Ao mesmo tempo em que conta com uma conjunção de fatores para protagonizar um levante moral, o Brasil convive com a sombria perspectiva de novamente ser levado a reboque por eleições desleais, mantendo nas cercanias do poder os mesmos vendilhões do templo.
O Brasil surgiu ao símbolo de uma cruz fincada no litoral da Bahia e já conta com meio milênio de história. É um tempo razoável para experimentações; foi colônia, império e há mais de um século tenta ser república. Teve guerra com o Paraguai, enfrentou revoluções intestinas, coparticipou do desfecho da Segunda Guerra Mundial e passou por vários golpes de Estado e diversos textos constitucionais. Isso corresponde a um ciclo de tempo maior do que aquele que outros países também percorreram para conquistar a independência, viver epidemias, sofrer com guerras e chegar ao ranking das grandes nações civilizadas e prósperas. Portanto, está na hora de a antiga Terra de Vera Cruz entrar para a confraria dos povos desenvolvidos; ter os seus cidadãos educados, saudáveis, conscientes dos valores éticos; garantir a segurança nas relações jurídicas e conhecer homens públicos que dignifiquem os cargos que ocupam.
Esse passo de liberdade depende da afirmação da democracia, que é um processo que vai além da coleta de votos, sobretudo quando amealhados por meios fraudulentos. Apresentado em vários espaços como Pátria do Futuro, o Brasil pode ser protagonista no enfrentamento de um fenômeno que é matriz de todos os males: a corrupção, essa patologia social que é a geradora de guerras, de genocídios e elemento que desune as nações. No manual dos aloprados que ascendem ao poder está a tática de criar rivalidades e plantar inimigos imaginários para distrair atenções; o desvio dos recursos dos respectivos Tesouros é a principal causa da fome, da pobreza extrema e da falta de perspectiva para pelo menos três bilhões de pessoas no planeta.
Como o território brasileiro hospeda 50 milhões de criaturas na linha da pobreza e possui 42% das suas crianças de até 14 anos enquadradas nos mais baixos índices sociais da humanidade, impõe-se uma reação que permita reverter essa tragédia humana e, pelo exemplo, legar os sinalizadores da alforria aos demais povos.castigados por igual desfortúnio.
É fundamental que se tenha como ponto nuclear o reconhecimento da corrupção com a dimensão que ela possui, de crime contra a humanidade; e que se trate a democracia, na outra ponta, como um princípio universal de direito. Corruptela e democracia não convivem. É impossível existir um espaço democrático com as instituições corroídas por organizações criminosas. O mundo enfrenta essa lástima. Por trás de questões territoriais, de questões religiosas, de questões étnicas, de questões supostamente ideológicas estão infalivelmente o assalto ao patrimônio dos povos e a falência múltipla dos órgãos nacionais. A fórmula é conhecida. Os corruptos de alto escalão para operarem os seus crimes derrubam os dois pilares da democracia: subvertem ou manipulam a vontade do povo e sequestram as instituições do Estado.
Os brasileiros foram vitimados por esse modelo. A quarta maior democracia do mundo – a se considerar o número de eleitores – é, ao mesmo tempo, uma farsa democrática como tantas nas Américas e tantas espalhadas por África, pela Ásia e, mesmo, por alguns espaços na esclarecida Europa. É diferente o que acontece na Suíça, na Suécia, na Dinamarca e na Finlândia, países nos quais a corrupção é imperceptível e a democracia é a base da organização estatal.
Francisco Louçã, que foi líder do Bloco de Esquerda no Parlamento português, em discurso na Assembleia da República em 2007 disse: “Estamos aqui a viver um fingimento”. Essa afirmação tem enorme simbolismo, na medida em que tanto se fala em povo, voto e democracia quando, em realidade, tem-se unicamente uma legião de psicopatas institucionais a manipular essas palavras com singular impostura. É certo que as nações, na maior extensão territorial do globo, padecem de um fingimento imposto pelos corruptos.
Onde há eleições, finge-se oficialmente que o resultado espelha a vontade dos cidadãos quando, na verdade, estes são instrumentos utilizados sorrateiramente para legitimar um processo criminoso. O Brasil e considerável parte do mundo carecem de estadistas, de líderes que unam os seus povos, que fortaleçam o respectivo espírito nacional, que tenham a larga visão do equilíbrio social e da garantia de prosperidade e paz para as novas gerações.
Não é difícil perceber que a nação brasileira está dividida. O bordão do “nós” e “eles”, por si só, é um desserviço à nacionalidade, posto que a pátria, na lição de Rui Barbosa, deve ser a família amplificada. A ação divisionista não é a etiqueta dos homens de Estado; é a mera repetição de métodos usados por patifes que desgraçadamente ocuparam palácios quando, por lógica, deveriam ser hóspedes dos cárceres da história.
Ocupando a obscena condição de quarto país mais corrupto do mundo, é de fácil verificação a desenvoltura dos bandoleiros dentro das instituições públicas. O governo há décadas perdeu o senso de moralidade; o parlamento deixou de ser composto por bancadas para ser dividido em quadrilhas; o Poder Judiciário está desorientado pela falta de referência: dorme-se com uma ordem jurídica e acorda-se com outra. Nota-se uma Justiça superior cooptada por cafajestes oficiais, uma vez que membros notórios das altas Cortes lhes abrem as portas para uma presteza jurisdicional que não estendem nem na forma nem no conteúdo aos demais cidadãos.
A decadência da credibilidade se constata na medida em que altos membros dos três Poderes são vistos com reserva pela população; nunca antes o Brasil teve um magistrado de alta Corte hostilizado com chuva de tomates; parlamentares expulsos de ambientes públicos e um presidente da República sem condições de mostrar o rosto para o povo que supostamente representa.
É o extremo da desmoralização da autoridade, o que deveria servir de estopim para uma reação histórica. Se pudesse contar com eleições honestas, o país teria a oportunidade de uma faxina geral. Só um milagre, entretanto, poderá operar pela democracia como expressão da vontade do povo sem os componentes que a viciam, sem os atores que a degradam e sem o fingimento que acometem organizações internacionais, quando acobertam as fraudes por pressões de comércio ou conveniências de alinhamento.
Ao mesmo tempo em que conta com uma conjunção de fatores para protagonizar um levante moral, exemplar para o mundo, o Brasil convive com a sombria perspectiva de novamente ser levado a reboque por eleições desleais, mantendo nas cercanias do poder os mesmos vendilhões do templo que se aproveitam da pureza e generosidade da gente brasileira para lhes tirar até o sangue em proveito próprio.
Léo da Silva Alves é jurista autor de 45 livros e Embaixador para a Causa da Democracia na Europa e Sul-América, em representação do Instituto Diplomazia Europea e Sudamericana, com sede na Itália.