MIGUEL DO ROSÁRIO (*)
Danton, o grande revolucionário, tinha uma máxima que se tornou uma das frases mais emblemáticas da revolução francesa: é preciso audácia, mais audácia e sempre audácia!
A diferença de audácia para coragem, me parece, é que o termo agrega alguma coisa de criatividade. Uma pessoa audaciosa não é apenas corajosa; ela também é inventiva!
O debate de hoje é sobre loucura, audácia e heroísmo.
Uns falam que Cid Gomes foi um destemperado, um louco, mas que fez o certo, interrompendo um processo golpista em curso, em que lideranças da milícia fomentavam movimentos subversivos dentro dos batalhões de polícia militar, visando fomentar um clima de desordem que apenas seria apaziguado com a entrada em cena, triunfante, do presidente Jair Bolsonaro.
Se havia um plano ardiloso desse tipo, seus organizadores não esperavam bater de frente com alguém como Cid Gomes.
Outros adotam uma posição curiosa: Cid não é louco nem heroi, dizem, como se essas qualidades fossem excludentes entre si, como se, na história do mundo, houvesse algum heroi que não tenha sido também um louco!
Há circunstâncias em que o louco é o único são!
Afinal, o que é ser louco?
O revolucionário, o santo, o gênio, não são quase sempre loucos?
É exatamente o que aconteceu em Sobral. Cid Gomes pode ter sido imprudente, mas este é um daqueles momentos em que os surrados versos de William Blake se aplicam com todo o seu esplendor:
“A prudência é uma velha solteirona rica e feia, cortejada pela impotência”.
Eu queria saber onde estava essa prudência toda em 2018, quando alguns levaram adiante estratégias que não foram exatamente um modelo de bom senso… e que resultaram numa vitória esmagadora de Jair Bolsonaro nos estados mais populosos do país.
As críticas que se fazem à atitude de Cid Gomes tentam empurrar falácias que é preciso neutralizar. A primeira delas é que ele tivesse intenção de machucar qualquer pessoa com sua escavadeira.
Pelo que se pode ver nos vídeos, sua intenção era apenas deslocar o portão, para que o acesso à área pública próxima ao Batalhão, mantida sob isolamento ilegal pelos delinquentes, fosse liberada, permitindo que os cidadãos de Sobral a ocupassem e pusessem fim ao terror.
Essa mentira serve para “justificar” os tiros que ele levou como um ato de “legítima defesa” dos policiais.
Não foi assim. A retroescavadeira, operada por Cid, move o portão, sem machucar ninguém, e pára.
Os tiros são disparados na direção do senador DEPOIS da retroescavadeira ter sido desligada.
Cid Gomes não foi louco. Foi um heroi.
Tem sido tão raro testemunharmos atos de heroísmo nos últimos anos que as pessoas perderam a capacidade de reconhecê-los quando se deparam com um.
Em determinadas crises, como essa das polícias militares, é exatamente disso que precisamos, de um pouco de heroísmo e suas inevitáveis pitadas de loucura.
É curioso assistir a todos aqueles partidos e lideranças de esquerda, que vem, desde a campanha eleitoral de 2018, denunciando o avanço do fascismo, algumas vezes com algum fundamento, mas frequentemente apenas como retórica de mobilização política, agora mantenham um silêncio constrangido, quase hostil, em relação a um atentado brutal que por pouco não mata um senador que enfrentou, praticamente sozinho, um bando de fascistas encapuzados e armados!
O PT divulgou uma nota muito curiosa sobre o episódio, na qual o Cid é mencionado no subtítulo, mas o título é… “Nota do PT em solidariedade a Camilo Santana”.
Camilo não levou nenhum tiro e não precisa de “solidariedade”. Como governador, ele precisa de ação política do partido para resolver o problema. Quem está no hospital é Cid, quem levou tiro foi ele, então a solidariedade deveria ser destinada a ele! A ele, ou então ao povo cearense, que vive mais uma crise de segurança pública!
Haddad divulgou dois tweets tão carregados de cálculo político que soaram simplesmente falsos: no primeiro, afirma que “há clara tentativa de desestabilizar um dos melhores governos da história do Ceará. Camilo Santana, com sua habitual firmeza e sobriedade, saberá enfrentar mais esse desafio. Todo apoio ao governador”.
O ex-prefeito preferiu fazer política partidária (a “sobriedade” é obviamente um contraponto à “loucura” de Cid) a denunciar a tentativa de homicídio de um velho companheiro de luta.
No segundo tweet, diz que deseja “pronto restabelecimento ao senador Cid Gomes, um dos melhores quadros políticos do Nordeste”.
Mais tarde, Haddad irá retuitar novamente o primeiro tweet, que fala de Camilo, mas não o segundo, que fala de Cid…
Nem na nota do PT, nem na mensagem de Haddad, não há o menor traço de indignação contra uma tentativa de assassinato de um senador da república.
O desejo de “pronto restabelecimento” poderia ser dito no caso do senador Cid Gomes ter contraído uma pneumonia. Não foi o caso: ele foi vítima de uma tentativa de homicídio qualificado, por parte da polícia militar do Ceará, um estado governado pelo PT!
O silêncio mais hostil e constrangedor, no entanto, veio do PSOL. Nenhuma de suas lideranças fez qualquer menção a um episódio que está na capa de todos os grandes jornais do país. É capa do Globo, da Folha, do Estadão, e ocupa todos os telejornais importantes desde ontem à noite.
O seu presidente, Juliano Medeiros, seguiu a linha petista (como de praxe, aliás), usando inclusive a mesma expressão: desejou “restabelecimento” de Cid Gomes, como se ele tivesse contraído o Coronavírus. Nenhuma palavra sobre o fato dele ter sido atingido por dois tiros de arma de fogo, disparados por policiais encapuzados que estavam aterrorizando uma cidade inteira.
Nenhuma palavra igualmente contra o terrorismo promovido pelos policiais em Sobral. Hoje sabemos que não foi apenas em Sobral. O movimento roubou dezenas de viaturas em Fortaleza e estava promovendo ações de sabotagem em todo o estado.
Num segundo tweet, Medeiros atua como “gourmet” de milícia.
A frase de Medeiros soou quase como uma desses ridículas acusações identitárias de “apropriação cultural”.
Ora, se havia diversos representantes do Rio com ligações com a milícia, como a deputada Major Fabiana (PSL-RJ) (ver este link, que achei em 10 segundos de pesquisa), atuando junto aos delinquentes do Ceará, se os encapuzados agiram exatamente como fazem milicianos no Rio de Janeiro, intimidando o comércio local, como assim não se falar em milícia?
Além disso, é um tanto ridículo achar que a única polícia corrupta no Brasil é a do Rio de Janeiro. Se outras polícias são corruptas, e mandam matar gente, se participam de operações de queima de arquivo, temos características claramente milicianas.
Com base numa pesquisa feita em 2019, com dados atualizados até 2017, pelo Ministério da Justiça, sobre a situação de policiais militares e bombeiros, podemos ver que o efetivo das PMs de todos os estados constituem o maior contingente armado do país: são 403 mil policiais, contra 359,38 mil servidores nas Forças Armadas, 13,7 mil policiais federais, 10 mil policiais rodoviários federais e 109,9 mil bombeiros militares.
Se a polícia adere ao crime, e se o Estado se omite, nem que por um dia ou dois, cabe aos cidadãos organizar a resistência, para proteger suas próprias vidas e patrimônios, que ficam expostos, na ausência da polícia, a ações de criminosos. Foi isso que Cid fez. Sua primeira ação foi organizar (ou tentar, ao menos) um sistema de autodefesa, onde os próprios moradores de Sobral, trajando camisas laranjas (que foram providenciadas), fariam a segurança pública dos bairros mais vulneráveis. Essa é a única reação digna de uma comunidade independente, orgulhosa e democrática, como parece ser a comunidade de Sobral, e serve também para criar um fato político que obrigue as autoridades a tomarem atitudes enérgicas contra a subversão policial.
Para ser justo, a única nota decente do PT veio da ex-presidente Dilma, que deu o tom correto:
Horas depois do enfrentamento, os fascistas desocuparam o Batalhão, e a vida de Sobral voltou imediatamente ao normal. Os fascistas deverão ser demitidos, presos, processados – essa é a promessa do secretário de Segurança do governo. Sobral amanheceu repleta de agentes federais, da PF, da Força Nacional e da PRF, enviados pelo Ministro da Justiça. Agora falta normalizar outras regiões do estado, incluindo Fortaleza.
Uma das balas que atingiram o senador ainda se encontra alojada em seu peito. Apesar dos médicos terem afirmado que ele não corre mais riscos, a verdade é que ainda haverá riscos enquanto ele não for submetido a uma cirurgia, retirar o projétil, e passar bem.
(*) Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha
Matéria reproduzida do blog O Cafezinho