OSCAR FIGUERA, secretário-geral do Partido Comunista da Venezuela
O texto a seguir foi publicado no site resistir.info e expressa a entrevista do dirigente do PCV concedida a Cira Pascual Marquina em 10 de outubro.
Como analisa a situação da classe trabalhadora venezuelana e do povo em geral? Quais são as raízes da crise?
Para nós, é importante começar por caracterizar a sociedade venezuelana. Para o Partido Comunista, o que entrou numa grave crise na Venezuela é o modo de produção capitalista e dependente, caracterizado por um modelo rentista de acumulação: encontramos nesse modelo as raízes da crise catastrófica que enfrentamos.
Devo acrescentar que estamos pagando as consequências de erros recentes: o modelo de acumulação não foi transformado durante o Processo Bolivariano. Não foi transformado com o presidente Chávez e muito menos agora, durante a presidência de Nicolas Maduro.
Isso, por sua vez, leva-nos a outra questão: por que o PCV considera que a Venezuela, desde a chegada de Chávez ao poder, está em processo de libertação nacional? Para isso, diríamos que consideramos que o programa de Chávez trouxe um dos elementos-chave para romper com a dependência e construir um novo sistema latino-americano e caribenho: um esforço organizado para construir um bloco unido dos povos do nosso continente.
Essa é uma linha de trabalho que historicamente promovemos e que é, em nossa perspectiva, fundamental, se quisermos avançar para romper com o domínio imperialista e a longa dependência de nossa região. Adotamos o projeto apresentado pelo presidente Chávez de uma perspectiva tática e estratégica.
Na verdade, chegamos ao ponto de dizer que, do nosso ponto de vista (e dissemos isso quando o presidente Chávez fez a proposta), o desenvolvimento [econômico] da Venezuela não está maduro o suficiente para avançar em direção ao socialismo. Entendemos que, quando Chávez começou a falar em socialismo, seu chamado se encaixava num cenário político específico, mas não correspondia ao desenvolvimento das forças produtivas do país (o que geralmente chamamos de condições objetivas), nem às condições subjetivas do povo venezuelano. Assim, mais uma vez, estamos onde estamos, porque existe uma profunda crise do modelo capitalista e rentista dependente o qual não foi transformado nos mais de vinte anos do Processo Bolivariano.
Outra chave para entender nosso apoio a Hugo Chávez é a questão da soberania do petróleo. Com Chávez, o estado venezuelano conseguiu controlar a principal fonte de riqueza do país: o petróleo. Antes de Chávez, noventa por cento dos lucros do petróleo eram expropriados por grandes transnacionais. Com Chávez, parte da receita do petróleo, que tem sido a espinha dorsal da economia da Venezuela nos últimos cem anos, foi colocada ao serviço do atendimento das necessidades sociais, culturais e políticas do povo.
No entanto, a Venezuela não avançou em outros aspectos essenciais para a construção de uma nação soberana, como o desenvolvimento das forças produtivas. Chávez iniciou uma politização do povo, o qual se empenhou ativamente. A era de Chávez politizou o povo venezuelano e isso é, em parte, uma das chaves para a resiliência de nosso povo hoje. Com Chávez, houve um salto importante no entendimento de que o imperialismo dos EUA, seus aliados europeus e as forças oligárquicas nacionais alinhadas ao capital internacional são nossos inimigos fundamentais.
Como o PCV analisa a direção do governo bolivariano nos últimos anos? Alguns comemoram a liderança de Nicolas Maduro – ele derrotou golpes de Estado, venceu eleições e resistiu ao ataque do imperialismo – enquanto outros criticam suas soluções pró-capitalistas para a crise: privatizações, cortes nos gastos sociais, eliminação dos direitos dos trabalhadores e assim por diante.
Desde o início de 2019, como resultado do XVII Plenário do PCV, nossa posição tem sido de que as políticas adotadas pelo governo de Maduro são liberais e isso significa que o peso da crise é suportado pelos mais pobres. Isto foi ratificado em outro Plenário nosso há apenas alguns meses.
Como mencionei antes, na raiz da crise está o modelo de acumulação – combinado com a agressão imperialista. Mas acreditamos que políticas [econômicas] liberais não vão nos tirar da crise.
Dentro do partido há um debate em curso acerca da caracterização precisa da tendência econômica do governo. Será neoliberal? A resposta a isto ainda está pendente, mas acreditamos que as medidas que têm sido implementadas privilegiam o investimento capitalista, o nacional e particularmente o estrangeiro. Nesse sentido, testemunhamos uma desregulamentação na esfera do trabalho e uma queda espectacular no preço da força de trabalho, demissões em grande escala, reformas, etc.
Tudo isto é feito, como mencionei, com um objetivo: incentivar o investimento. Isto, no entanto, não acontecerá por uma razão muito simples: o investimento estrangeiro só chega à Venezuela quando o preço do petróleo é alto e vem aqui com o único objetivo de lucrar diretamente com a riqueza gerada pelas vendas de petróleo. Os capitalistas nunca desenvolveram este país, eles nunca investiram um centavo. E agora que os preços do petróleo estão baixos, tudo o que podemos esperar é que venham aqui para lucrar com o nosso ouro, coltan [columbita-tantalita, mistura da qual se extrai nióbio e tântalo] e outros minerais estratégicos encontrados no nosso território.
Então, ao invés de liberalizar [a economia] e buscar investimentos estrangeiros, o que não funcionará, o governo de Maduro deveria concentrar-se em atender às necessidades do povo com programas sociais, enquanto procura por uma saída revolucionária da crise do modelo capitalista rentista.
Somos contra o caminho da conciliação de classes, o qual privilegia e dá vantagens ao investimento estrangeiro. Tudo isto é particularmente problemático quando esse caminho é envolvido num discurso socialista que não tem conexão com a realidade… Acreditamos que esse discurso socialista prejudica as massas porque distorce a nossa realidade. Tragicamente, muitos estão a rejeitar o socialismo porque identificam o que está a acontecer agora com o projeto, e outros entendem que o socialismo exige um grande nível de sacrifício. Naturalmente, é verdade que o socialismo exige sacrifício. O socialismo exige muito sacrifício porque confronta as forças do capital, mas o socialismo não é só isso, também é sobre a construção de algo novo e essa perspectiva não é encontrada em parte alguma no presente.
Além de atender às necessidades urgentes do povo, algo que o governo deve fazer, também defendemos a centralidade da classe trabalhadora e o papel dos camponeses e comunas na solução da crise. Deveríamos tentar sair da crise atual junto com o capital transnacional? Deveríamos deixar a perspectiva burocrática prevalecer? Ou o caminho de saída da crise atual está nas mãos de quem produz ? Nós optamos pelos últimos.
Agora, alguém poderia perguntar, dadas nossas condições, não é necessário buscar algumas alianças com setores do capital? Sim. Não somos inflexíveis. Entendemos que o Estado não tem recursos para alavancar a produção, portanto algumas concessões devem ser feitas. A Venezuela precisa procurar aliados, mas buscar alianças com transnacionais não é o caminho a seguir. Elas não trarão investimento e trarão juntamente interesses estrangeiros. A Venezuela, ao invés, deveria buscar investimentos de setores que aceitem que temos um processo de libertação nacional e que a construção de um modelo autônomo e independente é um dos nossos objetivos chave.
De qualquer forma, o papel da classe trabalhadora, o papel dos camponeses, o papel das comunas deve ser postos em jogo, não em termos meramente discursivos, mas com participação real no processo de recuperação do aparelho produtivo. É por isso que temos de construir uma ampla aliança anti-imperialista, com todos os setores, incluindo o governo do presidente Nicolas Maduro. Todos aqueles comprometidos com a mudança social devem ser integrados, incluindo o setor capitalista patriótico.
Afinal de contas, estamos no meio de uma disputa inter-imperialista entre potências mundiais. Este confronto está, na verdade, no centro da agressão contra a Venezuela. As potências mundiais não querem que estabeleçamos alianças com a China, a Rússia e a Índia, porque estas alianças são fundamentais para romper com a nossa situação dependente. Temos de seguir na direção daquelas alianças e, paralelamente, de construir a união dos países da América Latina e do Caribe, que é o único meio de enfraquecer as cadeias do imperialismo.
Recentemente, houve um diálogo entre o governo e alguns setores da oposição. Essas conversações ocorreram sem a participação de quaisquer organizações chavistas, exceto o PSUV. Além disso, e de acordo com as declarações do seu próprio partido, o PSUV rompeu o Acordo de Unidade PSUV-PCV para enfrentar a crise do capitalismo venezuelano(26 de fevereiro de 2018), o qual era a base para o apoio do PCV à candidatura de Nicolas Maduro em 2018. Considera que o PSUV é capaz de ouvir o movimento popular e a esquerda chavista?
O PSUV não está ouvindo diversas vozes, que incluem outras forças patrióticas e revolucionárias. Há uma razão simples para isso: para aqueles de nós à esquerda, é muito difícil separar-nos da aliança com o governo e o PSUV, porque temos um inimigo comum – nosso inimigo principal – que é o imperialismo dos EUA, seus aliados europeus e a direita interna.
Diante deste fato, o governo e o PSUV pensam que não precisam discutir nada conosco. Eles agem unilateralmente. É um erro grave, pois a construção beneficia-se com a participação coletiva. A classe trabalhadora, os camponeses e os comunardos, todos temos análises e propostas que podem ajudar a tirar a Venezuela da crise.
Pode ser que o governo ou o PSUV não compartilhem as opiniões ou propostas vindas do campo popular. Dentro do PSUV existem diferentes correntes ideológicas, incluindo social-democratas, sociais-cristãos e mesmo liberais. No entanto, a liderança política deveria entender que estamos numa aliança de diversos (“unidade dentro da diversidade”) e isso exige espaços de construção coletiva.
Além disso, as contradições que se levantam não devem ser entendidas como um problema. Muito pelo contrário, a contradição pode ser construtiva. O problema não é que possa haver contradições dentro do movimento; o problema é como lidamos com elas! Se as contradições não forem devidamente tratadas, isso pode provocar rupturas e, num momento como o nosso, as fraturas enfraquecem nosso projeto coletivo.
Uma vez que o PSUV entende que não nos aliaremos à direita ou ao imperialismo, eles fecham espaços para a construção comum. Eles atuam de maneira arrogante que (mesmo que não leve à ruptura) produz confrontações. É o que está acontecendo agora.
Na nossa mais recente sessão plenária, desenvolvemos o slogan “confrontar, separar e acumular forças para avançar rumo à construção da força da classe trabalhadora, camponesa, comunal e popular”. A ideia é avançar em direção a uma ampla aliança anti-imperialista para enfrentar e derrotar a agressão externa e, ao mesmo tempo, confrontar correntes reformistas e submissas internas as quais, com um falso discurso revolucionário, estão desenvolvendo alianças que vão contra o processo de libertação nacional e cuja perspectiva é a oposta da socialista.
E qual é a abordagem do PCV para os diálogos recentes?
Os diálogos mais recentes levaram a um acordo com um setor da oposição. Acreditamos que [a ideia de dialogar] estava correta e que estes diálogos são importantes porque mostram ao mundo que a oposição de extrema-direita não é a única em nosso país. Contudo, este acordo foi construído sem a participação de outros setores [do Chavismo]. Isso levou a uma situação em que não é fácil de navegar.
Um dos acordos era que representantes do Polo Patriótico seriam incorporados à Assembleia Nacional. No entanto, o Partido Comunista decidiu não se incorporar naquele órgão. Nossas razões são: primeiro, que não nos foi dada uma explicação sobre qual seria a tática naquele espaço e, segundo, que a Assembleia Nacional continua a desrespeitar [a lei] e é a ferramenta chave da agressão imperialista no nosso país. A Assembleia Nacional é um órgão que não reconhece outros poderes públicos, incluindo a presidência de Maduro, e nossa participação ali levaria a criar mais confusão entre o povo. Nossa presença legitimaria uma ferramenta que está ao serviço da conspiração contrarrevolucionária.
Quando confrontados com este dilema, decidimos não nos incorporarmos à Assembleia Nacional, embora isto seja uma questão ainda em cima da mesa e será debatida em breve na XV sessão Plenária [do nosso partido]. Francamente, nosso entendimento é que a Assembleia Nacional Constituinte deveria ter tomado uma ação contundente quando Juan Guaido, presidente da Assembleia Nacional, auto-proclamou-se presidente. A Assembleia Nacional faz parte de uma conspiração e deveria ser dissolvida.
Agora, se o PSUV nos explicar que existe um caminho para superar o caráter conspirativo da Assembleia Nacional, então é possível que possamos nos reincorporar naquele espaço, após um debate interno.
Houve novas formas de protesto nos últimos anos: protestos que não buscam mudanças de regime, mas soluções para reivindicações concretas diante de problemas graves. Elas vão desde pessoas que protestam por gás e água até camponeses que exigem justiça e proteção em relação aos proprietários de terras. Como avalia este novo fenômeno?
Proveniente do movimento popular e patriótico e dos setores comprometidos com a transformação da sociedade venezuelana, há uma tendência crescente de organizar protestos legítimos. Estes protestos não vêm mais da direita, mas ao invés, do movimento revolucionário popular, da força que passou a ser conhecida como chavismo. Eles apresentam reivindicações, mas também propostas que têm a ver com políticas trabalhistas, políticas agrárias e camponesas e assim por diante. Estes protestos compartilham uma preocupação: a rota do processo bolivariano e as condições de vida do povo.
O Partido Comunista acredita que é importante reunir queixas legítimas, criar uma frente nacional que se manterá firme quando confrontada com o imperialismo mas que também enfrentará a promoção de políticas liberais do governo.
Este é o nosso objetivo na promoção da Frente Nacional de Luta da Classe Trabalhadora. Esta frente não é um apêndice do Partido Comunista. Nós somos apenas um fator dentro dela. Há setores trotskistas ali e há setores das bases do PSUV. Na verdade, eles são a maioria.
Também promovemos o trabalho da Corrente Camponesa Classista Nicomedes Abreu, tentando trabalhar com diversos atores comunitários, entre eles a Comuna El Maizal e outras comunas que têm um trabalho realmente importante, mas não estão sob a liderança do PCV. Acreditamos que precisamos nos juntar num bloco com estas organizações comunais, porque são instâncias de auto-governo que questionam a concepção burocrática do poder.
Finalmente, diante das agressões imperialistas e da deriva do governo em direção à posição “reformista” ou mesmo “liberal”, qual é o papel da solidariedade internacionalista com o Processo Bolivariano?
O Partido Comunista tem uma linha de trabalho de promoção da solidariedade, e fazemos isso com a apresentação completa do que está acontecendo aqui quando viajamos para o exterior. Às forças de esquerda, aos partidos comunistas e outras organizações, não escondemos as contradições que enfrentamos – as complexidades do processo e as tendências que se confrontam –, mas sempre deixando claro que o nosso principal inimigo é o imperialismo. Lutamos dentro do processo, mas quando confrontados com o imperialismo, estamos unificados e disciplinados. Assim, explicamos as complexidades do que está a acontecendo aqui dentro, mas também pedimos solidariedade.
10/Outubro/2019
Foram mantidos os links incluídos no texto por Resistir.info
O original encontra-se em venezuelanalysis.com/ (em inglês)