ALFREDO ZAIAT*
O atual ciclo de destruição da indústria nacional se reconhece em iguais processos na ditadura com Martínez de Hoz e na convertibilidade com Cavallo. Desde dezembro de 2015 acumula um retrocesso de 7,4% e quase 100 mil empregos a menos.
O processo de desindustrialização que se desdobra na economia macrista é uma continuidade do iniciado pela ditadura de 1976 com José Alfredo Martínez de Hoz e retomado nos noventa com a convertibilidade de Domingo Felipe Cavallo. Em cada uma destas etapas, a destruição de diversos estágios da estrutura produtiva foi ocultada sob o manto da modernização e a integração ao mundo. Nem uma nem outra coisa aconteceram. Ao contrário, têm sido ciclos de retrocesso do caminho em direção ao desenvolvimento, com deterioração das condições trabalhistas e sociais da maioria da população.
Como nesses períodos traumáticos, a Unión Industrial Argentina expõe comedidas críticas enquanto algumas das firmas a ela filiadas são arrastadas até o abismo e outras levadas a reduzir sua capacidade produtiva. Moderação que pode ser explicada por uma questão de classe, ideológica ou política, ou uma combinação delas que impulsiona a maioria desses empresários a apoiar um projeto que os castiga até à insignificância, sem rebelarem-se a ponto de exigir ou a apoiarem um caminho de industrialização que o mundo neoliberal periférico associa com populismo.
A desindustrialização macrista é intensa em velocidade e magnitude. Em setembro passado, a produção industrial baixou 11,5% com relação ao mesmo mês de 2017, com quedas interanuais estrepitosas nos setores têxteis de 24,6%, e de metalomecânica, de 20,5%. Como os comunicados do Indec [equivalente argentino ao nosso IBGE] deixaram de informar a série longa dessa estatística, o indicador industrial da FIEL (Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas) oferece o significativo dado de que no governo de Macri a atividade produtiva (IPI dessazonalizado) acumula um retrocesso de 7,4% desde setembro, tendência que não mostra sinais de reversão nos próximos meses. Esta derrubada teve seu impacto na frente do trabalho, cm perdas de 98.200 empregos industriais, em agosto passado, um equivalente a 7,8% do total do setor, desde dezembro de 2015, tendência que tampouco exibe sinais de recomposição.
A derrapagem industrial de 11,5% foi o maior descenso em 16 anos, quando no mês de julho de 2002 se configurou uma queda de 12,2%. Jogou a indústria ao nível de 2009, ano que foi interrompido o ciclo ascendente que havia começado em 2002 e se estendera até 2012, com a pausa ocasionada pelo impacto negativo derivado da crise internacional. Especialistas dedicados ao estudo e acompanhamento da política exterior argentina reunidos no OCIPEx (Observatorio de Coyuntura Internacional y Política Exterior) identificaram que em setembro passado a indústria argentina foi a segunda que mais retrocedeu no ranking mundial, liderado por Burundi, onde houve um rebaixamento de 15,4%. Logo atrás da Argentina ficou Togo, com uma queda de 11,3%, Benin e Jordânia, com derrubadas de 9,6% e 8,8%, respectivamente.
COMBO
A megadesvalorização, taxas de juros elevadíssimas em termos reais, abertura importadora, descenso do salário real, tarifaços e debilitamento do mercado interno é um combo demolidor para a indústria nacional. O governo de Macri convenceu a muitos –e se não o fez, foi efetivo em silenciá-los – de que este caminho tem sido inevitável para purgar os pecados do populismo, do qual a indústria havia se beneficiado. Em uma das iniciativas mais vergonhosas, o macrismo apresentou o Plano Produtivo Nacional quando existia o Ministério da Produção a cargo de Francisco Cabrera. Além do anúncio de alguma medida de incentivo, na prática pouco ou nada houve, o que fica evidente com a evolução da atividade industrial.
Esse Plano definia a necessidade da “reconversão” de vários setores, mas isso não significava a “destruição” dos ramos de têxteis, calçados, eletrônica e movelaria, como é o caminho que começaram a trilhar. Também definia quatro setores ditos “latentes” (automotor, autopeças, maquinaria agrícola e medicamentos) aos quais se exigia serem “mais competitivos”; mas isso não significava o “apequenamento” para que a produção importada passasse a ocupar uma parte do mercado interno.
Essas oito atividades contavam com 364 mil postos e o plano oficial adiantava que a reconversão trabalhista afetaria em torno de 20%. A reconversão industrial que era proposta inicialmente pelo governo, na realidade, foi somente a destruição do tecido produtivo e demissões generalizadas, que já superaram esse umbral previsto. A indústria é o ramo da atividade em que mais emprego foi perdido desde que Macri ocupa a Casa Rosada. Dados oficiais indicam que isto aconteceu em 32 dos 33 meses de sua gestão. A quantidade de trabalhadores na indústria é a mais baixa em nove anos. Os registros de agosto se colocam nos níveis exibidos em setembro de 2009.
PLANO
Se o plano de desindustrialização macrista continuar a ser executado, a dimensão da crise trabalhista será maiúscula. Para conseguir legitimidade política e econômica para semelhante golpe, o motor da rede oficial de propaganda pública e privada está girando à velocidade máxima com o objetivo de demonizar as demandas dos trabalhadores, o que tem sido acompanhado pelos mesmos industriais que estão se afogando. Os principais dirigentes da Aliança Cambiemos, a começar por Macri, estão convencidos, por razões ideológicas, políticas, econômicas ou culturais, de que o sofrimento de milhares de trabalhadores com suas famílias é a passagem necessária para a redenção e o progresso.
A crise econômica sentencia que Macri terminará o governo com variáveis chave (inflação, emprego, pobreza, aposentadorias e salários em termos reais) piores que as de dezembro de 2015. Jornais pró-governamentais insistem com os custos da herança, ou que esta não foi explicitada em toda sua dimensão, para justificar o desastre da gestão econômica macrista, que logo após um impressionante endividamento teve que sair correndo a se abraçar com o FMI. Há que se ter pouco respeito intelectual com relação aos interlocutores ocasionais para repetir que a herança é um componente importante para explicar este fracasso da administração da economia, livrando o plano de negócios do macrismo.
O indicador mensal de Investimentos do Instituto do Trabalho e Economia mostra que, no mês da derrubada da atividade industrial, também se registrou uma forte queda de 18,9% com relação a setembro do ano passado. Dessa forma o terceiro trimestre do ano fechou com um retrocesso de 11,8% em relação a igual período de 2017. Mais complicada é a situação específica no setor industrial com o dado que prevê um dinamismo medíocre daqui por diante, quando se examina o investimento em máquinas e equipamentos, há um agudo descenso de 33,4% interanual, acumulando uma queda de 15,8% em doze meses.
CONSCIÊNCIA DE CLASSE
Uma vez mais fica exposta a aceitação que conseguem das vítimas nos períodos de destruição industrial que os projetos do neoliberalismo periférico lideram. O complexo, difícil e não isento de contradições, ciclo de recuperação do tecido industrial durante as épocas de predomínio de governos que são denominados populistas é desmoronado com efetiva rapidez. Claudio Scaletta explicou em mais de uma ocasião no suplemento econômico Cash porque uma parte dos empresários, beneficiada do crescimento em governos com os quais não se identificam politicamente, resistem paradoxalmente a estes ciclos que lhes garantem expansão. Como o economista polaco, Michal Kalecki ilustra, essa resistência se entende pela oposição a que seja o Estado aquele que intervenha na criação de emprego e dirija o processo econômico (com os gastos através da inversão pública ou dos subsídios ao consumo), e pelo temor de que o pleno emprego, promovido por políticas estatais, implique em maiores exigências dos trabalhadores e, portanto, gere mudanças sociais e políticas que alterem sua posição favorecida.
A oposição à presença do Estado nas relações econômicas é o que deixa mais em evidência o mundo empresário conservador, hoje representado no governo de Macri. Só a aceitam em circunstâncias muito específicas, como as que existem em uma crise que requer políticas expansivas para superá-la.
O aspecto mais desafiador para a análise econômica convencional é explicar porque setores industriais aceitam mansamente diminuir o nível de atividade, que se traduz em uma menor rentabilidade. Não o sabem explicar porque se o fizessem deveriam assinalar que o fazem para garantir um nível de desemprego que permita disciplinar os trabalhadores em suas demandas imediatas de melhoria salarial e, por conseguinte, de distribuição progressiva da renda. Mas, fundamentalmente, porque desse modo podem neutralizar qualquer intento de modificação das regras de funcionamento da economia que ponha em questão seus privilégios. Ou seja, a aceitação em transitar por outro processo de desindustrialização por parte das próprias vítimas não é contraditória, porque revela uma consciência de classe tão forte que chega a aceitar a redução de seus ganhos e desarticulação do tecido produtivo, com o objetivo de debilitar aos que podem desafiá-los na disputa por melhorar a repartição da riqueza.
*Jornalista e economista, articulista do jornal Página 12