CARLOS LOPES
No primeiro livro de “O Capital”, Marx chamou de “conto de fadas” ou “história para crianças” (“Kinderfibel” no original, mais ou menos equivalente a “conto da carochinha”) à ideia, condensada por Benjamin Franklin – e, evidentemente, não só por este -, de que a chave do sucesso sob o capitalismo (“para alcançar a riqueza”, nas palavras de Franklin) está em uma conjunção de austeridade, dedicação ao trabalho e inteligência.
Tratava-se, apontou Marx, de um mascaramento da acumulação primitiva:
“Essa acumulação primitiva desempenha na economia política um papel análogo ao do pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, por isso o pecado contaminou a humanidade inteira. Pretende-se explicar a origem da acumulação por meio de uma história ocorrida em passado distante. Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo econômica, e uma população constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão com o suor de seu rosto Mas, a lenda econômica explica-nos o motivo por que existem pessoas que escapam a esse mandamento divino. Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia ficou finalmente sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora tenham esses poucos parado de trabalhar há muito tempo. Thiers, com toda a untuosidade presidencial, defende a propriedade, servindo aos franceses, outrora tão espirituosos, essas puerilidades insulsas. Mas, quando está em jogo a questão da propriedade torna-se dever sagrado a defesa intransigente da doutrina infantil do abecedário capitalista, como a única legítima para todas as idades e para todos os estágios de desenvolvimento. É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em suma, pela violência. Na suave economia política o idílio reina desde os primórdios. Desde o início da humanidade, o direito e o trabalho são os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se naturalmente o ano corrente. Na realidade, os métodos da acumulação primitiva nada têm de idílicos” (cf. Karl Marx, “O Capital”, Livro 1, vol. 2, trad. Reginaldo Sant’Anna, Civ. Bras., 1968, p. 829).
Essa síntese de Marx, quase 100 anos depois, ainda incomodava a um fariseu como Schumpeter, e continua incomodando outros (v. Joseph A. Schumpeter, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, Editora Fundo de Cultura, 1961, cap. 4).
Mas isso não quer dizer, muito ao contrário, que Benjamin Franklin não acreditasse em seu conto da carochinha – e até o próprio Thiers, citado por Marx na passagem acima, historiador e político reacionaríssimo, presidente da França durante o banho de sangue que afogou a Comuna de Paris.
Antecipemos que, no capitalismo monopolista, a divisão da humanidade em “duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo econômica, e uma população constituída de vadios, trapalhões” seria a base (ou o embrião ideológico) para a divisão entre “homens superiores” e “homens inferiores” exposta por Nietzche e praticada pelo nazismo.
Mas essa seria a negação degenerada da própria ética que Franklin condensou, assim como o monopólio capitalista é a negação degenerada do mercado e da concorrência.
Voltemos, então, ao tempo em que tal ainda não ocorrera.
Benjamin Franklin, muito mais progressista do que Thiers (para não falar de Nietzche e do nazismo), não somente acreditava em seu conto da carochinha, como achava que era sua missão propagá-lo. Nenhum outro dos “pais fundadores” dos EUA – nem Alexander Hamilton – expressou tão fortemente, assim, uma ética do capitalismo nascente.
O “Almanaque do Pobre Ricardo” (“Poor Richard’s Almanack”) não era (e não é), portanto, uma obra humorística. Como diz Franklin, em sua “Autobiografia”, “considerei-o como um veículo adequado para a difusão da instrução entre as pessoas comuns, que só excepcionalmente compram outra classe de livros; preenchia, por isso, todos os pequenos espaços livres que restavam entre os dias mais notáveis do calendário, com máximas e provérbios, em especial aqueles que incitavam à aplicação ao trabalho e à frugalidade como meios para alcançar a riqueza, e, desta maneira, contribuíam para a virtude” (cf. “Autobiography of Benjamin Franklin”, J.B. Lippincott & Co, Philadelphia, 1868, p. 236, grifo nosso).
Resumindo, a ética exposta por Franklin parte de uma premissa: desde que o sujeito desenvolva, ou seja dotado, de energia, inteligência e vontade de poupar, o enriquecimento – portanto, o sucesso social – é garantido.
Ainda que existam diferenças entre um ser humano e outro, a riqueza e o reconhecimento da sociedade podem ser conquistados por todos – ou quase todos. Essa conquista da riqueza é, também, o maior sinal da virtude de um cidadão e da bênção que o Criador espargiu sobre ele.
Daí, segundo Ricardo (não o economista, mas o personagem e pseudônimo de Benjamin Franklin, “Richard Saunders”), “de cem pessoas indigentes há uma que seja verdadeiramente necessitada”.
O resto, de acordo com essa concepção, são preguiçosos. Ou vagabundos. Ou perdulários.
Pois, “adquirir e poupar, eis o verdadeiro segredo para converter o chumbo em ouro”.
Uma pena que não se possa adquirir e poupar ao mesmo tempo…
Max Weber, que, faça-se justiça, percebeu a importância de Benjamin Franklin – e, especificamente, do “Almanaque do Pobre Ricardo” – para a ética capitalista, fez a observação de que aquilo que nos agiotas do século XV (ele cita Jakob Fugger) era ganância sem racionalizações, em Franklin tornou-se uma ética.
A observação, como quase tudo em Weber, é algo superficial e envolta em pedantismo, porque o mundo de Benjamin Franklin é demasiado diferente daquele de Fugger & colegas para permitir uma comparação direta (por exemplo, seria uma vacuidade dizer que o impulso ao estupro da fêmea, do macho das cavernas, transformou-se, nos poetas românticos, em amor pela mulher, apesar de, em boa parte, ser verdade).
Apesar desses problemas, até que esta síntese da ética de Franklin não é ruim:
“Acima de tudo, este é o summum bonum dessa ‘ética’: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho, (…) e pensado tão exclusivamente como fim em si mesmo, que, em comparação com a ‘felicidade’ do indivíduo ou sua ‘utilidade’, aparece em todo caso como inteiramente transcendente e simplesmente irracional. O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais. Essa inversão da ordem, por assim dizer, ‘natural’ das coisas, totalmente sem sentido para a sensibilidade ingênua, é tão manifestamente e sem reservas um leitmotiv do capitalismo, quanto é estranha a quem não foi tocado por seu bafo” (Max Weber, “A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo”, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, pp. 46-47).
A questão decisiva, do ponto de vista que estamos analisando, é que, para Benjamin Franklin, ao “capitalismo (…) não lhe pode servir (…) aquele homem de negócios cujo comportamento externo for simplesmente sem escrúpulos” (idem, p. 50).
Esse “homem de negócios” pode até mesmo não ter escrúpulo algum – mas não pode ter um “comportamento externo” sem escrúpulos.
Provavelmente, La Rochefoucauld tinha razão, ao escrever: “A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”.
Pois, exigir um “comportamento externo” com escrúpulos não é uma limitação pequena da esbórnia gananciosa, considerando os tempos atuais, onde se alega e propagandeia – inclusive dentro dos lares, pela TV – que a falta de escrúpulos é o componente essencial e admirável de um “homem de negócios”, para o sucesso no amealhamento de riquezas.
Foi nesse conto de terror que o PT acreditou.
QUASE NADA
Durante muito tempo – praticamente até às vésperas da queda do socialismo na URSS – a justificativa dominante dos ideólogos do capitalismo, inclusive dos ideólogos do capitalismo monopolista, para suas políticas, era a diminuição das desigualdades.
Com certeza, havia um motivo muito prático para isso: eles travavam uma guerra contra um sistema, dominante na URSS, Leste Europeu, na China, Coreia Popular, Vietnã e Cuba, que, realmente, se não acabara com todas as desigualdades (nem era este o seu objetivo), acabara com as diferenças dramáticas entre milhões de miseráveis famintos, de um lado, e uma pequeníssima cepa de abastadíssimos monopolistas, que açambarcavam a maior parte da renda e da propriedade.
Por isso, os ideólogos do capitalismo monopolista enfatizavam que todos alcançariam a felicidade se deixássemos as forças de “mercado” (isto é, os monopólios financeiros) à solta, mesmo que, para chegar a essa felicidade, morressem milhões de pessoas pelo caminho. Esses ideólogos sustentavam tal edificante concepção, mesmo no fundo das piores crises:
“… quando sobreveio a Grande Depressão após o colapso do mercado de ações em outubro de 1929, os economistas da tradição clássica, o que vale dizer quase todos eles, ficaram de fora. Simplesmente era melhor não interferir no que estava ocorrendo, e esperar. Duas das figuras dominantes da época, Joseph Schumpeter (então na Harvard) e Lionel Robbins (da London School of Economics), insistiram publicamente que nada fosse feito: a depressão deveria seguir seu curso até esvair-se por si mesma. Ela surgira por causa de um acúmulo de toxinas no sistema; as privações e dificuldades serviriam para eliminar estes venenos, fazendo com que a economia recuperasse sua saúde. A recuperação, asseverou Schumpeter, ocorreria por ela mesma. E, acrescentou ele: ‘isso não é tudo: nossa análise nos leva a crer que uma recuperação só é sólida e saudável se ocorrer por ela mesma’” (cf. J.K. Galbraith, “O Pensamento Econômico em Perspectiva – uma história crítica”, trad. Carlos A. Malferrari, Pioneira, 1989, pp. 175-176).
A depressão que eclodiu em 1929 desempregou 50% da força de trabalho nos EUA – e mais ou menos o equivalente na Alemanha, França, Inglaterra e demais países capitalistas.
A felicidade prometida pelos ideólogos dos monopólios era, portanto, do mesmo tipo daquela prometida pelas convocações para a I Guerra Mundial, “uma guerra para acabar com todas as guerras”…
Porém, havia exceções entre esses ideólogos. Existiam aqueles que, depois de 1929, propunham algum modo de intervenção na crise.
Por exemplo, o professor (de economia) Thomas Nixon Carver, um dos mais incensados lentes de Harvard, propôs, em 1936, durante uma reunião de economistas do Partido Republicano, a esterilização de todos os pobres dos EUA. Um pobre, lembra Galbraith, era definido por Carver como “qualquer pessoa que ganhasse menos de 1.800 dólares por ano, uma categoria que então abrangia cerca de metade de todas as famílias do país”.
Assim, pensava o professor, impedidos de perpetuar a sua maldita espécie, a pobreza diminuiria nos EUA…
Porém, é forçoso reconhecer que a solução de Schumpeter & cia. – de nada fazer diante da depressão – não era muito diferente da solução de seu colega em Harvard. A diferença consistia em que, ao invés de esterilizar, matava os pobres de fome.
DUAS CONCEPÇÕES
Com Roosevelt – e com Keynes – a premissa da hipotética igualdade, como ponto de partida, entre os seres humanos, foi, de certa forma, restaurada entre os ideólogos do capitalismo.
Especialmente na questão do emprego, desde a década de 30, e, especialmente, depois da “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, de Keynes, em 1936, a maioria dos economistas apontava o pleno emprego como o objetivo central da política econômica em um país capitalista.
Eram minoritários os que pregavam que o motor da economia – e, com certeza, o objetivo da política econômica – devia ser o aumento da desigualdade, a concentração de renda, a privatização dos monopólios naturais (água, energia, telefonia, etc.), o fim dos serviços públicos que atendem ao povo, a pilhagem aberta de uma pequena parte da população sobre a maioria, enfim, o aumento do desemprego e da miséria como uma “espora” (assim disse um dos ideólogos do governo Reagan) para “estimular” os trabalhadores e outros segmentos do povo.
Em resumo, o neoliberalismo era uma seita não apenas minoritária, mas até mesmo desprezível, inclusive no centro do imperialismo, os EUA (abordamos essa questão em “O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica”, publicado em março de 2011).
É verdade que a famosa e sinistra cartilha do Fundo Monetário Internacional (FMI) ia bastante na direção dos neoliberais. Porém, nem o FMI, no período que vai de 1945 até 1980, nem os “monetaristas” daquela época, fizeram algo semelhante ao que foi feito depois.
A exceção foram as ditaduras, como a de Pinochet, no Chile, e a de Videla, na Argentina, em que o neoliberalismo foi implantado desde fora, através de um mar de sangue.
Porém, a ideia de que não há seres humanos superiores e seres humanos inferiores, pelo menos entre os brancos (foi só a isto que chamamos “igualdade”), já não era, desde o fim do século XIX, consensual entre os ideólogos do capitalismo.
Posteriormente, com a ascensão do nazismo, durante algum tempo – pouco tempo, mas suficiente para quase destruir o mundo – a concepção racista de que os “superiores” devem dominar os “inferiores”, disputou a hegemonia, no campo ideológico do capitalismo, com o rooseveltianismo e o keynesianismo, para não falar, mais em geral, do humanismo e do racionalismo.
Alguém que viveu aquela época – nos falha a memória quem foi o autor da observação – disse que a Alemanha e os alemães “pareciam marcianos” a partir de 1933, ou seja, depois que Hitler se instalou no poder.
Com efeito, era algo completamente contrário a toda a experiência humana, desde o Iluminismo, e, mesmo, bem antes.
Não se trata, aqui, da política econômica – essa política, tão incensada por alguns como um sucesso econômico, consistiu em diminuir o desemprego (44% dos trabalhadores alemães estavam desempregados, em 1932) às custas de um violento rebaixamento nos salários reais (em relação ao período anterior à crise e mesmo em relação aos salários durante a crise), uma cavalar concentração de renda, com os gastos públicos colocados a serviço dos cartéis que dominavam a economia alemã.
[O arrocho econômico do nazismo sobre operários, agricultores e pequenos proprietários urbanos é descrito, sucintamente, por William L. Shirer, “Ascensão e Queda do Terceiro Reich”, Vol. 1, trad. Pedro Pomar, 5ª ed., Civ. Bras., 1967, pp. 381, 384 e 391. Sobre as taxas de desemprego e a crise final da República de Weimar, que conduziu ao nazismo, v. Lionel Richard, “A República de Weimar (1919-1933)”, trad. Jônatas Batista Neto, Círculo do Livro, 1988.]
O sentimento de estranheza, a sensação de absurdo, que fazia com que os alemães, sob Hitler, parecessem “marcianos”, não era devido à política econômica, mas a uma ideologia que dividia os seres humanos em “superiores” e “inferiores”, e negava abertamente a razão, inclusive os pensadores que fizeram a glória do que se chamou a filosofia clássica alemã – Kant e Hegel, por exemplo.
Mas nem o nazismo se atreveu a fazer propaganda da desigualdade entre os alemães, exceto os que eram judeus – a inferioridade dos sub-homens era apontada em outros povos, que eram, claro, inferiores porque mereciam ser saqueados e massacrados.
No entanto, não é a propaganda – o que os nazistas colocavam “para fora’ – que é importante aqui, mas o que eles realmente acreditavam.
Nesse sentido, o culto a Nietzche pelos nazistas é perfeitamente coerente com a afirmação de Hitler, em discurso aos seus generais, no início da invasão da URSS, de que os alemães não estavam contidos por “nenhuma limitação moral”.
(continua)
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