CARLOS LOPES
Examinar a questão do Direito – não tanto a sua teoria, mas como esta teoria está implícita na ação dos profissionais de Direito – em nossa época, no Brasil de hoje, significa, antes, enfrentar uma questão recorrente em certo tipo de escrito, algo maçante pela incapacidade de apreender minimamente a realidade: existe uma moral burguesa e uma moral proletária?
Ou seja, existem várias éticas dentro de uma mesma sociedade?
Em geral, apresenta-se essa questão a partir do que escreveu Engels. Os leitores mais veteranos e mais afeitos à literatura sobre o assunto, conhecem os trechos do “Anti-Dühring” em que ela é exposta. Aqui, nós os reproduziremos, tendo como referência os leitores mais jovens:
“Que espécie de moral nos pregam hoje? Temos, em primeiro lugar, a moral cristã-feudal, que nos legaram os velhos tempos da fé e que se divide, fundamentalmente, em uma moral católica e em uma moral protestante, com toda uma série de variações e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral ortodoxa dos protestantes, até a uma moral de certo modo liberal e tolerante. E, ao lado dessas, temos a moderna moral burguesa e, ao lado da moral burguesa moderna, a moral proletária do futuro. Portanto, somente nos países mais avançados da Europa, há três grupos de teorias morais, simultâneas e coexistentes, que correspondem ao passado, ao presente e ao futuro. Qual delas é a verdadeira? Em sentido absoluto e definitivo, nenhuma; mas, evidentemente, a que contém mais garantias de permanência é a moral que, no presente, representa a destruição do presente, o futuro, ou seja, a moral proletária” (cf. Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Band 20, Dietz Verlag Berlin, 1975, pp. 86-87, grifo nosso).
Engels refere-se à luta de classes no campo moral. Por isso, usa a expressão “teorias morais” [Moraltheorien]. O que é diferente da ética do conjunto da sociedade, que é um produto, exatamente, da luta entre essas teorias, da luta entre as classes a que correspondem essas teorias.
Por isso, mais à frente, no mesmo capítulo do “Anti-Dühring”, ele frisa:
“Essas teorias morais representam três estágios diferentes do mesmo desenvolvimento histórico e, portanto, têm um fundo histórico comum – logo, têm, necessariamente, muito em comum. Ainda mais. Em níveis iguais ou quase iguais de desenvolvimento econômico, as teorias morais devem necessariamente concordar, em extensão maior ou menor” (idem, p. 87).
O exemplo de Engels sobre essa concordância entre as várias “teorias morais”, é bastante ilustrativo para nossos dias:
“A partir do momento em que a propriedade privada dos bens móveis se desenvolve, todas as sociedades onde isso aconteceu devem ter em comum o mandamento moral: não roubarás” (idem).
Considerando que uma “filósofa” – e pré-candidata do PT ao governo do Rio de Janeiro – declarou-se, literalmente, a favor do assalto, não deixa de ser interessante que Engels considere que esse mandamento moral pertence, também, à moral proletária.
Embora, todo o esforço de Engels, nesse capítulo do “Anti-Dühring”, é para demonstrar que, mesmo em moral, não existem “verdades eternas”.
Mas isso não quer dizer que a superação de uma moral – ou de um mandamento moral – possa ser um afundamento na barbárie, ou seja, a supressão da moral.
Pelo contrário, diz Engels, “não há dúvida que, no todo, em largos traços, a evolução da moral, assim como a dos demais ramos do conhecimento humano, dá-se sempre no sentido do progresso” (idem, p. 88).
Por isso, a superação do mandamento “não roubarás”, não pode consistir na permissão geral para o roubo – ou, o que é a mesma coisa, na impunidade para os ladrões:
“… este mandamento da lei moral é eterno? De maneira nenhuma. Em uma sociedade na qual os motivos para roubar foram eliminados, em que, portanto, o ato de roubar somente poderia ser cometido, no máximo, por alguém com doença mental, o pregador de moral que proclamasse solenemente a verdade eterna do mandamento ‘não roubarás’, seria ridicularizado por todos” (idem, p. 87).
FUTURO
No “Anti-Dühring”, Engels frisa que a moral tem uma determinada base material, econômica. Daí a existência de diferentes “teorias morais” em cada classe particular:
“… vendo que as três classes da sociedade moderna, a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado, possuem a sua moral particular, teremos, necessariamente, de concluir que os homens, consciente ou inconscientemente, derivam suas ideias morais, em última análise, das condições práticas em que se baseia a sua situação de classe, ou seja, das condições econômicas em que produzem e trocam os seus produtos” (id., p. 87).
Porém, a ética das várias classes não são estranhas – ou inteiramente estranhas – umas às outras. Já vimos que essas éticas coincidem em pontos decisivos (“não roubar”, por exemplo), devido a pertencerem ao mesmo processo histórico.
Mas, qual é a ética dominante na sociedade?
Seria fácil parafrasear o conhecido dito sobre as ideias dominantes, para dizer que a ética dominante, em uma sociedade, é a ética da classe dominante.
Daqui se depreenderia, por exemplo, que uma nação cuja classe dominante é composta pelos monopolistas de outro país (ou de outros países), seria dominada pela negação da ética, característica dessa classe. O que parece corresponder ao Brasil de nossos dias.
Mas Engels, de passagem, faz uma advertência contra essa facilidade de interpretar o real, tão característica de certa preguiça da pseudo-esquerda:
“… como até agora a sociedade desenvolveu-se através de antagonismos de classe, a moral foi sempre uma moral de classe, que justificou a dominação e os interesses da classe dominante, ou, quando a classe oprimida se tornou poderosa o suficiente, legitimou a revolta, a indignação contra essa dominação e os interesses futuros dos oprimidos” (id., p. 88, grifo nosso).
Por fim, Engels examina a questão moral na sociedade futura, na sociedade em que não existirão classes. Aqui, não se trata da sociedade socialista, mas daquela sociedade que, na “Crítica ao Programa de Gotha”, Marx denominou “fase superior da sociedade comunista” ou “uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base”.
Nas palavras de Engels:
“Uma moral genuinamente humana, acima e além dos antagonismos de classe, torna-se possível somente em um nível social que não apenas superou o conflito de classes, mas também o esqueceu na prática da vida” (id., p. 88).
ENRIQUECIMENTO
Esta introdução teórica é necessária, porque a pior forma de falência moral que já apareceu, é aquela que usa a moral dos outros para cobrir a sua própria nudez moral.
Assim, Lula, condenado e preso por roubo, se compara a Tiradentes, Mandela e Gandhi.
O PT, no fundo de um esgoto, descobriu sua identidade com Getúlio Vargas – a quem sempre odiou.
Bandidos que assaltaram o Estado (isto é, o povo brasileiro), como o sr. Vaccari, têm lançada a sua candidatura ao status de preso político.
Homens e mulheres de uma geração anterior à do autor destas linhas, falavam em “inversão de valores”. Mal sabiam eles que, algumas décadas depois, nem se poderia usar essa expressão, por falta de valores morais na inversão.
Levantar o caráter de classe da polícia, do Ministério Público, da Justiça – ou da moral vigente – para justificar crimes ou imunizar criminosos em relação à cadeia, é uma perversão hedionda, tanto que quase escrevemos: mais hedionda que todas até agora registradas. No entanto, não somos assim tão especialistas em perversões, para ter certeza de tal coisa…
Quando o notório Parvus roubou dinheiro dos direitos autorais de “Ralé” (“O Albergue Noturno”), Máximo Gorky pediu o conselho de Lenin. Este escreveu, em resposta: “nesses casos, Marx e Engels recomendam chamar a polícia”.
Com efeito, é para expor delinquentes que a polícia existe – assim como a Justiça existe para julgá-los e condená-los. Nesta missão, não se revela o seu caráter de classe, mas o seu papel social, coletivo, em sua generalidade.
O caráter de classe dessas instituições (isto é, o seu papel repressivo em relação a determinadas classes) se revela quando alguns, pobres, são condenados – e os ricos criminosos, corruptos, são absolvidos ou ficam impunes devido a centenas de recursos meramente procrastinatórios.
Mas não é isso que está em questão na Operação Lava Jato e suas derivadas – e não é contra isso que a pseudo-esquerda reclama. Pelo contrário, ela reclama porque a polícia e a Justiça prenderam ou condenaram, exatamente, alguns corruptos, enriquecidos através do roubo.
Portanto, ela nada tem contra que a polícia ou a Justiça se atenham a um estrito – e mesquinho – caráter de classe. Na verdade, seu barulho é porque a polícia e a Justiça não ficaram amarrados a essa mesquinhez. Em suma, sua pregação é para que a polícia e a Justiça não vá além da prisão de alguns ladrões de galinha ou assemelhados – infratores pobres, negros e sem escolaridade.
Tanto assim que, durante o governo do PT, o número de presos, no Brasil, aumentou de 239.345 pessoas (2002) para 726.712 pessoas (junho de 2016), um aumento de 204%, o que fez com que tivéssemos – aliás, temos, atualmente – o terceiro maior número de presos do mundo, em termos absolutos (cf. MJ/Infopen, Brasília, 2017, pp. 7, 9, 14).
Nada menos que 55% desses presos têm entre 18 e 29 anos (74% deles têm de 18 anos até 34 anos). Os negros e mulatos são 53% desses presos (nas penitenciárias, os negros ou mulatos são 64%). E 51% deles não conseguiram completar o ensino fundamental (cf. Infopen, pp. 30-34).
Nenhum desses senhores e senhoritas comoveu-se com esse estúpido aumento dos presos pobres, jovens e negros – que ocorreu no mesmo intervalo de tempo em que, segundo Lula, em recente artigo para o Le Monde, “tiramos 36 milhões de pessoas da miséria extrema” e “levamos mais de 40 milhões para a classe média” (cf. Le Monde, Lula : “Pourquoi je veux à nouveau être président du Brésil“, 16/05/2018).
O JUSTO E O INJUSTO
Hoje, então, esses gênios querem reduzir as sentenças judiciais – e as investigações que possibilitaram essas sentenças – à suposta posição política de juízes, procuradores ou promotores, e policiais.
Não muito surpreendentemente, tal redução somente é tentada quando se trata de impedir que algum assaltante da propriedade pública seja conduzido à cadeia (ou quando é uma tentativa de soltá-lo).
Escrevemos “suposta” posição política, porque esses mesmos indivíduos não sabem, e nem estão interessados em saber, qual é a posição política real de juízes, procuradores ou policiais. Basta a eles a sua própria invenção ou fantasia sobre o assunto.
Aliás, eles sabem que, se tivessem interesse em conhecer a posição desses servidores públicos, isso complicaria muito a sua fraude de reduzir sentenças judiciais contra corruptos à mera parcialidade política.
Mas, aqui, vamos conceder a eles uma vantagem. Façamos uma indagação, partindo da hipótese de que eles estejam certos sobre a posição política dos alvos de sua difamação: do fato de que um juiz tenha uma posição política conservadora, ou mesmo reacionária, depreende-se que as suas sentenças sejam inevitavelmente conservadoras ou reacionárias?
Para chegar a essa conclusão, seria preciso muita má-fé – ou muita rasteirice mental e ignorância.
O processo jurídico concreto existe, assim como existe o Direito – que implica em alguma ideia de justiça, ainda que concebida abstratamente.
Este é, precisamente, o elemento ético do Direito. Como já foi dito há 200 anos:
“Se o crime e a sua supressão, na medida em que esta é considerada do ponto de vista penal, apenas forem tidos como nocivos, poderá julgar-se irrazoável que se promova um mal só porque um mal já existe. Este aspecto superficial da malignidade é, por hipótese, atribuído ao crime nas diferentes teorias da pena que se fundamentam na preservação, na intimidação, na ameaça, na correção, consideradas como primordiais; o que disso deverá resultar é definido, de um modo também superficial, como um bem. Ora, não se trata deste mal nem deste bem; o que está em questão é o que é justo e o que é injusto. Naqueles pontos de vista superficiais oblitera-se a consideração objetiva da justiça, que é o que permite apreender o princípio e a substância do crime” (cf. G.W.F. Hegel, “Princípios da Filosofia do Direito”, trad. Orlando Vitorino, Martins Fontes, 1997, p. 88, grifos nossos).
Uma sentença judicial nem ao menos, obrigatoriamente, corresponde aos interesses econômicos dominantes na sociedade – incluídos, aqui, os interesses econômicos específicos dos juízes.
Se não fosse assim, não teriam existido sentenças a favor da liberdade de escravos, proferidas por juízes que eram senhores de escravos. Ou sentenças a favor da liberdade de comunistas, emitidas por juízes que eram proprietários profundamente anticomunistas.
Mesmo no Direito anglo-saxão – uma variedade do antigo Direito germânico – houve juízes que acreditavam entranhadamente no capitalismo, mas foram pela quebra da Standard Oil (1911) ou da AT&T (1982).
Certamente, isso não é tudo. Como disse uma jovem advogada, “em todos os tempos sempre existiram os Gilmar Mendes” – embora, tipos como o citado para exemplo, não sejam muito fáceis de encontrar. Mas é verdade que a pouca vergonha existiu, também, em outras épocas.
No entanto, Engels – que citamos abundantemente, por suas contribuições neste campo – tinha razão ao escrever:
“Em um Estado moderno, o Direito não somente deve corresponder à situação econômica geral e ser a expressão desta, mas deve ser também uma expressão coerente e que não pareça, devido a contradições internas, claramente inconsistente. E para consegui-lo, se infringe cada vez mais o fiel reflexo das condições econômicas. E quanto mais é assim, mais raramente ocorre que um código seja a expressão brutal, sem mitigar, sem adulterar, da dominação de uma classe: isto ofenderia à ‘concepção da justiça’. (…) Assim, pois, o curso do ‘desenvolvimento do Direito’ só consiste, em grande medida: primeiro, na tentativa de eliminar as contradições provenientes da tradução direta das relações econômicas em princípios jurídicos e de estabelecer um sistema jurídico harmonioso; e, depois, nas repetidas brechas que se produzem neste sistema por influência e pressão do desenvolvimento econômico posterior, que o arrastam a novas contradições” (Engels, Carta a Konrad Schmidt, 27/10/1890, Correspondencia, ed. cit,. p. 384).
Esta é a questão geral, que faz com que os juízes, muitas vezes – dependendo de sua própria estatura – transcendam questões econômicas ou políticas imediatas.
A “ideia de justiça”, por mais abstrata que seja – nos atreveríamos a dizer até: por mais ilusória que seja – tem um papel na história da Humanidade que não é pequeno. Como nos versos do poeta:
Feliz se aquece unida a universal família.
Oh! dia sacrossanto em que a justiça brilha
(Castro Alves, “Os Escravos”)
TRANSIÇÃO
Realmente, é peculiar que a redução – ou confusão – que apontamos seja feita sempre para conceder, ou tentar conceder, impunidade a algum assaltante da propriedade pública.
Porém, se ela fosse verdadeira – se um juiz proferisse suas sentenças meramente de acordo com sua posição política – seria impossível qualquer sistema judicial.
A característica do Judiciário – não enquanto “poder”, mas como instância encarregada de proporcionar o cumprimento da lei por todos – é colocar-se acima das posições políticas de seus integrantes.
Quando isso não acontece – e, às vezes, não acontece – ele deixa de existir como sistema reconhecido por todos, e, em breve, será substituído por outro sistema judicial.
No Brasil, o exemplo mais conhecido é a falência das instituições judiciais da República Velha – e sua substituição por outras, após a Revolução de 30.
Muitas vezes as novas instituições conservaram o nome das antigas – e até mesmo boa parte dos quadros dessas últimas foram preservados pelas novas. No entanto, o sentido geral é outro, sintetizado pelo primeiro ministro da Justiça de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, respondendo, em uma entrevista ao jornal “Correio da Manhã”, à crítica de um jurista sobre a atitude do novo governo em relação ao antigo Supremo Tribunal Federal:
“Estamos, enfim, numa situação revolucionária plenamente vitoriosa. O próprio Supremo Tribunal Federal, a cujas portas se bate pedindo ‘habeas corpus’, está inibido de agir. Ele existe em virtude da Constituição. Estando esta suspensa, ele não poderá fazer sentir sua ação. Repito: não reconhecemos direitos adquiridos. Temos que começar vida nova, em tudo. Até aqui o povo obedecia ao Governo, agora é o Governo que obedece ao povo.”
O Judiciário é, aliás, um produto do Século das Luzes – ou seja, do Iluminismo e da Revolução Francesa. Como diz um historiador francês, no “antigo regime” (no feudalismo) nem mesmo havia “codificação geral de crimes – a legislação criminal de 1670 não fornece definição precisa para a maioria dos crimes, nem classificação e hierarquia explícitas” (cf. Benoît Garnot, “Justiça e sociedade na França do século XVIII”, Textos de História, vol. 11, nº 1/2, 2003).
O que nós chamamos hoje de “Justiça” – a instituição – nada tem a ver com o sistema judicial do feudalismo, que era apenas uma extensão dos privilégios da nobreza. O feudalismo baseava-se na coerção diretamente pessoal: as pessoas não são iguais, nem formalmente, perante a lei.
Por isso, o espaço para a existência de um “Direito”, tal como o entendemos hoje, era muito pequeno.
Trata-se, inclusive, de uma regressão: por isso, a emergência do Direito no Iluminismo fundamentou-se no Direito Romano, evidentemente, anterior ao feudalismo.
Sem dúvida, o escravismo antigo também era baseado na sujeição pessoal do escravo ao senhor. Porém, o escravo, desse ponto de vista, jurídico-formal, estava excluído da “sociedade civil” (para não falar da “sociedade política”, isto é, do Estado). O Direito Romano regulava, fundamentalmente, as relações do patriciado, a classe dominante, com a plebe (um resumo da evolução do Direito Romano, e sua influência posterior, está em um interessante artigo de dois professores da Universidade Estadual de Londrina: v. Marília Salerno e Adiloar F. Zemuner, “A importância do Direito Romano na formação do jurista brasileiro”, Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 27, nº 2, p. 125-133, jul./dez. 2006).
(CONTINUA)