CARLOS LOPES
O escritor norte-americano Upton Sinclair chamou a Universidade de Chicago de “a universidade da Standard Oil” ou “Mr. Rockefeller’s University of Chicago” – e descreveu o clima de terrorismo intelectual que era próprio da instituição no começo do século XX, onde algum professor que defendesse uma ideia minimamente progressista era perseguido, excluído, e, inclusive, após a exclusão, defrontava-se com a quase impossibilidade de empregar-se em outra universidade (cf. Upton Sinclair, “The Goose-Step: A Study of American Education”, Pasadena, 1923, p. 243 e segs, e, também, p. 375).
Sinclair colheu, entre outros, o seguinte depoimento – sob a condição de anonimato – de um professor da Universidade de Chicago: “Nós somos boas vacas; ficamos em silêncio, amarrados aos nossos postes, e fornecemos nosso leite em horários regulares. Somos livres, porque não temos vontade de fazer nada além do que nos dizem que devemos fazer. E morremos de senilidade prematura” (cf. Upton Sinclair, op. cit., p. 247).
A Universidade de Chicago fora comprada, em 1890, por John D. Rockefeller, dono da Standard Oil, o monopólio do petróleo, através de uma subsidiária da Igreja Batista dos EUA, a American Baptist Education Society. Depois, nos momentos de dificuldade, a Rockefeller Foundation sustentou a universidade.
A julgar por seu famoso departamento de economia – onde von Hayek foi se abrigar quando saiu de Londres, em 1950 – a situação não mudou muito, desde que Upton Sinclair escreveu seu livro sobre a influência plutocrática nas universidades norte-americanas.
A única exceção – algo que parece realmente ter mudado – é o antissemitismo. Na época em que Sinclair escreveu, a Universidade de Chicago tentava restringir o acesso de judeus.
Naqueles tempos, os judeus norte-americanos eram basicamente operários – os “Judeus Sem Dinheiro”, do livro de Michael Gold –, e, dizia-se, com propensão de aderir a tendências de esquerda (para o leitor que se interesse pelo assunto, o relato mais importante, daqueles que conhecemos, é o de Joseph North – ele próprio um operário de origem judaica ucraniana – em suas memórias, “Nenhum Homem é Estrangeiro”, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Avante, Lisboa, 1981).
Havia, também, claro, os “cinco bancos judeus de Wall Street” (Goldman Sachs; Bear Stearns; Kuhn, Loeb & Co; Lehman Brothers; e Salomon Brothers), que existiam na esteira de J.P. Morgan, tal como aqueles predadores menores que comem restos que escapam da boca do tubarão.
Com a proximidade da II Guerra, a política da universidade de Rockefeller em relação aos judeus, evidentemente, mudou: depois da guerra, na Universidade de Chicago, von Hayek tinha um ajudante, Milton Friedman, que depois seria elevado, pela mídia reacionária e por algumas cabeças de alfinete acadêmicas (todas com um interesse monetário inversamente proporcional ao tamanho do cérebro), ao papel de Zaratustra da economia.
Galbraith descreveu Friedman como um sujeito “totalmente imune às dúvidas que perturbam estudiosos intelectualmente mais vulneráveis” (cf. J.K. Galbraith, “O Pensamento Econômico em Perspectiva – uma história crítica”, trad. Carlos Malferrari, Pioneira, 1989, p. 244).
Trata-se de uma boa aproximação do que é a teoria de Friedman – algumas crenças toscas, que não podem ser colocadas em dúvida, pela simples razão de que não podem ser provadas ou demonstradas.
PANFLETOS
Mas qual a contribuição de Friedman para a teoria econômica (incluindo nessa categoria, apenas para efeito de raciocínio, aquela vulgaridade neoliberal ou monetarista, que alguns acham que é “teoria”)?
A ideia de jerico de que os preços são função da quantidade de moeda (e velocidade de sua circulação), como se a moeda nada tivesse a ver com a produção, ou como se a produção fosse um apêndice da moeda, não é sua.
Embora mais antiga ainda, a forma dessa “teoria quantitativa da moeda” que aparece em Friedman, é a que, em 1911, foi apresentada por Irving Fisher – que, depois, seria o principal adversário acadêmico do “New Deal”, de Franklin Delano Roosevelt.
A obsessão com a inflação, cujo “controle” seria – ao invés do crescimento – o objetivo central da política econômica, também não é original.
Até em Joaquim Murtinho, o ministro da Fazenda de Campos Sales, no final do século XIX, essa fixação – que reflete apenas o interesse dos bancos no sentido de que os ativos financeiros não se desvalorizem (ou, dito de outra forma, no sentido de que o juro real não seja reduzido pela inflação, ou seja o maior possível) – já aparece, da mesma forma que apareceria em todos os posteriores serviçais do setor financeiro.
Murtinho, evidentemente, não foi o inventor dessa maneira de atrelar as finanças do país aos interesses financeiros – que, no caso dele, eram os da banca londrina.
[NOTA: Em seu ataque à política de Joaquim Murtinho e Campos Sales, no longínquo ano de 1901, Vieira Souto – professor de economia política da Escola Politécnica do Rio – fez da teoria quantitativa da moeda, da qual o então ministro da Fazenda era adepto, o seu principal alvo. Isso aconteceu, portanto, muito antes que Fisher ou Friedman apresentassem a sua versão dessa teoria (cf. Luís Rafael Vieira Souto, “O último relatório da Fazenda”, in “Ideias Econômicas de Joaquim Murtinho”, Senado/Casa de Rui Barbosa/MEC, 1980, p. 341).]
Sobre essas questões, o que se pode dizer é que Friedman foi um propagandista delas – um panfletário, para ser exato.
NATUREZA
A única coisa em Friedman que parece original, é a postulação de uma “taxa natural de desemprego”, que seria necessária para evitar a inflação.
Como é possível, perguntará o leitor, existir uma “taxa natural de desemprego”?
O emprego – e, portanto, a sua negação, o desemprego – é um fato econômico e social, consequência de uma determinada política, ou um fruto da natureza?
Quais eram os empregos “naturais” de nossos antecessores que moravam em cavernas?
Ou será que os empregos nascem em árvores, como as graviolas, as mangas e as goiabas?
Em suma, desde quando os empregos são um produto da natureza, para que exista uma “taxa natural” de desemprego?
Mas é esse tipo de conduta, que transfere para a natureza o que é efeito doloroso de uma política econômica desumana e estúpida, o que estamos aqui examinando, porque não se trata de um problema apenas individual – muito menos de um problema econômico, apesar de ser assim apresentado.
É esse desapego a qualquer verdade – portanto, a qualquer moral – que caracteriza, eticamente, o capitalismo monopolista, sobretudo na atualidade.
Óbvio, o papel dessa “taxa natural de desemprego” é rebaixar os salários ou impedir que eles subam, colocando no pescoço dos trabalhadores a permanente ameaça de demissão – ou seja, a ameaça de substituição por algum outro trabalhador, antes desempregado, contratado por menor salário.
É, portanto, um contrabando, para dentro da política econômica, de uma indecência fundamental, pois é operada através do engodo.
Sobre isso, não se pense que são apenas os neoliberais declarados, que são adeptos dessa imoralidade. Há não muitos meses, ouvimos um “neo-desenvolvimentista” defender o arrocho salarial, com a alegação de que o suposto “pleno emprego” do governo Dilma (cáspite!) fez com que os salários aumentassem demais.
Assim, a “taxa natural de desemprego” parece ser, realmente, uma inovação de Friedman. Até então, os economistas – estamos nos referindo aos defensores do capitalismo – sempre colocavam como objetivo, ou “tendência”, o pleno emprego.
Não apenas porque essa era a única maneira de não entrar já derrotados na polêmica com os defensores do socialismo – que manteve o pleno emprego e o crescimento na URSS, durante o mesmo período em que o desemprego e a depressão econômica alcançava dezenas de milhões de pessoas no Ocidente.
Acontece que o pleno emprego – ou a tendência a ele – era uma decorrência da teoria que alguns chamam “neoclássica”.
Não por qualquer aspecto progressista dessa teoria. Pelo contrário. Considerando perfeito o mundo da concorrência (ou, o que é a mesma coisa, considerando que a concorrência era “perfeita”, portanto, omitindo a existência de monopólios e cartéis), era fácil chegar à conclusão, como Arthur Pigou, o mandachuva acadêmico inglês da teoria “neoclássica”, em 1920, que “com uma concorrência perfeitamente livre sempre haverá uma forte tendência ao pleno emprego. O desemprego existente num dado momento qualquer decorre integralmente de resistências de atrito que impedem que os ajustes adequados nos preços e salários sejam feitos instantaneamente” (cit. por Galbraith, op. cit., p. 191).
Isso equivale a dizer que, se os trabalhadores permitissem que seus salários fossem livremente determinados pelos empregadores, assim como os demais preços da economia, não haveria desemprego.
Que isso nada tenha a ver com a realidade, não é, aqui, a questão. O importante é que, para Friedman, nem essa barbaridade – que, se fosse realizada, implicaria em salários de fome, sobretudo considerando que a economia dos países centrais é uma coleção de monopólios que sufocam todo o resto – era possível ou era desejável.
Pelo contrário, segundo ele, é necessário que alguns milhões estejam desempregados para que o sistema funcione.
Naturalmente, um sistema que precisa da fome permanente de milhões para funcionar, não merece funcionar – o melhor é que se arrume outro sistema.
Mas, enquanto isso, ouvem-se discussões – por exemplo, durante o governo Dilma – sobre qual seria a “taxa natural” de desemprego do Brasil, se seriam 4 milhões ou 6 milhões ou 10 milhões os trabalhadores que deveriam estar permanentemente sem emprego, para evitar a inflação – que, claro, só pode ser causada pelos altíssimos salários que os brasileiros recebem…
A “taxa natural de desemprego” de Friedman equivale a um genocídio.
Tomemos a seguinte possibilidade teórica: a “taxa natural” equivale a 10 milhões de desempregados.
Imaginemos que a sociedade siga a “ética” neoliberal, aquela recomendada pela senhora Ayn Rand – a de ninguém se preocupar com as outras pessoas.
Teríamos, então, dentro em breve, 10 milhões de mortos, mais os seus dependentes.
Mas, quando isso acontecesse, a taxa de desemprego seria zero, pois os desempregados, todos, teriam morrido.
Então, para que houvesse uma “taxa natural de desemprego”, seria necessário desempregar outros mais (quantos? 4 milhões? 6 milhões?).
Que também, com seus dependentes, morreriam de fome, etc., etc., etc.
Dentro em breve, a população deixaria de existir, até porque faltaria quem trabalhasse para os que não trabalham.
COMPENSAÇÕES
Esse raciocínio, leitor, não é uma sátira ao estilo de Jonathan Swift, que, em 1729, recomendou, para acabar com a fome na Irlanda, que as crianças miseráveis fossem transformadas em alimento.
Apenas levamos até às últimas consequências a teoria da “taxa natural de desemprego”.
Friedman sabia perfeitamente onde sua “taxa” iria levar, se pudesse ser implementada com o devido rigor acadêmico.
Por isso, dedicou-se a elaborar “propostas compensatórias”, exatamente para não ser consequente com sua própria postulação – e mostrar seu sentimento humanitário por aqueles que foram esmagados pela própria política que recomendava.
Não era apenas uma lubrificação de sua política, para melhor introduzi-la, considerando que não é em todo lugar que aparece um Pinochet, de quem Friedman foi assessor.
Essas “medidas compensatórias” tinham, também, outra função.
Afinal, sabe-se lá! Pode ser que esses pobres se revoltem e passem a guilhotinar economistas da Universidade de Chicago – o que seria algo muito desagradável.
Portanto, é bom prevenir essa possibilidade…
Assim, Friedman inventou a renda mínima – essa de que o então senador Suplicy tornou-se um paladino – e o “imposto de renda negativo”.
Trata-se da economia do sopão, muito praticada pelo PT, nos 13 anos em que esteve no poder: abrem-se as cofres públicos para os bancos e outros monopólios, arrumam-se alguns amigos muito empreendedores (Eike, Odebrecht, etc.), embolsam-se propinas para deixar esses “amigos” roubarem a propriedade pública e o dinheiro público – e, para o povo mais miserável, dá-se os R$ 70 por mês do Bolsa-família.
ENVOLTÓRIO
Vejamos, agora, a embalagem em que Friedman apresenta suas brilhantes ideias.
Em seu livro “Capitalismo e Liberdade”, a conclusão possível é que o melhor caminho para atingir a liberdade é a escravidão.
Se o povo aceitar ser escravo, a liberdade estará garantida.
Por exemplo, diz Friedman:
“Como existe competição entre empregadores e empregados, não há razão para que os primeiros não tenham a liberdade de oferecer a estes as condições que preferirem” (Milton Friedman, “Capitalism and Freedom”, The University of Chicago Press, 1982, p. 98).
Preferimos não fazer comentários. Será que eles são necessários?
“O estabelecimento do cartel, por meio do aumento dos preços, torna mais atraente para outros tentar participar da indústria. Além disso, como o preço mais alto só pode ser estabelecido pelos participantes se eles restringem sua produção abaixo do nível em que gostariam de produzir ao preço estabelecido, há um incentivo a cada um em separado para baixar o preço e expandir a produção” (Milton Friedman, op. cit.).
Está vendo, leitor, como o cartel, um acordo de monopólio para acabar com a concorrência, estimula a concorrência? Como a alta do preço, por efeito do monopólio, é um incentivo para baixar o preço?
Ah, sim: e como a contração da produção conduz à expansão da produção?
“O Estado pode legislar um nível de salário mínimo. Mas, dificilmente, pode levar os empregadores a contratar por esse mínimo os que estavam empregados anteriormente com salários mais baixos. (…) O efeito do salário mínimo é, portanto, o de tornar o desemprego maior do que seria em outras circunstâncias” (idem).
Deve ser porque o salário mínimo aumenta o desemprego, que os trabalhadores sempre foram a favor dele… (sem contar que o salário mínimo, se for para valer, implica na proibição de contratar por salário abaixo dele – sob pena de levar à cadeia quem se recuse a cumprir a lei; portanto, não existe a possibilidade dos empregadores não contratarem pelo mínimo, exceto se arriscando à prisão, o que não é difícil de acontecer, com milhões de trabalhadores atentos aos seus direitos).
Da mesma maneira, o melhor (aliás, o único) caminho para diminuir as desigualdades sociais é aumentá-las. Por exemplo:
“Se tomarmos indivíduos que possamos considerar como iguais em capacidade e recursos iniciais, veremos que alguns deles têm grande predileção por lazer e outros por mercadorias negociáveis; donde a desigualdade do retorno através do mercado é necessária para se alcançar as igualdades do retorno total ou de tratamento” (idem).
O outro exemplo de por que a desigualdade é necessária e benéfica, é ainda mais genial:
“Considerem um grupo de indivíduos inicialmente nas mesmas condições e que concordam voluntariamente em participar de uma loteria com prêmios muito desiguais. A desigualdade de renda resultante é evidentemente necessária para permitir aos indivíduos em questão utilizar ao máximo sua igualdade inicial. A redistribuição da renda após o fato é o mesmo que negar-lhes a oportunidade de participar da loteria” (idem).
A vida é uma loteria. Uns ganham e outros perdem. Por isso é que existem ricos e pobres…
Mas… e o sujeito que nasceu rico? Aquele que ganha dinheiro sem trabalhar, simplesmente usufruindo da herança?
Friedman, claro, não se esqueceu deles:
“Existe maior justificativa ética para os altos retornos obtidos por um indivíduo que herdou de seus pais certo tipo de voz, pela qual há grande demanda, do que para os altos retornos obtidos por um indivíduo que herdou uma propriedade? Os filhos de um comissário russo têm certamente maior expectativa de renda – talvez também de liquidação – que o filho do camponês. Será este fato mais justificável do que a expectativa de renda maior do filho de um milionário americano?” (idem).
Quando se equipara um “comissário russo” com um “milionário americano”, significa que a argumentação tem de recorrer a uma comparação absurda, simplesmente porque a própria argumentação é absurda.
Tão absurda quanto estabelecer uma suposta igualdade entre alguém que trabalha porque “herdou” um timbre de voz, com aquele que não trabalha, porque herdou uma fortuna – e somente para, com essa “igualdade”, justificar a desigualdade.
A inteligência de Friedman não vai além da inteligência média do fariseu norte-americano. Por exemplo, no mesmo livro:
“A preservação e expansão da liberdade estão atualmente ameaçadas de duas direções. Uma das ameaças é óbvia e clara. É a ameaça externa vinda dos homens maus do Kremlin que prometem destruir-nos. A outra ameaça é bem mais sutil. É a ameaça interna vinda de homens de boas intenções e de boa vontade que nos desejam reformar. Impacientes com a lentidão da persuasão e do exemplo para levar às grandes reformas sociais que imaginam, estão ansiosos para usar o poder do Estado a fim de alcançar seus fins e confiantes em sua capacidade de fazê-lo” (idem).
“Homens maus do Kremlin”?
Qual a diferença de Friedman para um casca grossa que fugiu da escola, como Ronald Reagan ou W. Bush?
Nenhuma.
Considerando que a grande argumentação de Friedman contra a Previdência pública é que esta obriga as pessoas a “gastar uma fração estabelecida de sua renda na compra de uma anuidade de aposentadoria” (parece até que a previdência privada é grátis…), Reagan parece mais inteligente.
Assim, a tentativa de Friedman de dar um envoltório “ético” ao neoliberalismo, apenas redundou na confissão de que ele é incompatível com qualquer ética, logo assim que se descobre que a “liberdade” defendida por ele é apenas a liberdade para que meia dúzia de parasitas financeiros escravizem toda a Humanidade.
(CONTINUA)