelo status da mãe ou do pai. Entre chimpanzés é comum a formação de coalizões entre diferentes machos para patrulhar o território do grupo, garantindo assim acesso exclusivo às fêmeas do bando. Essas coalizões também são formadas quando esses grandes símios se organizam para a caça de pequenos macacos que vivem com eles nas mesmas florestas. Novamente, o critério organização social complexa não poder ser usado para definir o humano. O que há são diferenças quantitativas e não qualitativas. Também não há uma relação entre complexidade social e tamanho cerebral. Aqui cabe lembrar que a capacidade craniana de um chimpanzé não ultrapassa 450 cm3.
Também o penúltimo item do suposto enxoval, ou seja, a dependência de comportamentos aprendidos socialmente, não se mantém de pé para definir humanidade. Nas últimas duas décadas o panorama sobre esse assunto mudou drasticamente. Hoje sabemos, por exemplo, que o canto dos pássaros, a vocalização das baleias e dos golfinhos dependem, em muito, de aprendizado social. Partes desses traços são de fato instintivos, mas um pássaro, por exemplo, só conseguirá expressar em toda sua extensão o canto de sua espécie se for socializado com adultos. Cabe lembrar, também, que o repertório de cantos e de vocalizações varia de grupo para grupo numa mesma espécie. Dois outros exemplos, dessa vez com primatas, também mostram a importância de comportamentos aprendidos com adultos. Jovens chimpanzés aprendem com eles como preparar varetas para pescar cupins e macacos-pregos aprendem com os membros mais velhos do grupo como quebrar sementes e frutos duros usando pedras naturalmente disponíveis como bigornas e martelos. Esse aprendizado ocorre, entretanto, por observação, tentativa e erro. Não há processo pedagógico ativo envolvido. Mais uma vez, estamos tratando de um critério que não é qualitativo, mas apenas quantitativo. Simplesmente expressamos em maior extensão aquilo que já ocorre no mundo animal, sobretudo entre os grandes símios.
O que dizer da capacidade de pensamento abstrato e simbólico, o último item do pacote? De fato, um dos fatores que mais nos caracteriza é o fato de atribuirmos significado a tudo: coisas existentes e não existentes, fatos e à própria vida. Somos verdadeiras esponjas de significação. Vivemos suspensos numa teia de significados. Existem evidências de que outros animais apresentem comportamento simbólico? Nem a mais mínima! Mesmo analisando nossos parentes mais próximos na natureza, os chimpanzés, não há o menor indício de que esses atribuam sentido às coisas ou, em outras palavras, que tenham uma vida interior. Nossa capacidade de significação se expressa em vários aspectos de nossa vida: religião, arte, fala, escrita, literatura, entre outras. Assim chegamos finalmente a um item do enxoval que parece de fato nos apartar completamente do resto da natureza e definir o que é humanidade. Se o pensamento abstrato/simbólico é então o critério que define o humano, uma pergunta necessariamente emerge dessa conclusão: desde quando existe na história da evolução dos hominínios vestígios materiais de significação? Nos 7 milhões de anos da evolução hominínia apenas o Homo sapiens, que surgiu há meros 200 mil anos os exibe? Aí entra a arqueologia e sua materialidade.
Não é propriamente uma tarefa fácil buscar no registro arqueológico evidências de comportamento simbólico, até porque o registro arqueológico é muito falho e imperfeito. São praticamente dois tipos de comportamento simbólico que deixam evidências arqueológicas: a estética e a arte e o enterro ritualizado dos mortos. Por falta de espaço, vou me concentrar aqui na primeira categoria de evidências.
Até bem pouco tempo os vestígios de arte e estética mais antigos conhecidos no planeta datavam do Paleolítico Superior, período da pré-história que vai de 45 a 10 mil anos atrás. Esse período é precedido pelo Paleolítico Médio e Inferior, para os quais, em princípio, não existe qualquer tipo de vestígio material de preocupação estética ou artística. O Paleolítico Superior ocorreu em todo o planeta, mas foi na Europa que ele apresentou seu maior esplendor. Ali, além de pinturas e gravuras parietais magníficas, como as de Chauvet, Lascaux e Altamira, são encontrados também diversos tipos de esculturas e uma vasta gama de adornos corporais, incluindo o uso intenso de pó de hematita (ocre) e de manganês muito provavelmente utilizados também para a pintura corporal (além de sua utilidade como pigmentos para a pintura parietal).
Richard Klein, da Universidade de Stanford, demonstrou que o surgimento da arte no início do Paleolítico Superior na Europa coincidiu com uma grande explosão de criatividade em todos os setores da vida, incluindo aí a tecnologia. Exemplo disso é que no Paleolítico Médio a caixa de ferramentas de pedra lascada não ultrapassava 20 itens. No Paleolítico Superior essa caixa de ferramentas pulou para cerca de 100 instrumentos especializados. Até antes do Paleolítico Superior os hominínios nunca haviam utilizado sistematicamente ossos, dentes ou chifres como matérias primas para produzir artefatos. A partir de então, passaram a ser vastamente utilizados tanto para a fabricação de objetos utilitários quanto de adornos corporais. Para alguns, as primeiras armas de propulsão também surgiram nesse período, e os propulsores de osso eram ricamente adornados através de incisões efetuadas por uma ferramenta de pedra lascada, chamada buril, antes também não existente.
Klein chamou esse conjunto de inovações de a “Revolução Criativa do Paleolítico Superior” (RCPS). Para ele o surgimento do homem moderno teria ocorrido em dois eventos sucessivos e complementares: primeiramente teria surgido o homem anatomicamente moderno, por volta de 200 mil anos, para só, a partir de 45 mil anos atrás, ter surgido o homem comportamentalmente moderno, ou seja, criaturas exatamente como nós, prenhes de significado. Até recentemente isso parecia fazer todo o sentido do mundo, já que os esqueletos dos primeiros homens anatomicamente modernos, ou seja, aqueles datados entre 200 e 45 mil anos atrás, estavam sempre associados à cultura do Paleolítico Médio, praticada, por exemplo, pelos neandertais, nossos contemporâneos no planeta. Mas o que estaria por trás da RCPS? Para Klein por volta de 50 mil anos, ocorreram mutações no nosso genoma que mudaram completamente a circuitaria interna de nosso cérebro, mudanças essas que não deixaram impressão na parte interna dos ossos cranianos.
O modelo de Klein predominou na literatura por quase duas décadas, quando novas pesquisas na África do Sul passaram a questioná-lo. Aqui é necessário fazer um parêntese. Muitos sítios arqueológicos datados entre 100 e 30 mil anos atrás foram intensamente escavados na Europa e no Oriente Médio no século 20, mas pouquíssimos sítios na África o foram. É possível, portanto, que o cenário pintado por Klein sofresse de um forte viés eurocêntrico. As novas pesquisas na África do Sul mostraram que esse era exatamente o caso. Nelas foram encontradas evidências incontestáveis de que ali, entre 130 e 70 mil anos atrás, o Homo sapiens já tinha pendores artísticos.
Em níveis datados desse intervalo de tempo, principalmente na caverna de Blombos, mas não somente nela, os arqueólogos encontraram tabletas de ocre ricamente adornadas, conchas marinhas perfuradas para compor colares ou pulseiras, e pasmem, fragmentos de cascas de ovos de avestruz também ricamente adornados com motivos geométricos (as cascas de ovos de avestruz são ainda hoje usadas como cantis por grupos caçadores-coletores do deserto do Kalahari, por exemplo). Mas chama a atenção o fato de que esses pendores artísticos encontrados na África entre 130 e 70 mil anos atrás não estão associados à uma explosão de criatividade, como ocorreu no Paleolítico Superior da Europa. Ainda não há uma boa resposta para isso. De qualquer forma, há um elemento no modelo de Klein que ainda sobrevive: a ocorrência de um intervalo de tempo entre o surgimento do homem anatomicamente moderno (200 mil anos) e do homem comportamentalmente moderno (130 mil anos). Os grandes opositores de Klein acreditam que na medida em que as pesquisas na África avançarem esse gap será preenchido!
Mas as descobertas no sul da África mostrando atividade artística entre o Homo sapiens a até 130 mil anos atrás não foram o único golpe que o modelo da RCPS sofreu. Nos últimos anos, descobertas feitas na Península Ibérica, em Gibraltar, na Itália e na Croácia começaram a apontar que talvez os neandertais também teriam tido capacidade de expressão simbólica, mas apenas a partir de 60 mil anos atrás. Aqui cabe lembrar que os neandertais surgiram na Europa por volta de 200 mil anos, tendo sido completamente extintos por volta de 39 mil anos. Antes, porém, de sua extinção, muito provavelmente causada pelo enfrentamento com o Homo sapiens, os neandertais tiveram uma grande dispersão: desde a Europa ocidental até o sul da Sibéria. Praticavam uma indústria lítica denominada Musteriense (ou Paleolítico Médio), muito inferior àquela do Paleolítico Superior. E, de acordo com Klein, não exibiam qualquer tipo de comportamento simbólico.
Não cabe aqui dissertar em detalhes sobre cada descoberta. Na Cantábria foram encontrados sinais de pinturas rupestres datadas de até 60 mil anos, quando o homem moderno ainda não tinha entrado na Europa. O mesmo pode ser dito quanto aos vestígios de inscrições rupestres cobertos por níveis musterienses encontrados em Gibraltar e datados de cerca de 45 mil anos, quando o Homo sapiens ainda não tinha chegado à região, isso sem mencionar a possibilidade dos neandertais terem usado garras de águias como adornamento corporal e penas pretas para decorarem seus corpos. A questão é que essas descobertas têm sido imensamente criticadas. Por exemplo: a grande maioria dos grafismos rupestres atribuídos aos neandertais na Península Ibérica foi datada por Urânio/Tório sobre camadas de calcita que os recobriam. Ocorre que a calcita que escorre nos paredões calcários pode gerar datas mais antigas do que realmente são, porque a ação da água pode lixiviar o Urânio, levando a um aumento artificial das datações obtidas. Críticas tão ou mais contundentes como essa foram feitas à tal utilização de garras de águia e de penas pretas por parte dos neandertais para adornar seus corpos. As evidências são muito débeis para fazer afirmações tão contundentes. Em Ciência, alegações extraordinárias demandam evidências também extraordinárias. E, definitivamente, esse não é o caso dos vestígios que supostamente apontam para comportamento simbólico entre os neandertais. Mas mesmo se aceitarmos que os neandertais tinham algum nível de comportamento simbólico, fica uma grande questão: por que no caso deles o comportamento simbólico não levou à uma explosão tecnológica, como ocorreu no Paleolítico Superior?
Tudo isso posto, voltamos ao título deste artigo: “Desde quando existe no planeta algo que podemos chamar de humanidade?”. Levando todas as evidências que temos no momento, parte delas apresentada nos parágrafos anteriores, a resposta mais parcimoniosa parece ser que a humanidade emergiu no contexto do surgimento do Homo sapiens, a partir de uns 150 mil anos, quando nossa espécie começou a expressar as primeiras manifestações estéticas e artísticas. Mas e os neandertais? E se eles de fato no final de sua trajetória no planeta começaram também a manifestar comportamento simbólico? Nesse caso só há duas alternativas: ou redefinimos o que é humano, o que vai ser muito difícil, ou estendemos a eles o caráter de humanidade!!!
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Talvez o que pode particularizar humanidade é a crença religiosa. Em todas as regiões da Terra há um grupo que conhece a possibilidade da existência de alguma espiritualidade. Isso é desde que o homem é homem.