Desde Eduardo Cunha, o Brasil vive inversão estrutural do presidencialismo de coalizão: o Parlamento se tornou mais poderoso que o presidente. E a derrubada dos vetos do marco ambiental expõe, de forma quase surreal, essa distorção institucional.
MARCOS VERLAINE (*)
O chamado presidencialismo de coalizão brasileiro é um modelo de sistema político que perdeu o equilíbrio. De 2015 até então, esse desequilíbrio vem se repetindo à exaustão, na relação entre o Executivo e o Legislativo.
O jornalista e analista político Neuriberg Dias, diretor de Documentação do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), e Alexandre Ferraz, cientista político e técnico do Dieese, sintetizaram o fenômeno com precisão: o Brasil deixou de operar o presidencialismo de coalizão1 e migrou para presidencialismo de imposição parlamentar. Leia em “Quem governa o Brasil?”2
Nesse novo modelo, operado desde 2015, o Congresso define a pauta, o ritmo, a direção e, muitas vezes, os limites da ação presidencial. O presidente governa; o Parlamento rege.
Essa mutação institucional não ocorreu de um dia para o outro. O marco simbólico e político tem nome e sobrenome: Eduardo Cunha (RJ), ex-presidente da Câmara.
A partir da presidência da Casa, exercida por Cunha (2015-2016), inaugurou-se essa nova lógica em que o Legislativo passou a exercer poder não apenas de contrapeso3 — como deveria ser — mas de tutela.
O Parlamento assumiu prerrogativas que vão além da fiscalização e passou a ocupar o centro da arena decisória, muitas vezes constrangendo ou anulando a atuação do Executivo eleito.
3 PRESIDENTES, O MESMO CERCAMENTO
Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) enfrentaram — cada um à sua maneira — essa nova configuração ou reconfiguração de forças entre o Executivo e o Legislativo.
Dilma sofreu o desgaste máximo: impeachment acelerado por um presidente da Câmara disposto a operar a institucionalidade como arma política.
Temer precisou governar sob a lógica da sobrevivência, entupindo o Parlamento de concessões.
Bolsonaro, que inicialmente acreditou ser capaz de domar o Congresso pelo confronto e/ou dando-lhe de ombros, acabou entregando ao Centrão o que o grupo parlamentar jamais sonhara possuir: poder quase absoluto sobre o Orçamento Público.
O resultado dessa reconfiguração? Um Legislativo hipertrofiado, cuja força não se fundamenta em legitimidade eleitoral ampliada, mas em controle de recursos públicos, verticalização de emendas e poder de veto permanente sobre qualquer agenda governamental.
SURREALISMO DA NOVA GOVERNABILIDADE
A derrubada dos vetos do marco legal do meio ambiente4 — vetos essenciais, que protegiam normas de sustentabilidade, fiscalização e prevenção — é exemplo cristalino dessa inversão de lógica.
Não se tratou de mérito técnico nem de debate científico. A decisão foi movida por razões políticas, ideológicas e até identitárias da bancada ruralista, que hoje dita as regras com desenvoltura que ultrapassa qualquer equilíbrio de poderes imaginável no desenho republicano.
Foi surreal: o Parlamento atropelou consensos internacionais, evidências ambientais, alertas de especialistas e compromissos assumidos pelo próprio Brasil em tratados globais.
Vetos presidenciais, que deveriam funcionar como instrumento de ponderação, tornaram-se apenas peças descartáveis no xadrez de grupos organizados dentro do Congresso.
QUANDO O PARLAMENTO GOVERNA, QUEM GOVERNA?
Essa inversão traz riscos profundos:
• Desfigura o mandato presidencial;
• Fragmenta a responsabilidade política. Ninguém responde pelo todo;
• Desalinha o Estado de políticas públicas de longo prazo;
• Transforma o Orçamento em território privatizado por grupos parlamentares; e
• Torna a agenda nacional refém de interesses setoriais, e não do voto popular.
Como escreveram Dias e Ferraz, grosso modo: o sistema mudou, mas não houve debate público sobre essa mudança.
A população vota em um presidente, mas quem governa, na prática, é um conglomerado de interesses que se articulam dentro do Parlamento — nem sempre transparentes, nem sempre republicanos, quase nunca coordenados entre si.
RECONSTRUIR O PRESIDENCIALISMO É INADIÁVEL
O País precisa repensar seu sistema político-institucional. O problema não é o Legislativo ser forte; isso é desejável. O problema é ser disfuncionalmente forte. É atuar sem responsabilidade global, sem coordenação federativa e sem compromisso com políticas de Estado.
É preciso restaurar o equilíbrio. Recuperar a autoridade presidencial sem esvaziar o Parlamento. E reconstruir um sistema que ofereça governabilidade sem humilhar o Executivo, nem transformar o Legislativo em consórcio de interesses.
Enquanto isso não ocorrer, veremos repetirem-se episódios como o do marco ambiental: decisões tomadas à revelia da ciência, do planeta e da própria lógica de governo.
Decisões em que o Parlamento não apenas legisla, mas governa, corta, desmonta, derruba — e, sobretudo, manda —, sem a responsabilidade de ter que assumir compromissos de Estado com o futuro.
(*) Jornalista, analista político, assessor parlamentar do Diap e redator do HP
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1 Modelo de sistema político, predominante no Brasil desde a redemocratização e a Constituição de 1988, que combina as características do presidencialismo com a necessidade de formação de alianças multipartidárias (coalizões) no Poder Legislativo para construir maioria parlamentar para garantir a governabilidade.
2 Alexandre Ferraz e Neuriberg Dias: Quem governa o Brasil? – https://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/91677-alexandre-ferraz-e-neuriberg-dias-quem-governa-o-brasil – Acesso em 27.11.25
3 O sistema de pesos e contrapesos, também conhecido como checks and balances — controles e equilíbrios —, é mecanismo constitucional que divide o poder entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para evitar a concentração de autoridade. Funciona permitindo que cada Poder monitore, limite e controle as ações dos outros, assegurando harmonia, independência e equilíbrio entre esses.
4 Congresso derruba vetos de Lula ao licenciamento ambiental – https://www.camara.leg.br/noticias/1227650-congresso-derruba-vetos-de-lula-ao-licenciamento-ambiental – Acesso em 28.11.25











