EDUARDO DE AZEREDO COSTA (*)
Há mais de duas décadas as “big pharma” vêm reivindicando medidas para aumentar os baixos faturamentos de quem produzia vacinas. No final do milênio passado esse faturamento era de apenas 3% do seu total, em grande parte porque havia produção e desenvolvimento estatal em muitos países e porque o preço unitário de produção de vacinas é baixo pelo volume e desnecessidade de gastos elevados de marketing. A estratégia de expansão privada incluía tornar mais rigorosas as boas práticas de desenvolvimento e produção de vacinas chanceladas pela OMS, além de demandar a proteção de patentes. O Banco Mundial entrou diretamente no assunto não só com financiamento, como até pela indicação e ocupação de cargos em instituições científicas e grupos de trabalho de saúde de organismos internacionais.
Nada disso havia ao tempo dos sucessos da erradicação da varíola, da eliminação da pólio e da raiva humana, do controle da febre amarela, tétano, coqueluche, difteria, rubéola, sarampo, caxumba, hepatite A e B, rotavírus, meningite tuberculosa, meningite meningocócica e por aí vai.
Aceitando tudo como uma evolução inovadora, surpreende as poucas novidades desses últimos 30 anos, entre elas, a vacina para o papilloma vírus merece destaque. A maioria das inovações foram de processo: novas tecnologias para as mesmas vacinas ditas antigas, com um pouco menos de reações adversas ou maiores vantagens econômicas. As tentativas para parasitos mais complexos como a malária e a xistossomíase foram frustradas, como está sendo para o HIV. O desafio da Dengue até agora é a marca mais decepcionante, com a colocação no mercado brasileiro da vacina da Sanofi, de alto custo e sabidamente de baixa eficácia, especialmente nas crianças, recomendada agora só para quem já teve a doença!
Paralelamente foram sendo substituídas vacinas desenvolvidas e produzidas nacionalmente por importação ou por absorção de novas tecnologias de multinacionais, como aconteceu no Brasil. Sem foco, muitos projetos de instituições científicas nacionais não saem dos laboratórios.
Mais recentemente, a partir do 11 de setembro, os EUA deslancharam uma Guerra contra o terrorismo, aí incluído o biológico. CDC e Walter Reed Foundation foram reforçadas para estudos afetos à segurança biológica, como os relacionados ao Antrax e Ebola. Um dos projetos desenvolvidos foi o relacionado ao estudo dos impactos da pandemia de 1918/19 de gripe “espanhola”.
Nos anos de 2007/08 foram publicados tais trabalhos, que analisaram a mortalidade nas cidades dos Estados Unidos, objetivando avaliar se houve influência de medidas não farmacológicas para seu controle.
Quase todas as reações iniciais para controle da COVID-19 no mundo ocidental foram baseadas nesses estudos. O conhecimento gerado na China, por mais de uma razão, ideológica, política e econômica, foi praticamente ignorado, mas influenciou as ações em geral bem sucedidas dos países asiáticos.
Antes, de 2004 em diante, começaram os alertas de pandemias originárias da China, de vírus da gripe. Primeiro foi o SARS-CoV, que desapareceu, e logo a gripe aviária, que claramente não tinha potencial epidêmico pela alta letalidade e baixíssima transmissão entre humanos. No entanto, o Brasil adquiriu, por precaução, 9 toneladas de um pó de oseltamivir, estimulado pela OPAS, pelo “risco iminente”.
Mais tarde, seria a vez da gripe suína, que parecia dar o “agora sim!” para exercícios de controle a nível populacional. Vacinas incluindo esse novo vírus da gripe, em processo clássico, foram desenvolvidas e são atualizadas até hoje. Mas, ao mesmo tempo, novas compras de oseltamivir, sem comprovação de eficácia, foram feitas e vendidas país afora.
Nesse ínterim, a África já enfrentava novo surto de Ebola vírus. E esforços estavam sendo feitos para desenvolver uma vacina, por vários países. Com alta letalidade, o controle se baseava no isolamento dos doentes e proteção individual. O pior surto de Ebola ocorreu entre 2013-16. Ao final, tinha-se mais de uma vacina, mas a epidemia foi controlada sem seu uso.
Do mesmo modo, a vigilância na Ásia sobre novas viroses respiratórias, detectou mais uma com eventual potencial pandêmico, a síndrome respiratória do Oriente Médio, MERS (SARS-CoV-1). Aqui, também as promissoras vacinas com tecnologias genéticas, não puderam ser concluídas, pois o surto foi controlado antes de ficarem prontas ou testadas em fase 3.
O TIRO DE LARGADA
Assim, chegamos hoje de volta a buscar vacinas novas para uma pandemia que, de fato, aconteceu. Já a temos por cerca de 10 meses e ela não se extinguiu com medidas gerais não farmacêuticas.
As grandes farmacêuticas transnacionais, que haviam investido nessas tecnologias de ponta, agora podiam retomar seus projetos, com boa parte do caminho já feito e ainda sem o retorno esperado. Vale dizer que grande parte dos investimentos para o Ebola, que se reconhecia sem grande futuro mercadológico, foram obtidos por doações de fundos internacionais.
Em 10 de janeiro de 2020, a China deu o verdadeiro tiro de largada para a corrida tecnológica/industrial para tratamento, reagentes e vacinas, ao disseminar no mundo científico o código genético do SARS-CoV-2.
Com o incentivo da OMS e de vários financiadores, foram catalogados mais de 200 projetos para desenvolvimento de vacinas. A maioria deles, partindo de novidades baseadas nos estudos recentes para Ebola e MERS.
Vários artigos desde julho têm colocado a lista e as tecnologias usadas nos dez projetos de vacina mais adiantados do mundo. Baseado nos mesmos em setembro pp divulgamos uma revisão sobre o assunto (v. HP 26/09/2020, Vacinas para que te quero! – Quarentena News e outros sites informativos), que sumarizamos e revisamos, acrescentando novidades anunciadas com foco nas mais divulgadas no Brasil.
Grupo I – Vacinas de vírus inteiro inativado: o vírus é cultivado em células de laboratório há muito estudadas (que já servem de cultivo para outros vírus vacinais), sofrem o tratamento para inativação, isto é, não se replicarão mais. Essas vacinas são muito seguras, não há possibilidade de produzirem uma infecção, podendo ser aplicadas em gestantes e mesmo em pessoas imunodeprimidas. São as mais antigas, desde a contra a raiva, tétano e muitas outras. Requerem mais de uma dose. A Coronavac, da empresa Sinovac, está nesse grupo. Replicagem em células de laboratório Vero e inativação química. Conservação em temperatura de geladeira doméstica.
O Instituto Butantan está conduzindo o teste de fase 3, anunciou reatogenicidade leve, mesmo em idosos, e que, seguindo outras vacinas candidatas em fase 3, fará análise preliminar dos 74 casos já ocorridos em voluntários do estudo. Tem licença para produção sem pagamento de royalties e poderá exportar. Espera poder entregar para o Ministério da Saúde 46 milhões de doses, a partir de dezembro, quando estará apto a seguir produzindo. A única referência de preço de aquisição que vimos é de 2 dólares por dose, mas o Butantan precisará investir em suas instalações fabris e por isso poderá cobrar mais (solicitou 10 dólares).
Há ainda outras vacinas adiantadas com o vírus inativado, menos comentadas no Brasil, inclusive mais duas chinesas. Iniciativas com o SARS-Cov-2 atenuado, método de vacinas virais como da febre amarela e do sarampo, que dão longa imunidade com dose única, não chegaram a testes de fase clínica.
Grupo II – Vacina que utiliza um outro microrganismo (vetor) para “expressar” o antígeno vacinal: são vacinas que por engenharia genética modificam um agente que produzirá o antígeno vacinal. São já clássicas as que usam bactérias e fungos como vetores, como a da Hepatite B. Costumam exigir várias doses para consolidar a imunidade.
A partir de esforços para produzir uma vacina contra o vírus Ebola e outra para a MERS, foram usados vírus respiratórios humanos benignos (adenovírus do resfriado comum), não replicantes, para expressar os antígenos virais. As variantes do vírus que foram bem sucedidas para a produção dessas vacinas, foram os conhecidos como Ad5 e Ad26. O adenovírus usado é inativado, tornando-se não replicante. Há algumas vacinas em fase 3 de estudos, com essa tecnologia:
A – A vacina da CanSino (estatal chinesa), utiliza o Ad5 como vetor. Resultados das fases 1 e 2 já foram publicados, estando em desenvolvimento a fase 3 em vários países. Resultados preliminares mostram ser segura e de imunogenicidade alta. Utilizará, também, duas doses.
B – A vacina da Jonhson&Jonhson utiliza o Ad26 como vetor. Ainda não conhecemos resultados preliminares de fase 3, que estão sendo realizados em vários países. A Jansen (Johnson&Johnson) está realizando testes no Brasil.
C – A chamada vacina russa, é do Instituto Gamaleya. Utiliza na primeira dose o antígeno obtido com o Ad5 ou Ad26 de vetor e, na segunda dose, com o Ad que não foi aplicado na inoculação inicial, o que produziria uma imunidade maior e mais duradoura. Uma das vantagens seria que, se a primeira injeção produzir alguma imunidade relacionada ao vetor, poderia neutralizar parte do efeito da segunda, se fosse utilizado o mesmo vetor. Os resultados da fase 1 e 2, agora já publicados na Lancet, segundo comentaristas da Johns Hopkins, coloca desafios a outras vacinas. Um deles é que a vacina foi produzida não só na forma líquida, como liofilizada, que permite utilização em condições de conservação mais precárias dos países tropicais mais pobres. (A liofilização foi um importante desenvolvimento de cientistas soviéticos na década de 1960, que, usado para a vacina de varíola, permitiu a erradicação da mesma no mundo, pois pode ser levada ao local de uso sem refrigeração). Estudos de fase 3 em processo, inclusive no Brasil, por acordo com o Laboratório Tecpar (Paraná).
D – A vacina em desenvolvimento mais conhecida no Brasil e possivelmente na Europa, pelo apoio que teve, usa um adenovírus não replicante, também, porém, não humano, de chimpanzé (ChAdOx1). A vantagem teórica seria que não haveria neutralização pela presença de anticorpos para material do antígeno vacinal, relacionado a infecções passadas por adenovírus humano benignos. É a dita de Oxford, desenvolvida em parceria com a biofarmacêutica britânica AstraZeneca (essa tecnologia ainda não teve nenhuma vacina aprovada comercialmente). O Governo brasileiro, tomando por base a capacidade produtiva de Biomanguinhos/Fiocruz, adquiriu antecipadamente (antes do início da fase 3) 100 milhões de doses e a tecnologia de produção por cerca de 300 milhões de dólares (USD 3,19 por dose), que estariam disponíveis para aplicação em dezembro/janeiro (o cronograma está atrasado). Os termos do contrato foram denunciados na imprensa mundial e nacional, por serem muito restritivos ao Brasil.
A divulgação de resultados preliminares de eficácia com suspeita de manipulação, para mostrar expectativas maiores do que o encontrado, possivelmente trará prejuízos para seu uso. A eficácia demonstrada mais confiável foi de 62%.
Grupo III – O grupo tem sido designado como Vacinas de Ácido Nucleico. A tecnologia consiste, resumidamente, em transportar para as células humanas, através de um vetor viral, a capacidade de produzirem tanto o antígeno como os anticorpos. São bastante complexas, mas seriam de alto rendimento. As possibilidades futuras de poderem ser usadas em certos tipos de câncer dão esperança. As de DNA para gripe não produziram imunogênese de bom nível. Nunca foram antes aprovadas por órgãos reguladores. A emergência pandêmica facilitou a aceitação dos testes clínicos de fase 3 em que se encontram.
Nesse momento, são de particular interesse as chamadas de mRNA (m, significando mensageiro), já que no caso do SARS-Cov-2, que é um vírus RNA, duas vacinas em progresso estão em evidência. Essa tecnologia tem críticos, por precaução, por eventuais efeitos tardios, difíceis de detectar em estudos de curta duração, como são os de fase 3.
A – A Pfizer surpreendeu ao divulgar recentemente, abrindo ao público, junto com resultados preliminares estimulantes da fase 3 (eficácia de 95%), que seu projeto mRNA pretende fazer com que as próprias células humanas produzam os antígenos de que seu próprio sistema imunitário se defenderá, produzindo anticorpos. Temperatura para levar ao local de uso de -70oC. Preço por dose: USD 19,50 por dose.
B – A Moderna, americana, propõe para a Covid-19 o uso de adenovírus modificado não replicante. Eficácia preliminar estimada em 95%. Precisa ser estocada e levada ao local de uso à temperatura de -20oC. Preço: USD 32 a 37 por dose.
GRUPO IV – Outras vacinas em pesquisa são as chamadas ocas, isto é, utilizam apenas a capa do vírus ou peptídeos da mesma (VLP). Nesse grupo, estão as Soberanas de Cuba e outras, inclusive em desenvolvimento no Brasil a nível laboratorial.
Concluindo: Em artigo anterior (v. HP 14/08/2020, A vacina russa) chamamos a atenção para algo que agora fica mais claro. A incapacidade de fazer a big pharma se comportar com a seriedade e lisura que requer o período pandêmico. A OMS e todos que discursivamente se posicionam para facilitar o acesso à eventuais vacinas, se rendem ao jogo da mesmas e procuram vantagens competitivas ou acúmulo de prestígio e poder.
De outro lado, a melhor estratégia para um país como o Brasil, que tem ainda uma incidência alta da doença, seria organizar estudos comparativos entre as vacinas disponíveis concomitantes. O grupo placebo seria menor, o que justifica-se no dilema pandêmico.
Mas, aí, a cooperação proclamada para fazê-la um bem global seria bem mais profunda e racional. Seria verdadeira.
APLICAÇÃO DAS VACINAS
Mesmo com a expectativa de sucesso de mais de uma vacina, será pouco provável que produzam imunidade duradoura, ou seja, precisarão de reforço ou revacinação, e também que sejam igualmente eficientes em todos os grupos de idade. Isso significa que será muito importante implementar uma vigilância epidemiológica rápida e efetiva.
Portanto, cremos que nenhuma delas, a não ser que uma mutação viral atenue de maneira importante o SARS-CoV-2 circulante no Brasil, eliminará isoladamente a COVID-19 do Brasil, de imediato. Primeiro, porque as quantidades necessárias farão estender o período a mais de um ano, para imunizar a todos os grupos de idade, e, segundo, porque a vigilância epidemiológica e uso da vacina na contenção de surtos, a cargo do SUS, precisará ser mais eficiente.
Nessas circunstâncias, cremos que as prioridades máximas para a vacinação são:
1 – grupo de risco de tê-la de modo grave: população idosa e com comorbidades.
2 – trabalhadores em contato direto com casos de covid-19.
3 – usuários de transportes coletivos, escolas, abrigos e indústrias intensivas em mão de obra.
4 – controle de surtos: vacinação orientada pela vigilância epidemiológica.
Não pode ser negligenciado que a identificação de quem for vacinado e com qual vacina será muito importante, inclusive para análise de eventuais efeitos tardios das vacinas. Não seria absurdo introduzir um identificador duradouro.
Vacinas de conservação a muito baixas temperaturas não são para uso em saúde pública. Voltadas para mercado privado, se aprovadas pela ANVISA.
Os serviços de aplicação deverão estar já organizados e com material necessário, como agulhas e seringas, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse momento, há um acelerado movimento que a grande mídia brasileira, alcançando a mídia digital das redes sociais, com foco na antecipação de resultados de fase 3 (eficácia) de algumas das vacinas candidatas.
Esse fato está desafiando o setor saúde e amplos setores da população leiga, que se sente desorientada, especialmente na falta de uma autoridade nacional de saúde com autoridade real.
Instituições de saúde críticas estão ficando desacreditadas por politização inadequada e submissão ao governo federal.
Esse o campo em que a ‘saúde coletiva’ e a ‘medicina preventiva’, como lá na década de 80 Geoffrey Rose mostrava, é assaltada por propagandistas acríticos, e podemos acrescentar hoje, negocistas, negacionistas e novos beatos da ciência em si.
Nessas ocasiões costumamos lembrar dos pioneiros que, na revolução industrial da Grã-Bretanha, fundaram a saúde pública: Chadwick, por exemplo, foi alijado do Comitê de combate à pobreza, por não se submeter a uma maioria ‘sensata’ que agradava o governo.
É mandatório pressionar, pelos meios aceitáveis, que o governo federal siga no seu intento de só adquirir a “sua” vacina. Há muito já devia estar em parceria com o Instituto Butantan e Tecpar, equacionando as possibilidades que abriram para o país.
Os instrumentos de coordenação para tomar decisões sanitárias no Brasil estão fragmentados, pelo verdadeiro contencioso político que abala o país, que torna o SUS, por sua natureza sistêmica, incapaz de agir ao tempo e à hora em todos os lugares.
Mas a profissão da esperança brasileira, não nos abandona. Cremos que pode ainda ser adequado e eficiente. Temos que tentar. É obrigatório para sanitaristas.
A expectativa é de que os Estados, passado esse período eleitoral, consigam, através de suas Secretarias de Saúde, criar um gabinete executivo que unifique as ações no Brasil, ligado ao CONASS [Conselho Nacional de Secretários de Saúde]. A Secretaria de Saúde de cada Estado, precisará assumir a execução de modo compartilhado com os seus municípios, ou, suplementarmente, a gestão de todos os postos e equipes de vacinação e vigilância epidemiológica em seus territórios.
Disto dependerá, para além da qualidade, o resultado da aplicação das vacinas no Brasil.
(*) Eduardo A. Costa é médico-santarista-epidemiologista.