LETICIA VALOTA
GABRIEL ROCHA
WALTER NEVES
Núcleo de Pesquisa e Divulgação em Evolução Humana
Instituto de Estudos Avançados da USP
O estudo da dentição humana é essencial para o entendimento da evolução da nossa espécie. Olhar para os dentes dos nossos ancestrais pode nos fornecer informações acerca das suas relações evolutivas, de seu comportamento e até da sua estrutura social. As informações que podemos obter incluem, também, a escolha de habitat feita pelas espécies, sua distribuição geográfica e, em especial, sua dieta. A importância do conhecimento acerca da dieta dos nossos ancestrais, por sua vez, reside no fato desta ser um resultado da interação entre o organismo – sua anatomia – e seu ambiente externo.
Diferentes formas de estudo da dentição na linhagem humana são possíveis de serem feitas a partir do registro fóssil disponível. Podemos fazer uma análise da forma e tamanho dos dentes, dos cálculos, bactérias que calcificaram nos dentes, ou partículas minerais neles presentes, de seu desgaste, que está associado à abrasão causada por alguns tipos de alimentos, e de sua composição química.
Levando em conta nossos parentes vivos mais próximos, como chimpanzés e gorilas, seus dentes, em especial os caninos, são proeminentes, e em sua arcada dentária está presente um espaço para acomodar esses grandes caninos, chamado de diastema. Esse tamanho aumentado dos caninos não está necessariamente relacionado à alimentação, considerando que a dieta de um chimpanzé é 80% herbívora, e de um gorila 100%; ele está relacionado, na verdade, à seleção sexual por parte das fêmeas, e à uma questão de territorialidade e defesa.
Se compararmos a arcada dentária de um chimpanzé e de um ser humano moderno, podemos observar que, devido aos caninos avantajados e ao diastema, a arcada de um chimpanzé possui um formato em U. Já a nossa arcada dentária apresenta um formato em parábola, devido à ausência dessas características e a redução da face que ocorreu na nossa linhagem.
Além do tamanho dos caninos, podemos olhar também para o esmalte que recobre os dentes, responsável pela sua proteção. Nos demais primatas a camada de esmalte dentário é fina, enquanto a nossa linhagem apresenta dentes com uma camada de esmalte mais espessa.
No caso da nossa linhagem, a redução dos caninos, a perda do diastema e o espessamento do esmalte dentário estão presentes desde os primórdios: a espécie mais antiga da nossa linhagem, Sahelanthropus tchadensis, que viveu há cerca de 7 milhões de anos, já apresentava caninos levemente reduzidos e dentes com esmalte espesso.
Essas são algumas características que nos ajudam a saber quais fósseis fazem parte da nossa linhagem e quais não. Quando encontramos o crânio fossilizado de um primata com caninos pequenos e esmalte espesso, é bem provável que ele faça parte da nossa linhagem evolutiva.
Métodos de estudo baseados em cálculos dentários são capazes de fornecer informações acerca da dieta dos indivíduos. Porém, como a preservação desses cálculos dentários é baixa, sua presença é escassa no registro fóssil. Assim, outras características, muitas vezes, são mais utilizadas no estudo dessas espécies.
Ao longo dos sete milhões de anos de evolução humana os dentes se modificaram muito. De maneira geral, durante os últimos quatro milhões de anos, vimos o surgimento de duas linhagens com dentes muito diferentes.
O primeiro caminho foi tomado inicialmente por alguns Australopithecus e se consolidou com o gênero Homo, em especial com as espécies mais tardias do gênero (H. heidelbergensis, H. neanderthalensis e nós, H. sapiens). Esse grupo que já possuía os caninos reduzidos ficou marcado pelo desenvolvimento de molares e pré-molares pequenos também. Potencialmente essa redução na dimensão dos dentes posteriores está relacionada a uma alimentação mais macia, com o uso de ferramentas e do fogo para trabalhar o alimento e depender menos da mastigação.
O segundo grupo tomou o caminho contrário. É o caso de algumas espécies de Australopithecus como o Australopithecus africanus, mas principalmente de espécies do gênero Paranthropus. O gênero Paranthropus inclui três espécies (P. aethiopicus, P. boisei, e P. robustus) e é especialmente conhecido pelo seu aparato mastigatório massivo. As três espécies apresentam diversas características cranianas que indicam que eles possuíam uma mordida super potente, e os dentes deste grupo não ficam de fora. Com molares quase três vezes maiores que os nossos, pensávamos que os Paranthropus se alimentavam de comidas duras como raízes e castanhas. No entanto, hoje sabemos que, na verdade, essas espécies megadônticas foram grandes pastadores, utilizando esses dentes gigantescos para passar o dia macerando folhagens fibrosas, semelhante ao que os gorilas fazem hoje em dia. Essa conclusão foi possível após a análise do desgaste dos dentes presentes no registro fóssil, que não indicavam uma presença sistêmica de abrasão intensa causada por alimentos duros.
Os dentes estão entre os materiais mais abundantes do registro fóssil humano, afinal estamos falando do elemento mais rígido do nosso corpo. Os dentes são, portanto, uma rica fonte de informações sobre o nosso processo evolutivo, retratando relações de parentesco das espécies, bem como documentando detalhadamente fragmentos da vida dos nossos ancestrais. Só nos resta aguardar para descobrir o que mais eles podem nos contar sobre essa história.