DAVI MOLINARI
Entrei no Fale Mais Sobre Isso com aquela cara de quem acabou de engolir um limão inteiro. O boteco estava lotado, como sempre — mesas cheias dentro e fora, um zoológico democrático: do executivo estressado ao artista desempregado, passando por uns sujeitos que pareciam saídos de uma convenção de terraplanistas arrependidos.
Era como uma Suíça no meio da guerra civil brasileira — neutro por fora, fervendo por dentro. Sobretaxa americana? Confere. STF acuado? Confere. Congresso coagido pra aprovar anistia pros golpistas? Confere também. Faltava só tocar o hino e servir o caos como aperitivo.
O Doutor já estava lá, no canto de sempre, com aquele ar de esfinge cansada, rabiscando no bloquinho como se decifrasse a mente do país. Nem olhou — só fez o gesto clássico de “pode sentar e desabafar”.
Juvenal apareceu logo depois, o garçom de sempre, eterno e indignado, equilibrando duas tulipas de chope e uma porção de manjubinha frita.
— Hoje sem destilados, hein? — avisei, meio rindo. — Medo de virar estatística de envenenamento coletivo.
Juvenal largou as travessas e já começou o desabafo:
— Pois é, patrão! Uma semana sem vender uma gota de cachaça! Adulteraram tudo! Adulteram os destilados com etanol adulterado com metanol — veneno puro! Isso que eu chamo de biadulteração total! Enquanto as boas marcas se gabam dos bidestilados, esses canalhas inventaram os biadulterados: duplamente falsificado, duplamente mortal!
Ele deu uma risada nervosa, meio raivosa. Eu mordi a manjubinha e fiz a comparação inevitável:
— É como o patriotismo do Eduardo Bolsonaro, Juvenal. Um nacionalismo biadulterado! O cara mora nos Estados Unidos desde fevereiro, articulando sanções contra o Brasil e o STF — e o relator, um ex-delegado da PF, arquiva o processo de “falta de decoro” por falta de provas de traição. Falta de provas? Freud chamaria de negação com sotaque texano.
O Doutor seguia calado, rabiscando como quem anota sintomas de um país em surto. Juvenal trouxe nova rodada de tulipas cremosas e continuou, já no embalo:
— Traição pura, meu amigo! E ainda tem deputado chamando o sujeito de “amigo”. Tudo da mesma panelinha: a presa Zambelli, Kicis, Nikolas, o próprio Freitas… o clube da impunidade. Dei risada.
— Ah, Juvenal, vergonha alheia virou o esporte oficial do Brasil, tipo futebol — só que sem bola e com muita cara quente! Sabe aquela sensação de rubor no rosto e coração acelerado só de ver o vexame dos outros? E o pior: tem gente chamando isso de “liberdade de expressão”.
Juvenal balançou a cabeça, rindo amarelo, e caprichou em mais uma rodada de chope, como se o álcool pudesse diluir tanta loucura.
— E tem gente que ainda comemora o arquivamento na Comissão de Ética, rapaz! — resmungou.
— Incrível — respondi. — Por muito menos, Eduardo Cunha foi cassado: ele mentiu numa CPI. Já Eduardo Bolsonaro, por trair o país, ganha moral como influenciador internacional da vergonha alheia.
O Doutor, então, parou de rabiscar no bloquinho. Ergueu os olhos por cima dos óculos, com aquela cara de quem sabe o segredo do universo, e soltou a pérola, num tom que misturava Freud com stand-up comedy:
— A verdadeira adulteração é a do eu interior, quando o patriotismo não passa de uma máscara barata pro narcisismo em grupo. Tipo: “eu amo meu país, mas só se ele for do meu jeitinho — e dane-se o resto.”
Silêncio. O bar inteiro pareceu digerir a frase como um gole amargo.
Foi então que chegaram os entregadores, empurrando caixas e mais caixas de destilados novos. Juvenal sorriu, aliviado:
— Trocamos tudo, patrão. Direto da fábrica. Nada de biadulteração por aqui.
Dei um gole no chope e respondi:
— Agora só falta trocar os congressistas adulterados, Juvenal. Porque bitraição não dá. Cassação já!
Publicado originalmente em Divã no boteco. Enviado pelo autor.