BETO ALMEIDA (*)
“Foi o chefe mais amado da nação, a nós ele entregou uma missão, que não largaremos mais”
Música Dr. Getúlio, Chico Buarque e Edu Lobo
Toda essa necessária discussão atual sobre a extorsão da Tirania Videofinanceira praticada pelo Banco Central contra o direito de desenvolvimento econômico e social do povo brasileiro, consignada nas taxas de juros, mas também no Sistema da Dívida, que esterilizam a proclamada industrialização, é um dos temas que nos fazem recordar a atualidade de Getúlio Vargas. Foi o presidente da República que realizou uma auditoria da Dívida Pública Brasileira, reduzindo-a em mais da metade, para que fossem garantidos os investimentos necessários aos programas sociais e à industrialização do Brasil.
Realmente, não houve gesto mais consequente diante da tirania financeira, na época comandada por bancos ingleses, que estavam por trás da mal rotulada Revolução Constitucionalista de 1932, que, na realidade, como disse o próprio presidente Lula recentemente, “não foi revolução, mas uma tentativa de golpe contra o governo Vargas”.
Exatamente porque os bancos ingleses, detentores da dívida externa brasileira, agindo em nome do imperialismo, queriam abortar, desde o início da Era Vargas, a proposta de industrialização baseada no protagonismo do Estado que já se iniciara no Governo Provisório.
Apoiada pelos bancos ingleses, a oligarquia paulista levou o Brasil a uma Guerra Civil de seis meses de duração, com vistas a manter o Brasil como “uma grande fazenda de café”, destinado a ser eterna colônia fornecedora de matérias-primas.
É de se lamentar que o presidente Lula não conclua o próprio pensamento insinuado na denúncia do golpismo paulista contra Vargas. O golpismo continua atuando, com outras ferramentas, mas em nome dos mesmos interesses – as Aves de Rapina!
A COAÇÃO DA HISTÓRIA
Em 1910, ainda estudante de Direito, o jovem Getúlio Vargas, então líder estudantil, foi encarregado de fazer uma saudação ao presidente da República eleito, Afonso Pena, quando em visita a Porto Alegre: “Pobres os países submetidos à coação da história, em que são obrigados a comprar, a preços extorsivos, produtos industrializados a partir de sua própria exportação de matérias-primas subavaliadas”, sentenciou o jovem Getúlio.
O que nos permite constatar a linha de coerência de seu pensamento de líder estudantil, como o que aplicaria mais tarde, já presidente, na condução da política econômica industrializante de seus governos, para o que criou ferramentas estatais, como o BNDES, que, até hoje, comprovam sua vigência, apesar da ausência de uma política eficaz de enfrentamento, no momento, com a tirania financeira.
A coação da história atual já tem números “desagradáveis” a apresentar, para usar um adjetivo que tem frequentado discursos do presidente Lula, especialmente no que toca à Venezuela. Em 1980, o Brasil detinha um PIB industrial superior ao da China e dos Tigres Asiáticos somados.
Estávamos então no período final daquilo que as diversas correntes de economistas brasileiros, até mesmo os mais colonizados, admitem como o fim da Era Vargas, que vai de 1930 a 1980, período em que o Brasil foi um dos países que mais se industrializou e cresceu. Depois disso, já com Figueiredo, o Brasil reprimarizou sua pauta de exportações, e hoje registra um PIB industrial que sequer alcança 30% do registrado pela República Popular da China.
Aliás, no momento em que comemoramos os 50 anos de relação bilateral construtiva entre Brasil e China, relações que foram retomadas pelo governo Ernesto Geisel – um ex-tenentista varguista que pegou em armas na Revolução de 1930 – desponta a oportunidade para uma reflexão menos corriqueira e mais estratégica sobre esta situação.
A manobra imperial realizada, lamentavelmente com sucesso, para impedir que Geisel emplacasse um sucessor de sua linha, provavelmente o general Andrada Serpa, que era dos mais cotados, um general estatizante que chegara a defender publicamente a Revolução Chinesa em debate com estudantes na UnB. “Se Mao Tse Tung conseguiu transformar a China, o Brasil conseguiria fazer infinitamente mais”, dissera, arrancando aplausos da estudantada.
FHC: PRECISAMOS DESTRUIR A ERA VARGAS
Não por acaso, o comando do Brasil a partir do aborto ao formato de sucessão pretendida por Geisel foi recair exatamente nas mãos do general Figueiredo, filho daquele que havia sido o chefe militar da Contra-Revolução de 1932, em nome do financismo inglês e da pauta da desindustrialização, que toma vulto na forma de um Sistema de Dívida Externa monitorado de fora, combinado com medidas que, a partir da sabotagem para que Leonel Brizola não passasse ao segundo turno nas eleições presidenciais de 1989, resultaram na eleição de Fernando Collor, quando o desmonte do Estado se acelera, a começar pela desestruturação da Petrobras, ainda a nossa maior estatal, a maior de toda a América Latina.
Quando Fernando Henrique Cardoso, eleito sob o cabresto do Consenso de Washington, declara que “precisamos destruir a Era Vargas”, confessando assim sua absoluta vassalagem aos ditames hegemônicos dos EUA, a operação de “Exterminador do Futuro do Brasil” adquire um grau de articulação e coerência que, uma vez mais, pela forma trágica, revelava a importância histórica e a atualidade do presidente Getúlio Vargas para o Brasil.
Com FHC, a taxa Selic chegou a 48%, um paraíso para os banqueiros. A destruição era de conjunto, com método e profissionalismo, a ponto de o Brasil chegar ao desarmamento unilateral, o que, para um país com tal abundância de riquezas e território, consiste em declaração de uma rendição antecipada perante os crescentes apetites intervencionistas dos EUA e demais sócios da Otan.
As declarações ingerencistas da generala Laura Richardson, chefe do Comando Sul do Exército dos EUA, não deixam a menor dúvida quanto a isso: esta senhora teve o desplante de recomendar que “o Brasil não deve aprofundar sua cooperação com a China”.
O mais curioso e revelador foi o silêncio do Itamaraty frente à escandalosa intromissão de representante dos EUA em nossos assuntos internos. Os itamaratecas não murmuraram sequer um “desagradável”, adjetivo que circula com frequência elevada quando se trata de ingerência em assuntos internos da Venezuela.
Quem respondeu, com altivez que o Itamaraty não demonstrou, foi a própria Embaixada da China no Brasil, repelindo a declaração hegemonista da pirata gringa e exigindo respeito para a elevada e construtiva cooperação Brasil-China, não por acaso já superior à relação nada horizontal que o Brasil tem com os EUA. Que falta nos faz um brasileiro como Samuel Pinheiro Guimarães à frente do Itamaraty!
REINDUSTRIALIZAÇÃO E VARGAS
Muito embora existam círculos progressistas tentando, inutilmente, esterilizar os inconvenientes perigosos e os efeitos desastrosos de uma relação submetida aos EUA, a experiência demonstra que a política neoliberal de Estado mínimo e de privatizações selvagens, inclusive a preços negativos, protagonizada principalmente pelo FHC, conduziu o Brasil a esta posição de retrocesso para tornar-se, novamente, um grande exportador de matérias-primas, no fundamental.
Já no governo Getúlio Vargas, a política externa brasileira se aproveitava legítima e inteligentemente do contexto mundial para consolidar o protagonismo do Estado – a Companhia Siderúrgica Nacional foi um caso inédito em que os EUA financiaram uma estatal. Não aproveitava as circunstâncias da época para falar grosso com a Nicarágua e falar fino com os EUA, como agora, quando é impossível esconder os laços de marionetes que comandam o Banco Central a partir do Banco Central dos EUA.
“Abre Alas, que o Gegê vai passar, na memória popular”, alerta o belo samba de Chico e Edu Lobo. Aliás, apesar de demonizado pela Rede Globo, pelo academicismo subalterno da USP, pela sociologia de vassalagem, pelo udenismo neocolonial que inspirou até alas da esquerda, em vários momentos, Getúlio Vargas comparece novamente ao Debate Nacional, ecoando em ideias contundentes como o estampido daquele tiro no coração do Brasil que fez todo um povo chorar e levou as aves de rapina a fugir!
O LEGADO DE VARGAS
Comparece, inclusive, no debate da comunicação, como, por exemplo, na criação da Voz do Brasil – primeira experiência de regulamentação informativa no Brasil, enfrentando a tirania do mercado midiático. Mas, também, com a nacionalização da Rádio Nacional, com a criação da Rádio Mauá, a Emissora dos Trabalhadores, na qual entidades sindicais figuravam em sua direção.
Nem se pode esquecer o jornal Última Hora, o único a defender o aumento de 100% do salário mínimo e a criação do décimo terceiro salário, numa linha editorial popular, trabalhista e nacionalista que o levou a ser escola de jornalismo, o único diário que defendeu o governo Jango frente ao Golpe de 1964.
Este Getúlio comparece ao debate nacional, esgrimindo a necessidade da regulamentação do trabalho, inclusive da profissão de jornalista, na qual foi pioneiro, inclusive na destemida doação do imponente edifício-sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), de onde até tentaram, absurdamente, esterilizá-lo, e onde agora também promovem necessárias reflexões sobre o Legado de Vargas.
Para quem começou na vida política recebendo capas de jornais e revistas do antivarguismo, bem como olhares indulgentes da Fiesp e da Igreja Católica Escola Paga, Lula até que foi bastante corajoso ao visitar o Mausoléu de Vargas, em março de 2017, para homenageá-lo, revisando suas antigas críticas ao presidente gaúcho, poucos dias antes de ser preso pela Operação Neocolonial Lava Jato, comandada pelos EUA para desindustrializar o Brasil ainda mais, além de rapinar o petróleo, alterando a legislação no dia seguinte à derrubada de Dilma, ela também uma simpatizante do varguismo.
Mas, sendo importantes para as novas gerações as revisões históricas de Lula, inclusive o pedido de perdão público que fez a Brizola e Darcy Ribeiro por não ter apoiado os Cieps, a grave situação de estrangulamento que o Brasil vive hoje precisa mais do que revisões e mea culpas.
O maior legado de Vargas foi ter construído uma Unidade Nacional contra o imperialismo e as oligarquias desindustrializantes, uma maioria capaz de gerar a energia social e a força política capazes de enfrentar toda a coação da História, todas as tiranias financeiras, bem como toda a pedagogia da subserviência acadêmica e tecnológica.
É a esse Getúlio Vargas que o Brasil deve resgatar, do presidente da República ao petroleiro, do sem-terra ao intelectual, dos sindicatos aos movimentos sociais, dos militares aos empresários nacionalistas, para recolocar o país nos trilhos de uma definitiva e verdadeira emancipação nacional.
(*) Beto Almeida é conselheiro da ABI e diretor do documentário “Vargas, a transformação do Brasil”. Artigo publicado originalmente no Monitor Mercantil de 24 de agosto.