CARLOS LOPES
Em uma anotação realizada durante sua longa prisão sob o fascismo, Antonio Gramsci escreveu:
“Não pode existir associação [sociedade] permanente, com capacidade de desenvolvimento, que não seja sustentada por determinados princípios éticos, que a própria associação [sociedade] determina para seus componentes individuais, a fim de obter a solidez interna e a homogeneidade necessárias para alcançar o objetivo. Nem por isso estes princípios deixam de ter caráter universal” (A. Gramsci, Cadernos do Cárcere, vol. 2, trad. Carlos Nelson Coutinho, 2ª ed., Civ. Bras., 2001, p. 231).
Agradeço ao jurista e professor Enoque Feitosa, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ter-me chamado a atenção para este trecho da obra de Gramsci.
Nele está sintetizado o nosso problema: se a sociedade (isto é, a espécie humana, pois esta não sobrevive sem a associação entre os seres humanos) tem algum futuro – ou se será extinta.
Evidentemente, o fim de uma sociedade não é a extinção da espécie – a sobrevivência desta última dependeu, em seus momentos cruciais, da passagem a outro tipo de sociedade, com base econômica e superestrutura jurídica, política e cultural diferente e superior à anterior.
Se é correta – e deve ser – a conclusão de alguns cientistas, que estudaram a última comunidade dos neandertais, em Gibraltar, o que fez o nosso destino diferente deles, foi a nossa muito maior sociabilidade.
A questão, portanto, de hoje, é que, do ponto de vista mundial, o capitalismo, em seu estágio monopolista, foi já aos seus extremos: tornou-se antissocial, anti-humano. Com isso, ele ameaça a espécie humana, porque ameaça a sua característica central, a sociabilidade – com tudo o que acompanha a sociabilidade humana, a começar pelo pensamento.
Rigorosamente:
“O imperialismo, o capitalismo monopolista, está mais apodrecido do que nunca. (…) é um paquiderme adiposo, esclerosado, repugnante, que não anda mais, que se arrasta, que atravanca todo desenvolvimento das forças produtivas nos países centrais, e suga toda seiva vital nos países periféricos” (Claudio Campos, “A História Continua”, 2ª ed., Fundação Instituto Claudio Campos, 2015, p. 126).
Ou, de maneira ainda mais sintética:
“… o imperialismo é hoje um cadáver mais apodrecido do que nunca, que arrasta para a sua tumba milhões e milhões de seres em todo o mundo, e que nada será capaz de fazer retornar à vida” (idem, p. 235).
Em suma, o capitalismo monopolista tem uma existência de zumbi, de vampiro, de morto-vivo.
Como faz para, ainda, manter-se insepulto?
Pela violência sanguinária – e pela mentira.
Filmes no estilo “Matrix” apenas refletem o mundo de falsidades em que se tornou a chamada “comunicação de massa” – a “mass media”, tão incensada pelo sr. Marshall McLuhan, logo elevado ao status de gênio, na década de 60, por alguns intelectuais meramente tributários do que se diz ou se escreve nos países centrais do sistema imperialista.
Não por acaso, em certos meios acadêmicos – e não somente acadêmicos – passou-se a contestar a existência da verdade. Inclusive nos cursos de jornalismo ou comunicação de algumas das nossas mais prestigiadas universidades.
Existem várias modalidades dessa anti-ideia. A mais grosseira é aquela que afirma que somente existem “versões” ou que a verdade é apenas “a verdade de cada um”.
Porém, as outras modalidades são, a rigor, embalagens, mais ou menos enfeitadas, para essa grosseira idiotice.
Se, no meio acadêmico, isso significa a negação da ciência e sua substituição por um discurso tão reacionário quanto arbitrário, nos meios políticos isso significou a substituição, na maioria das tendências, da estratégia partidária – qualquer uma – pela mera marketagem.
O melhor exemplo, no Brasil, é o PT – embora, o PSDB não lhe fique muito atrás.
Tome-se a campanha de Lula, em 2002.
Quem tomava as principais decisões políticas quanto a que apresentar ao povo, sobretudo através da TV?
O marketeiro, Duda Mendonça.
Se isso era assim lá, em 2002, adquiriu características de hipertrofia maligna em eleições posteriores, sobretudo através do marketeiro João Santana – hoje, com a esposa, condenado a oito anos e quatro meses de cadeia, por lavagem de dinheiro roubado pelo PT.
Tanto Santana quanto a esposa foram réus confessos – isso evita que tenhamos de discutir se é verdade (sim, a verdade existe!), ou não, o que acabamos de dizer sobre a substituição do conteúdo programático por qualquer coisa (não importa que seja falso ou infame) que leve a ganhar uma eleição.
Na sentença que condenou o casal Santana, o juiz Sérgio Moro considerou:
“… a lavagem encobriu a utilização de produto de corrupção para remuneração de serviços eleitorais, com afetação da integridade do processo político democrático, o que reputo especialmente reprovável. Talvez seja essa, mais do que o enriquecimento ilícito dos agentes públicos, o elemento mais reprovável do esquema criminoso da Petrobrás, a contaminação da esfera política pela influência do crime, com prejuízos ao processo político democrático. A lavagem de elevada quantia de dinheiro, com grau de sofisticação, e tendo por consequência a afetação do processo político democrático merece reprovação especial.”
Este é o motivo que fez com que os gastos eleitorais, sob o governo do PT, aumentassem em +571,69%, entre a eleição de 2002 e a eleição de 2014 (a inflação, pelo IPCA, no mesmo período, foi de 99,64%), tornando quase inviável a eleição de candidatos populares, isto é, não dependentes do poder financeiro e da corrupção .
Além de Lula e Dilma, e sob os auspícios deles, Santana corrompeu o processo eleitoral em El Salvador, República Dominicana, Angola, Venezuela e Panamá, se é que não estamos esquecendo algum país (ou alguns).
Temos, aqui, o cruzamento entre a corrupção e a mentira.
Segundo ele mesmo revelou, Santana mantinha uma conta na Suíça que era usada por dirigentes do PT para receber propinas.
O outro lado desse cruzamento é melhor explicitado pela campanha de Dilma em 2014: jamais se viu, no Brasil, tanta mentira em uma campanha eleitoral.
Nem mesmo Goebbels, patrono dessa marketagem, conseguiu chegar, nas campanhas eleitorais que antecederam à ascensão do nazismo, a semelhante grau de falsidade e canalhice.
Dilma acusou seus adversários, literalmente, de tudo o que, dias depois do segundo turno das eleições, passou a fazer, jogando o país na pior crise de sua história.
E ainda encontrou um apoiador tucano para a sua conduta eleitoral no sr. Samuel Pessoa, que enunciou a verdade fundamental do neoliberalismo: “Do ponto de vista das regras de funcionamento da democracia, não há problemas. Estelionato faz parte do jogo” (Folha de S. Paulo, 29/03/2015).
Este é o ideal de democracia do neoliberalismo: o estelionato eleitoral – enganar as pessoas para que um minúsculo punhado de parasitas financeiros possa se apropriar, crescentemente, do produto do trabalho daqueles a quem enganaram.
Não por acaso o guru econômico tucano ficou tão extasiado diante do estelionato eleitoral de Dilma: ela conseguira bater o recorde estabelecido pelo estelionato eleitoral de Fernando Henrique em 1998, quando a “estabilidade” tucana explodiu três meses depois das eleições.
Como não há problemas no estelionato, como o estelionato “faz parte do jogo”, Dilma caiu um ano e cinco meses após tomar posse em seu corrupto e mentiroso mandato – ou, se o leitor quiser, Dilma caiu um ano e cinco meses após tomar posse em um mandato obtido pela mentira e pela corrupção.
Quanto ao avacalhamento das instituições – especialmente o “processo político democrático”, referido pelo juiz Moro – basta olhar o Congresso atual: ele é um Congresso formado pelo PT e pelos aliados do PT para reeleger Dilma, sem nenhuma espécie de moral, ética ou escrúpulo.
Para não falar, por óbvio, no seu vice-presidente (em duas eleições), Michel Temer. Ou no ministro da Fazenda deste, Henrique Meirelles, presidente do Banco Central de Lula.
MANCHA
É evidente, nesse quadro, como a adesão ao neoliberalismo, do PT e de outras tendências – supostamente “de esquerda”, no mundo – conduziu ao afogamento na mentira e na corrupção.
O que é, por exemplo, Daniel Ortega, na Nicarágua, senão um traidor pertencente a essa cepa?
Porém, vejamos, mais um pouco, como se apresenta essa questão especificamente aqui, no Brasil.
A tentativa de, à luz do dia, livrar criminosos – que assaltaram a Petrobrás, os fundos de pensão das estatais, e jogaram em uma vala o sistema eleitoral do país – é um claro sinal de tempos em que a derrocada ética é tão brutal, que tenta apresentar-se, mesmo, como o seu inverso.
Assim, apesar de todas as provas, em milhares de documentos – e depoimentos, que também são provas, sobretudo quando convergem -, quanto à culpabilidade de Lula, seus asseclas e ele próprio apresentam como culpado o juiz Moro, que apenas o condenou de acordo com a lei, ou os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que fizeram o mesmo.
Sejamos bastante singelos, pois não há necessidade, aqui, de grandes complicações: que crime o juiz Sérgio Moro cometeu?
Por algum acaso, ele recebeu, de maneira embuçada, um triplex à beira de uma aprazível e valorizada praia, como propina, passada por uma empreiteira?
Será que Moro teria se apropriado, através de prepostos, de algum sítio ou chácara, reformado por três empreiteiras, com dinheiro descontado das contas de propina?
Ou o juiz paranaense, em algum momento, permitiu ou fez acerto para que saqueassem, em bilhões de reais, a principal propriedade do povo brasileiro, a empresa mais estratégica, mais popular – e com maior fama (aliás, justa) de eficiência, e, até então, de rigor, de honestidade, da História do País?
Foi o juiz Moro que manchou o seu currículo e tentou manchar a história da Petrobrás, através do roubo?
O leitor sabe a resposta a essas perguntas. Fazê-las, aqui, é um meio de explicitar o problema ético que estamos examinando.
Pois, a súbita descoberta do PT – repetida por seus papagaios – de que Moro é um “agente do imperialismo norte-americano”, não é apenas absurda, oportunista e cretina.
Desde quando Lula ou o PT se incomodaram com o imperialismo norte-americano?
Será que foi quando nomearam o ex-presidente do BankBoston, Henrique Meirelles, recém-eleito deputado pelo PSDB, para a presidência do Banco Central?
Ou quando o então ministro favorito de Lula, Antonio Palocci, anunciou que estava pagando antecipadamente, antes que vencesse, uma dívida com o FMI de US$ 15,5 bilhões (quinze bilhões e 500 milhões de dólares), com o compromisso de continuar executando no país, precisamente, a política do FMI?
Ou foi quando Lula, no dia 15 de dezembro de 2003, telefonou a Bush para congratulá-lo pela “captura” de Sadam Hussein?
Esta última façanha é, também, uma demonstração do caráter – isto é, da falta de escrúpulos – de Lula.
Quando do assassinato de Sadam, a 30 de dezembro de 2006, um crime que até mesmo a mídia dos EUA não conseguiu digerir, Lula fez um lamento pela morte do presidente iraquiano, sem mencionar, obviamente, as suas congratulações a Bush, três anos antes.
No dia 20 de dezembro do ano passado, em entrevista coletiva na sede do Instituto Lula, ele disse o seguinte:
“Eu às vezes tento ficar encontrando um roteiro de processo para comparar com o meu e o mais forte que vem à minha cabeça é o da invasão ao Iraque. O Bush sabia que era mentira, que o Iraque não tinha arma química. O Tony Blair sabia que não tinha e inventaram uma mentira, sustentaram uma mentira e conseguiram fazer a invasão de um país por conta de uma mentira. Invadiram um país há 15 anos e cadê a arma química?”
Nenhuma autocrítica por ter cumprimentado Bush quando da prisão de Sadam.
Pelo contrário, Lula continuou:
“Arma química era o próprio Sadam Hussein. E o Sadam é outro exemplo que eu dou. Ele contou por tanto tempo mentira para o povo e ele gostava que o povo soubesse que ele tinha arma de destruição em massa. Ele adorava blefar, vendia isso e ele acreditava na própria mentira. Ele não teve coragem de dizer: ‘chama a agência internacional que controla arma de destruição em massa e dizer que não tem’. Ele não teve coragem. Preferiu ser encontrado dentro de um buraco como se fosse um rato do que ter a dignidade de dizer para o povo que mentiu.”
Quando foi que Sadam disse para o povo iraquiano, ou para qualquer outro povo, incluindo o povo norte-americano, que o Iraque possuía “armas de destruição em massa”?
Esta é, exatamente, a versão atual do establishment norte-americano, segundo a qual o culpado da invasão do Iraque foi Sadam, que os enganou, fazendo-os crer que possuía armas de destruição em massa.
Sadam jamais disse tal coisa. Pelo contrário, o presidente iraquiano abriu o país para que as agências internacionais comprovassem que não existiam armas de destruição em massa no Iraque.
Essas agências foram obrigadas a sair do Iraque, depois que Bush declarou que ia atacar o país. Foi Bush, não Sadam, quem impediu essas agências de continuarem no Iraque.
Lula, portanto, está apenas repetindo a propaganda da CIA – transmitida por alguns seriados americanos, onde essa versão sobre a invasão do Iraque tem aparecido frequentemente.
O mentiroso, que até acredita na própria mentira, não é Sadam. Nem o covarde. Quanto ao rato, não foi Sadam que bajulou Bush, na hora de seu maior crime – e agora, somente para fugir da punição por seus próprios crimes, acusa o juiz Moro de ser um agente do imperialismo norte-americano.
ESPOLIAÇÃO
Somente para ser justo – sempre é necessário ser justo – é verdade que o governo Lula afastou a Alca, a tentativa, aceita pelos tucanos, de tornar a economia brasileira, oficialmente, um apêndice da economia norte-americana.
Mas fez isso – ou se submeteu a isso – de outra forma: ao invés de aderir a um acordo externo sob tacão norte-americano, aumentou, com a alta taxa de juros de Meirelles & cia., a participação dos monopólios norte-americanos diretamente dentro do país.
Sob Lula e Dilma a economia foi desnacionalizada – ainda mais do que tinha sido sob Fernando Henrique.
É o que explica o estoque de “investimento direto estrangeiro” (IDE) – isto é, o dinheiro estrangeiro aplicado em empresas – que quintuplicou (às vezes, sextuplicou) entre 2000 e 2015. Os dados abaixo são dos Censos de Capitais Estrangeiros do Banco Central:
ESTOQUE DE INVESTIMENTO DIRETO ESTRANGEIRO:
1995: US$ 41,696 bilhões;
2000: US$ 103,015 bilhões;
2005: US$ 162,807 bilhões;
2010: US$ 587,209 bilhões;
2011: US$ 590,495 bilhões;
2012: US$ 616,258 bilhões;
2013: US$ 573,745 bilhões;
2014: US$ 550,635 bilhões;
2015: US$ 518,116 bilhões.
[NOTA: Os dados do BC, até 2010, são quinquenais. Depois, são anuais. Aqui está computado apenas o investimento direto estrangeiro que entrou sob a forma de participação no capital de empresas. Não está computado o investimento direto sob a forma de “operações intercompanhias”, ou seja, empréstimos entre matrizes e filiais de empresas estrangeiras, cujo estoque o Censo do BC somente registra a partir de 2010 (esse estoque de dinheiro estrangeiro proveniente dessas operações duplicou entre 2010 e 2015, indo de US$ 95,137 bilhões para US$ 205,711 bilhões).]
A maior parte desse dinheiro teve como origem os EUA – ou diretamente ou como “investidor final”, passando por outros países (o exemplo mais evidente dessa última forma de entrar no Brasil é o dinheiro norte-americano que entra via Holanda, aliás, “Países Baixos”).
Essa política de submissão ao “investimento direto estrangeiro” teve como resultado a desnacionalização de 2.446 empresas brasileiras entre 2004 e 2016, com a perda de controle nacional em setores dos mais importantes da economia (cf. KPMG, Pesquisa de Fusões e Aquisições, de 2004 a 2016).
Como consequência, a média das remessas anuais para o exterior triplicaram durante os governos do PT, em relação ao lastimável governo do PSDB; as remessas especificamente por conta do “investimento direto estrangeiro” (sobretudo lucros e dividendos declarados oficialmente) aumentaram em +474,29%; e as remessas oriundas de ganhos com papéis financeiros aumentaram em 103,53%.
PARA TRÁS
É óbvio que, quando Lula e outros tentam se colocar acima da lei, se colocam contra os direitos que a burguesia conquistou há mais de 200 anos.
Portanto, estão mais perto do feudalismo que do capitalismo daquela época. A busca do privilégio é, precisamente, o seu aspecto mais escandaloso (a “liberdade de roubar”, mas não para todos, bem entendido, caso contrário, não haverá de quem roubar…).
É isso o que faz com que a atitude do juiz Moro seja muito mais progressista que a de Lula, independente das opiniões políticas de Moro sobre outras questões.
Na verdade, aqui temos uma confluência entre a antiga ideologia burguesa – aquela expressa pelos ideais da Revolução Francesa – e a ideologia de uma sociedade futura, em que os direitos, antes formais – parcial ou totalmente – tornam-se reais.
Não se trata de algo inédito na História.
Há muito, considerava-se Tácito, o historiador romano, um reacionário. O motivo era sua evidente nostalgia dos valores da república romana, que a ascensão de Otávio Augusto encerrara em 27 a.C., e sua quase ojeriza pelo patriciado romano – classe a que pertencia – durante o império.
No entanto, Tácito, com os valores antigos que defendia, é muito mais progressista que, por exemplo, os bajuladores de Nero – cujos nomes estão hoje, com algumas exceções, no sepulcro da História.
Um caso inverso ao de Tácito é Michel Foucault.
(CONTINUA)