A Crônica do Patriarcado em Colapso


DAVI MOLINARI

Lá fora, o apocalipse tinha data, hora e topete laranja. O mundo estava acabando, novamente, com Trump pilotando porta-aviões no Caribe como uma criança no tabuleiro de War e a extrema direita brasileira tendo espasmos de delirium tremens, exigindo anistia para golpista como quem pede desconto no crediário das Lojas Americanas depois de estourar a fraude bilionária. O Senado em clima de guerra contra o STF. E a família Bolsonaro transformando a segurança pública em um circo onde os palhaços usam fuzil e cobram ingresso.

Mas ali, no Fale Mais Sobre Isso, estávamos em território neutro. Uma Suíça etílica encravada em decks de madeira. Um bunker de meditação onde a única ogiva nuclear permitida era a de colesterol nas manjubinhas fritas.

À minha frente, o Doutor: imutável, uma esfinge de linho branco que rabiscava o bloquinho com a serenidade de quem já diagnosticou a humanidade como um erro de fabricação.

— Sabe, Doutor… — comecei, girando o copo suado como quem tenta prever o futuro na borra do chope. — O Brasil virou um hospício a céu aberto onde os loucos tomaram a chave da farmácia e decretaram que Rivotril é a saída para a convulsão social.

Juvenal surgiu como um santo padroeiro dos desesperados, pousando a rodada de chopes e a sagrada porção de manjubinhas.

— O problema não é o hospício — murmurou ele —, é a falta de camisa de força. E de vergonha na cara.

Na mesa ao lado, a “confraria das libertas” ria alto. A reunião das mulheres que deixaram os maridos em casa — ou no passado — para se confraternizarem.

Mas eu notei que os risos murcharam de repente assim que uma delas mencionou a barbárie da Marginal Tietê. Um caso que chocou todo o país. A jovem Tainara arrastada no asfalto. Num ato cru, brutal e que está se tornando cotidiano.

— É o fim da picada — rosnou Juvenal, que também ouviu a conversa. — O sujeito acha que tem escritura da mulher. Perdeu a posse, toca fogo no terreno.

Olhei para o Doutor. Ele ergueu a sobrancelha — o equivalente psiquiátrico a uma sirene.

— Misoginia pura, Doutor. E não tem diagnóstico que alivie. Não tem CID pra canalhice. O sujeito projeta a própria impotência no feminino. Quando a mulher diz “não”, o espelho quebra e o narciso vira monstro — analisava, quando Juvenal me interrompeu com a pedagogia que lhe é peculiar:

— A psicanálise explica, mas a cadeia é mais didática.

O Doutor olhou para mim e fez um gesto vago com a mão, como quem diz “continue” ou “enterre-se mais um pouco”.

— Veja o Douglas, o agressor. Aquilo é a falência do ego masculino: “se ela não é minha, não será de ninguém”. A violência de quem não suporta o outro existir sem a sua permissão.

Foi então que a pressão do ambiente mudou.

A porta se abriu.

E a Diva entrou.

Não foi uma entrada; foi uma ocupação territorial. Não era apenas uma mulher bonita; era um acontecimento geológico. Ela caminhava como se o chão pedisse licença para ser pisado. Inteligente, altiva, uma presença que sugava o oxigênio e a atenção de todos os homens (e mulheres) do recinto. Até o Doutor parou a caneta no ar. Vi seus olhos acompanharem a trajetória dela até uma mesa no canto.

Ele pigarreou e voltou ao bloquinho, escrevendo com o dobro da velocidade. Transferência ou contratransferência, Doutor?

Aproveitei o impacto.

— Tá vendo, Doutor? — sussurrei.

— A virilidade do homem médio, Doutor, é uma construção frágil que depende inteiramente do olhar dessa mulher. Se ela aprova, ele é rei. Se ela rejeita, vem a angústia de castração. O homem não existe sem a validação da mulher que ele diz desprezar.

Juvenal voltou, servindo mais chope com a precisão de um cirurgião.

— É o ego de cristal, meu amigo — disse o garçom, olhando de soslaio para a Diva. — Vivemos numa sociedade onde o macho acha que o mundo é a sala de estar dele. Quer ver um exemplo? O Senado Federal. Predinho modernista, bonito… e sem banheiro feminino no plenário até 2016. Imagina o nível.

— Sério? — perguntei, incrédulo.

— Sério. Os “pais da pátria” não concebiam que mulher pudesse mijar onde eles decidiam nosso futuro.

O Doutor desenhou um círculo no papel como quem faz um buraco no chão.

— E nada muda! — explodi, fazendo as manjubinhas saltarem como se tivessem opinião própria.

— Olha a família Bolsonaro: chorume da misoginia. O pai atacando deputadas e os filhos chamando mulher de “Barbie da Shopee”. O medo de mulher virou plataforma eleitoral.

Eu ia entrar no capítulo “testosterona: esse pequeno cafajeste bioquímico” quando uma sombra perfumada cobriu a mesa.

Ela.

A Diva.

Parou ao nosso lado como quem encerra uma era. Pegava a taça de vinho como quem segura um cetro.

— A análise é fofa — disse ela, com um sorriso de piedade e olhar cortante. — Mas vocês complicam o óbvio.

O Doutor corou. Eu gelei. Juvenal posicionou a bandeja como escudo antimíssil.

— Vocês citam Grécia, Idade Média, culpa cristã… — ela girou o vinho. — Mas a verdade é simples: o patriarcado é um arranjo falido. Antigamente, rejeição era pecado. Hoje é só terça-feira. A crise de identidade masculina não é complexa — é só o pânico de quem descobriu que a gente não precisa mais de vocês pra abrir potes… nem pra governar.

Ela piscou. Um terremoto.

E se foi.

Eu travei. A ficha caiu com o peso de um torpedo: eu ali, pagando de desconstruído, dissecando o machismo alheio, mas secando aquele corpo como um cachorro admira uma vitrine de frango assado. Eu não era o analista. Eu era a piada pronta. A tese e o erro sentados na mesma.

O silêncio na mesa pesou.

O Doutor fechou o bloquinho com um clack seco. Guardou a caneta no bolso do paletó como quem sela um caixão. Olhou para o rastro de perfume deixado pela Diva e depois fixou os olhos em mim com aquele misto de pena e tédio que ele reserva para os casos perdidos.

Pigarreou, ajeitou o colarinho e decretou:

— O patriarcado, meu caro, é um projeto débil, como o Rei George III de cueca dando bom dia ao cavalo.

Franzi a testa, boiando na referência histórica. Foi quando Juvenal, recolhendo os pratos vazios com a destreza de quem desarma uma bomba, se inclinou para me acudir:

— O rei da Inglaterra que ficou lelé, meu consagrado… O sujeito teve um surto e passou uma tarde inteira falando com um pé de carvalho.

Ele passou o pano na mesa, tirando as migalhas da minha ignorância, e arrematou:

— A sorte é que o rei tinha o tesouro pra bancar a loucura. Já vocês foram agraciados pela Diva, que deixou sua conta paga.

Olhamos em direção à mesa dela e só sentimos o perfume que decaía.

Publicado originalmente em Divã no Boteco – LX. Enviado pelo autor.

Compartilhe

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *