O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) avaliou que a postura adotada por Jair Bolsonaro na crise do coronavírus, que já provocou a morte de mais de 11 mil pessoas, deixou o Brasil sem comando e à mercê de uma série de desentendimentos políticos sem sentido, que tiram o foco da tarefa de salvar vidas. “Quando o presidente perde o rumo, o país todo fica atônito”, observou.
“É bastante patético o que nós estamos vivendo”, afirmou o tucano, durante entrevista à repórter Lígia Guimarães, da BBC News Brasil, por meio de conferência virtual. “O desentendimento político já vinha de antes, mas agora fica sem sentido: briga sem parar, o presidente dá cambalhota e ele mesmo escorrega”, frisou.
Para Fernando Henrique Cardoso, o presidente da República tem se distraído das prioridades lutando contra armadilhas criadas por ele mesmo. Segundo o ex-presidente, a decisão de trocar ministros, como o da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, gera ainda mais turbulência e torna o governo mais fraco. A falta de uma figura que fale à população com clareza e liderança, diz o ex-presidente, torna a crise ainda mais delicada.
“Eu me lembro de uma crise no meu governo, naquele tempo era crise de energia elétrica, o apagão. Quando eu soube, levei um susto, mas eu chamei todo mundo: oposição, governo, e falava, falava, explicava. Pedia apoio”, contou.
O ex-presidente destacou que o caminho escolhido por Bolsonaro de contrariar recomendações internacionais e tornar-se cada vez mais isolado vai justamente na contramão do que o país precisa e precisará para sair da enorme crise, que exigirá endividamento público e apoio para socorrer grande parte da população.
“Tem que haver uma preocupação que tem que vir não só do governo, mas da sociedade, no sentido da solidariedade. Mesmo que você seja egoísta, eu acho que não deve ser, mas se for egoísta, pense que no futuro esse egoísmo custa caro. Depois ele vai cobrar o preço”.
Ele acrescentou: “É o momento em que precisamos ter visão mais clara, a esperança de que vamos atravessar e unidade para atravessar. Falta é comando. Não no sentido de dar ordem, mas de fazer apelo, no sentido de incluir as pessoas”.
FHC, que ocupou a presidência da República por oito anos, de 1995 a 2002, reconheceu que a pandemia da Covid-19 também expôs de maneira gritante as mazelas sociais do Brasil, em que grande parte da população não tem condições de se proteger da doença.
“Falhamos até certo ponto, porque eu me lembro no passado não era melhor, era muito precário. O serviço público de saúde, por exemplo, o SUS, houve um avanço enorme. Porque no passado não tinha, quem não tinha recursos ia para a Santa Casa de Misericórdia, era isso. Agora tem o Serviço Universal de Saúde pública e gratuita. É bom, é mau, é o que tem. Podia melhorar. Poderíamos dar, com mais previsão, orçamento para eles melhorarem. Mas é positivo. Eu nasci em 1931. No meu tempo, isso aqui era considerado um país rural. Porque era rural”, disse.
O ex-presidente advertiu ainda que a sociedade brasileira habituou-se a aceitar a desigualdade, e alertou para o risco de que, passada a fase aguda da pandemia, tudo volte a ser como antes. “Nós falamos mal da desigualdade, mas acabamos aceitando. Isso é muito ruim. Agora mesmo nós estamos começando a ver essa situação de desigualdade, o efeito negativo que tem. Eu me lembro que quando tomei posse da presidência pela primeira vez, há muitos anos, eu fiz um discurso em que dizia: o Brasil não é um país pobre, o Brasil é um país injusto. É verdade, é uma das dez maiores economias do mundo. Por que tem tanto pobre?”, questionou.
“É preciso que haja no futuro condições sanitárias, água, água encanada, esgoto. Essas questões que são difíceis, são caras, mas é preciso que haja. E habitação. Tudo isso é caro. Você não vai ter nada disso se não tiver crescimento da economia, eu sei disso. Tem que haver investimento, tem que haver crescimento”, apontou.