CARLOS LOPES
Não foram poucos os que reagiram, ainda que por um breve instante, com algum sentimento de perplexidade diante da prisão de José Dirceu: “como é que pode, o sujeito consegue sobreviver à ditadura, que assassinou impiedosamente seus companheiros, mas não conseguiu agarrá-lo, somente para, depois, ser pego, condenado e preso como corrupto, como ladrão de dinheiro público, dinheiro que pertencia (e pertence) ao povo brasileiro”?
Pois as provas contra Lula, Dirceu, Vaccari et caterva são tão claras e irretorquíveis quanto aquelas que existem contra Cunha, Cabral, Geddel, Temer, Renan e outros aliados de Lula e Dirceu, que, sob o abrigo do esquema petista, também assaltaram a Petrobrás, os fundos de pensão das estatais e o Erário, nos últimos 15 anos.
Então, como aconteceu essa metamorfose?
Pois eles roubaram o povo brasileiro – e não é possível defendê-los sem aderir ideologicamente (no mínimo) ao roubo contra o povo brasileiro.
Por isso, inclusive, é tão ridículo alguns cidadãos, que não conseguem pensar com a própria cabeça, fazerem o papel de corte – e de bobo da corte – do PT, e, especialmente, de Lula.
Trata-se de um tal esmagamento, que nem conseguem perceber que aderiram apenas, na precisa expressão de Rodrigo Janot, a um grupo de bandidos. Aliás, isso é, exatamente, o que não conseguem perceber.
No entanto, o povo percebe essas coisas. As preferências, nas pesquisas eleitorais, por um palhaço como Bolsonaro, não refletem um crescimento de uma ideologia de direita, que saiu da ditadura mais estraçalhada que barata sob um jato de Detefon.
O que essas preferências refletem é, exatamente, o repúdio a uma ladroagem – e a uma dissolução geral dos costumes, já chegaremos lá – que se apresenta como “de esquerda”, ainda que, por baixo dessa fantasia, esteja o direitismo mais absoluto e a negação dos princípios éticos mais elementares (alguns, chegando próximo ao nazismo, que, por sinal, apresentava-se como representante dos trabalhadores, nacionalista e até socialista – daí o nome do partido: “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”).
Certamente que, entre os eleitores de Bolsonaro, existem, também, algumas baratas que saíram do esgoto em que se refugiaram após a queda da ditadura. Mas as suas preferências eleitorais não são devidas a ex-torturadores e viúvas do golpe de 64. Não existem tantas assim no Brasil. Se esse fosse o eleitorado bolsonarista, ele seria um mau candidato a vice-síndico de algum edifício.
POLÍTICA
Mas a coisa vai mais longe – no tempo e no mundo.
Noam Chomsky tem razão ao dizer que os petistas “simplesmente não conseguiram manter suas mãos fora da caixa registradora” [they just couldn’t keep their hands out of the till], e, mais ainda: “Eles se juntaram à elite extremamente corrupta, que sempre roubou, e participaram dela também, e se desacreditaram”.
A questão, naturalmente, é: por quê?
O conjunto dessa entrevista de Chomsky tem, nesse sentido, interesse, ao relacionar a corrupção – não apenas a do PT, mas a de outras forças no mundo, soi-disant “de esquerda” – com sua política econômica:
“… os governos de esquerda [da América Latina] não usaram a oportunidade à sua disposição para tentar criar economias viáveis, sustentáveis. Quase todos eles – Venezuela, Brasil, Argentina e outros – se tornaram dependentes [relied] do aumento dos preços das commodities, que é um fenômeno temporário. Os preços das commodities subiram, principalmente, por causa do crescimento da China. Por isso, houve um aumento no preço do petróleo, no preço da soja, e assim por diante. E ao invés de tentar desenvolver uma economia sustentável, com indústria manufatureira, agricultura, e assim por diante – a Venezuela é potencialmente um país de rica agricultura, mas eles não a desenvolveram – simplesmente se tornaram dependentes [relied] das commodities primárias, matérias-primas que poderiam exportar. Isso é muito prejudicial – não é apenas que não é um sucesso, mas é um modelo de desenvolvimento prejudicial, porque quando você exporta grãos para a China, digamos, eles exportam produtos manufaturados para você e isso prejudica suas indústrias manufatureiras. E isso é basicamente o que está acontecendo” (cf. Democracy Now, Chomsky: Leftist Latin American Governments Have Failed to Build Sustainable Economies, 05/04/2017).
A desindustrialização do mais industrializado país da América Latina – o Brasil – é um exemplo eloquente do que disse Chomsky: a participação da indústria de transformação (a “indústria manufatureira”) no Produto Interno Bruto (PIB) caiu de 16,9% em 2003 para 11,7% em 2016. Uma queda, em participação no PIB, de -30,77% (cf. DEPECON/Fiesp, “Panorama da Indústria de Transformação Brasileira”, 01/11/2017, p. 6).
Frisamos que, no mesmo intervalo (2003-2016), a participação de componentes importados na indústria passou de de 16,5% para 23,6%, um aumento de +43,03% (cf. Simone Kafruni, “Cai a participação do setor industrial no PIB do Brasil”, CB 02/10/2016).
E, também, observe o leitor que isso se deu após a derrubada da indústria e a enxurrada de importados do governo Fernando Henrique Cardoso. Considerando o conjunto dos anos, os governos petistas conseguiram piorar a situação da indústria de transformação – exatamente o setor-chave para o crescimento sustentado (ou sustentável) – em relação ao desastre tucano.
A exceção, evidentemente, foi a Petrobrás e sua cadeia produtiva. Porém (ou por isso mesmo), foi exatamente aí, em nossa empresa mais importante, de propriedade do povo brasileiro, que o esquema petista assaltou diretamente o país, ao mesmo tempo que entregava a política monetária do Brasil ao assalto do BankBoston (aliás, Bank of America) e seus assemelhados de Wall Street – isto é, ao sr. Henrique Meirelles, eleito deputado federal pelo PSDB em 2002 e nomeado, em seguida, por Lula, presidente do Banco Central.
Vale acrescentar que a política de “conteúdo local”, que alguns incautos dizem que o PT instalou na Petrobrás, significou um aumento nas compras de produtos das filiais de multinacionais aqui instaladas. Por isso, o termo “conteúdo local”, ao invés de “conteúdo nacional” (v. HP 29/06/2012, PAC Equipamentos não estimula indústria genuinamente nacional, e, também, HP 04/07/2012, Os ataques da senhora Foster à gestão anterior da Petrobrás).
Voltando à entrevista de Chomsky, especificamente sobre a Venezuela, disse ele:
“A Venezuela é realmente uma situação de desastre. A economia depende do petróleo em uma dimensão tão grande – provavelmente em uma extensão maior do que jamais foi no passado, certamente muito alta. E a corrupção, o roubo e assim por diante, tem sido extrema, especialmente depois da morte de Chávez. (…) A promessa dos primeiros anos foi significativamente perdida”.
E, realmente, traindo o programa de Chávez, o peso atual da indústria na economia venezuelana, pelos dados do próprio governo da Venezuela, é ainda menor do que era antes de 1998, quando o líder bolivariano venceu sua primeira eleição, da mesma forma que a dependência de importações é maior. O que é uma façanha, considerando Carlos Andrés Pérez e outros bandidos neoliberais contra os quais o comandante Hugo Chávez se revoltou (cf. Banco Central de Venezuela, Cuentas Nacionales).
TROCA
Noam Chomsky é um homem que pensa – o que não é algo comum no mundo de hoje, assim como não foi comum em nenhum período anterior de decadência, na História das Civilizações.
Ou, talvez, não seja comum nem mesmo em períodos de auge das sociedades que se dividem em classes, como escreveu Lenin, em uma passagem famosa:
“Mesmo no país mais culto, toda classe, inclusive a mais avançada e com o mais excepcional florescimento de todas as suas forças espirituais em virtude das circunstâncias do momento, conta – e contará inevitavelmente, enquanto subsistam as classes e a sociedade sem classes não esteja assentada, consolidada e desenvolvida por completo sobre seus próprios fundamentos – com elementos que não pensam e que são incapazes de pensar. O capitalismo não seria o capitalismo opressor das massas, se não fosse assim.” (V.I. Lenin, Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, trad. de O.C., Tomo XXXIII, Akal, Madri, 1978, p. 174, nota, grifos de Lenin).
Pensar significa, antes de tudo, não fugir da realidade, muito menos fantasiá-la de algo oposto ao que ela é. Sem essa premissa – ou este fundamento, que é, ao mesmo tempo, um resultado da atividade de pensar – não há pensamento possível.
Por isso, são tão desumanamente estúpidos, tão animalescamente burros (com perdão aos burros que são realmente animais), os puxa-sacos de Lula que aparecem brandindo a palavra “golpe”, como se o enunciado do vocábulo tivesse o poder de apagar o golpe que o próprio PT, e o próprio Lula, além de Dilma, perpetraram contra o país – e, ainda por cima, como se a palavra “golpe” fosse um abracadabra com poder de equiparar um ladrão, que roubou o seu próprio povo, com grandes e honestos homens, como um Jango, um Getúlio, um Tiradentes, um Mandela ou um Gandhi.
Temer é um bandido. Mas foram Lula, Dilma e o PT que o tiraram do esgoto e o elevaram à Presidência. Ou ele estaria lá, se não fosse a opção de Lula e do PT, duas vezes, por colocá-lo na vice-presidência de Dilma?
Alguém, antes dessa escolha do PT, ignorava que Temer era um bandido?
Até mesmo as negociatas no porto de Santos, desde o governo Fernando Henrique, eram de conhecimento público.
O fato do PT ter trocado, na vice-presidência, alguém da estatura de um José Alencar por um Temer, é um comentário mais que definitivo sobre o seu apodrecimento.
Mas isso significa, também, que Lula não escolheu o vice de Dilma porque fosse melhor que Temer.
Lula nem mesmo achava errado o que Temer fazia, ao armar o seu esquema de propinas. Pelo contrário.
Daí, as declarações de Lula, há poucos dias, de que as provas contra Temer – inclusive a gravação de um acerto de propina, divulgada no horário nobre da TV – era uma “mentira sórdida”. E, disse Lula, “sou obrigado a reconhecer historicamente que o Temer soube se impor” (v. Lula exagera na bajulação a Temer e defende até Cristiane Brasil para pasta do Trabalho).
Como Lula pode considerar que a gravação da própria voz de Temer é uma “mentira sórdida”?
A questão é que Lula não considera errado pedir e receber propina. A mentira, portanto, não é que Temer tenha acertado a propina, pois isso é evidente. A mentira, para Lula, é que Temer estivesse fazendo alguma coisa demais ao pedir e receber propina. Ele considera não somente isso uma “mentira”, mas uma “mentira sórdida”.
Há um ato falho característico nessas declarações de Lula: é quando chama as provas contra Temer de “mentira inventada”.
O que será uma mentira “não inventada”?
Ora, uma “mentira não inventada” é aquela emitida para esconder um ato que Lula considera perfeitamente normal, mas que, infelizmente, esse povo atrasado – isto é, nós – não consegue entender ou admitir.
Por exemplo: “o triplex não é meu”, “o sítio não é meu”, etc.
Obviamente, o que ele chama de invenção – e, mais que isso, “mentira inventada” – é considerar que o roubo, a propina, é algo errado.
Daí, também, a sua observação de que o problema dos procuradores que o denunciaram, é que eles não entendem de “política”, não sabem como se faz, ou como é, a “política”.
Literalmente, disse Lula:
“Ontem eu vi eles [os procuradores] falarem dos partidos políticos, dos governos de coalizão, vocês sabem que muita gente que tem diploma universitário, que fez concurso, é analfabeto político. O cara não entende do mundo da política. Não tem noção do que é um governo de coalizão. Ele não tem noção do que é um partido ser eleito com 50 deputados de 513 e que tem que montar maioria” (grifo nosso).
Na mesma oportunidade:
“A profissão mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir para a rua encarar o povo, e pedir voto”.
De onde se pode concluir que o roubo – sobretudo aquele perpetrado para se eleger através do abuso do poder econômico, com o embolsamento das “sobras” – é o normal na política, apud Lula.
Afinal foi isso o que ele fez – e não apenas fez, como, nos trechos acima, e em outros, defendeu.
É interessante ver alguns bobos falarem de “golpe”. Lula, na verdade, não acha que houve golpe algum. Por isso, sua defesa de uma nova (nova?) aliança com o PMDB, aliás, MDB:
“O problema não é o MDB de Temer, mas sim alguns integrantes do partido”, disse Lula (grifo nosso).
Ou seja, Temer não está incluído nos “integrantes do partido” que, segundo Lula, são problemáticos.
Ora, o que Temer fez de errado?
Mas em uma coisa, Lula tem razão: realmente, o problema não é o MDB de Temer, mas também o PT, o PP, o PSDB e toda a canalha política corrupta que assola o Brasil – e cujo representante mais notório é ele, Lula.
CARREIRAS
Na entrevista, concedida à Amy Goodman e Juan González, do site norte-americano “Democracy Now”, Chomsky manifesta alguma esperança de que a esquerda da caixa registradora possa se reabilitar:
“Eles terão que retomar as esperanças com setores mais honestos, reconhecer a necessidade de desenvolver a economia sobre uma base sólida, não apenas baseada na exportação de matérias-primas, e ser honestos o suficiente para levar a cabo programas decentes sem ao mesmo tempo roubar o público”.
Infelizmente, isso é tudo o que o PT e outras tendências políticas latino-americanas (e além das latino-americanas) não conseguem fazer.
O motivo é que elas aderiram ao inimigo, ou seja, ao imperialismo em sua modalidade neoliberal, e preferem, por consequência, cevar-se na corrupção, ainda que com o risco de dar com os costados na cadeia.
Ou melhor seria dizer que o limite para a corrupção dessas tendências passou a ser a cadeia.
Essa forma de enunciar o problema revela como elas se tornaram sem limite, abandonando qualquer parâmetro ético, exceto aquele do imperialismo neoliberal, que é, precisamente, nenhum.
Já voltaremos a essa questão – a de como o capitalismo monopolista, em sua fase atual de degenerescência, expresso pela ideologia neoliberal, é incapaz de dar origem a qualquer ética, e, pelo contrário, se choca contra, até mesmo, a ética inicial do capitalismo, aquela expressa por uma suposta, ainda que falsa, igualdade entre os cidadãos.
Antes, algumas considerações históricas.
Evidentemente, a adesão ao inimigo – chama-se a isso traição – não é um fenômeno novo na História Mundial. Nem, muito menos, na esquerda mundial.
José Dirceu, Daniel Ortega, Nicolás Maduro, Michelle Bachelet, e outros da mesma cepa, não inauguraram a adesão ao inimigo – isto é, a traição ao seu próprio povo, à sua própria nação.
Nem Lula, que deixamos de fora na lista do parágrafo anterior porque, ao contrário de Dirceu – que tem origem na resistência popular à ditadura, inclusive na resistência armada contra a ditadura pró-imperialista -, vem do peleguismo anticomunista, instalado pela ditadura, depois da intervenção nos sindicatos e cassação de dirigentes dos trabalhadores, que veio em seguida ao golpe de 1º abril de 1964.
(continua)
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