Em seu novo livro, “Camisa de Força Ideológica”, o economista Lara Resende detona o neoliberalismo que vem acabando com a economia brasileira. “Não existe sociedade e economia produtiva sem Estado organizado”, apontou, rebatendo os apologistas do Estado mínimo. “A economia não funciona sem investimentos públicos”
O professor André Lara Resende, um dos formuladores do Plano Real, apresentou neste sábado (04), em duas entrevistas, uma na Folha de São Paulo e outra no Valor Econômico, a sua visão sobre a crise brasileira. As opiniões expressas nas duas reportagens estão em linha com as ideias defendidas por ele em seu novo livro que acaba de ser lançado.
RADICALIZAÇÃO DOGMÁTICA NO BRASIL
O livro “Camisa de Força Ideológica” chegou às livrarias nesta sexta (3). É a quinta obra do autor que critica os pressupostos de seus colegas ortodoxos e defende sua revisão.
“A teoria macroeconômica está sendo revista no mundo há pelo menos uns dez anos, mas no Brasil houve uma radicalização do dogmatismo, expressa na ideia de que a boa política macroeconômica se resume a equilibrar o orçamento público em todas as circunstâncias”, diz o autor.
Pela importância das teses defendidas pelo professor André Lara Resende, mormente nesta quadra de grave crise por que passa o Brasil, fruto da insistência dos últimos governos em impor os dogmas neoliberais, reproduzimos alguns trechos das entrevistas. Nelas o economista argumenta claramente pelo fim deste ciclo.
Em sua opinião, episódios dramáticos como a crise financeira internacional de 2008 e a pandemia do coronavírus mostraram que até países como o Brasil têm condições de se endividar para financiar seus gastos em certas situações sem perder o controle sobre a economia.
“A teoria macroeconômica está sendo revista no mundo há pelo menos uns dez anos, mas no Brasil houve uma radicalização do dogmatismo, expressa na ideia de que a boa política macroeconômica se resume a equilibrar o orçamento público em todas as circunstâncias”
O economista, que é coordenador de um núcleo de especialistas no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), e tem mantido contatos com assessores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, considera equivocada a decisão do Banco Central de elevar as taxas de juros para segurar a inflação, que no ano passado ultrapassou a meta definida pelo governo. Ele defende a retomada de investimentos públicos como saída para reerguer a economia.
“No Brasil”, destacou Resende, “só se defende esse modelo [neoliberal]. Basta ler os jornais. O curioso é como conseguem justificar essa postura e defender simultaneamente o aumento da taxa de juros pelo Banco Central em 12 pontos percentuais em seis meses, que faz crescer a despesa com a dívida pública”. “Isso significa transferência de renda para os detentores da dívida pública, que são os agentes superavitários da economia. É uma política profundamente concentradora, e uma incongruência espantosa. A responsabilidade fiscal é muito importante, mas está mal definida”, observa o economista.
Questionado sobre o teto de gastos, ele apontou quais são as condições para a sua existência. “Sou a favor de teto para despesas correntes, especialmente as de pessoal. Um teto para a totalidade das despesas, excluído o serviço da dívida, como temos hoje, é insensato. Ele não conteve as despesas correntes, nem as demagógicas, mas espremeu o espaço para investimentos”, afirmou.
“A economia não funciona sem investimentos públicos, em infraestrutura, educação, saúde, segurança. Eles são complementares aos investimentos privados e viabilizam grande parte deles. Mas o teto estrangulou completamente a capacidade do Estado de investir”, denunciou Lara Resende.
TETO ESTRANGULOU CAPACIDADE DE INVESTIMENTO
Rebatendo a tese de que só no Brasil há problemas de gastos públicos, o autor afirmou que não é bem assim. “Em todo lugar do mundo existe o problema do mau uso dos recursos públicos, o mau uso da poderosíssima faculdade do Estado de criar crédito. Esse mau uso é um perigo permanente, que deve ser regulado de forma competente”, defendeu. “Mas”, prosseguiu, “não se consegue restringir o mau uso dos recursos públicos simplesmente com leis e restrições formais. Nisso o Estado funciona como uma empresa. Se for composto por pessoas essencialmente corruptas, não adianta você ameaçar, impor restrições e punições”, opinou.
Sobre a existência de uma suposta falta de limites em suas teses, ele replicou. “Claro que existem limites. A relação da dívida com o PIB obviamente não pode ir para o infinito. Mas o poder que o Estado tem de criar crédito pode ser bem usado, o que ocorre quando o retorno do investimento feito é superior ao custo do crédito que o financiou”, defendeu. “Não existe um limite numérico que deva ser respeitado. Países ricos têm hoje dívidas superiores a 100% do PIB. Em determinadas circunstâncias, como guerras e pandemias, o endividamento é necessário para impedir uma tragédia. É o que vimos com a Covid”, prosseguiu Resende.
“Não existe um limite numérico que deva ser respeitado. Países ricos têm hoje dívidas superiores a 100% do PIB. Em determinadas circunstâncias, como guerras e pandemias, o endividamento é necessário para impedir uma tragédia. É o que vimos com a Covid”
“É possível revertê-lo quando a economia se reorganizar e voltar a crescer. Agora, se você usar o crédito de forma descontrolada, para políticas demagógicas e gastos sem retorno nenhum, em termos de produtividade ou de bem-estar, aí sim estará sendo irresponsável”, acrescentou o economista.
Lara Resende criticou os políticos da chamada terceira via eleitoral. “Os que estão em busca de uma terceira via não têm projeto. Na economia, continuam agarrados a chavões neoliberais e se apresentam como alternativa à direita bolsonarista, como representantes do verdadeiro neoliberalismo. Assim não se chegará a lugar nenhum”, observou.
Ele defendeu a retomada do desenvolvimento. “Precisamos de um projeto para a retomada do desenvolvimento no século 21. Ele não virá da obsessão neoliberal, que se tornou completamente ultrapassada, nem com o desenvolvimentismo do século 20. Os desafios que precisamos enfrentar são novos e enormes. Há a questão ambiental, a necessidade de repensar a energia para nos livrarmos de combustíveis fósseis, a busca por maior inclusão social. A revolução tecnológica, que traz ganhos de produtividade, mas desestrutura o emprego. Essa é a discussão a ser feita”, completou o economista.
NÃO HOUVE FIM DA HISTÓRIA
Lara Resende falou sobre a trajetória da economia nas últimas décadas. “Depois de um período de prosperidade e otimismo, pós-fim da Segunda Guerra Mundial, houve, neste início de século XXI, uma mudança de estado de espírito. A combinação da democracia representativa, economia de mercado com o estado de bem-estar social, o welfare state, parecia ter dado solução para a organização da sociedade e ser a fórmula definitiva do progresso. Com a queda do Muro de Berlim, a derrocada do regime soviético, chegou-se a falar no fim da história, na famosa expressão de Francis Fukuyama. A partir da grande crise financeira de 2008, ficou claro que “a grande moderação”, a ideia de que os economistas tinham encontrado a fórmula para evitar as crises e as flutuações cíclicas, era uma ilusão”, disse.
“A reconcentração de renda e da riqueza, a percepção de que o crescimento baseado nos combustíveis fósseis pressiona perigosamente os limites ambientais, obriga a uma reflexão crítica”, destacou Lara Resende. Para ele, “a teoria econômica que dá substrato, supostamente científico, à organização da sociedade se tornou disfuncional”. “A tecnocracia, os chamados “unelected powers” (os poderes não eleitos), entre os quais os bancos centrais são os mais representativos, se tornaram extraordinariamente poderosos, justamente quando os seus modelos conceituais foram refutados pela realidade dos fatos. É uma situação delicada, que ameaça a democracia e o verdadeiro liberalismo”, assinalou.
Resende foi duro com os defensores do Estado mínimo. “Não existe sociedade e economia produtiva sem Estado organizado. O Estado precisa ser percebido como legítimo e eficiente. Nas últimas quatro décadas, a predominância de um neoliberalismo radical, que demoniza o Estado como um peso morto parasita da produtividade da sociedade, não como parte essencial dela, contribui para a desorganização do Estado e a perda de legitimidade da política.
“O resultado é a fragmentação do poder, que se reorganiza pela força, à margem da lei e das instituições, em milícias. A política se criminaliza e o crime se politiza. Foi o que ocorreu nas últimas décadas com o Estado do Rio de Janeiro. É o que ameaça ocorrer também com o Brasil, um processo que já está avançado em outros países da América Latina e do mundo”, prosseguiu o economista.
“O Estado precisa ser percebido como legítimo e eficiente. Nas últimas quatro décadas, a predominância de um neoliberalismo radical, que demoniza o Estado como um peso morto parasita da produtividade da sociedade, não como parte essencial dela, contribui para a desorganização do Estado e a perda de legitimidade da política. O resultado é a fragmentação do poder, que se reorganiza pela força, à margem da lei e das instituições, em milícias”
ESTADO A FAVOR DA SOCIEDADE
“É urgente repensar a governança do Estado, torná-lo competente e a favor da sociedade, não patrimonialista e capturado por interesses corporativistas. É preciso garantir que o Estado possa investir bem e cumprir o seu papel essencial na sociedade. Esta é a verdadeira responsabilidade fiscal. Para isso é preciso desmistificar certos equívocos transformados em dogmas pela teoria macroeconômica hegemônica”, afirma Lara Resende.
O economista criticou a relutância de certos setores em assumir as mudanças de concepções que se fazem necessárias. “Os economistas neoclássicos mainstream – poderia chamá-los de neoliberais também – continuam muito críticos a essas propostas de revisão, no Brasil. Lá fora, mesmo em centros conhecidos por uma certa ortodoxia no pensamento econômico, como o Fundo Monetário Internacional, já reviram muitas das suas concepções”, disse.
“E nos bancos centrais, todas as pessoas estão mais ou menos conscientes da deficiência do arcabouço conceitual de teoria monetária que lhes dá substrato para definição das suas políticas. Hoje isso está cada vez mais claro”, enfatizou o professor. “Os bancos centrais demoraram a reagir ao novo surto inflacionário não porque não estivessem conscientes do que estava acontecendo, mas porque sabem que o instrumento de que dispõem – a taxa básica de juros – é muito limitado. Limitado do ponto de vista de combate à inflação e altamente questionável quanto a seus impactos secundários”, prosseguiu.
“O substrato que justificava o uso das taxas de juros para segurar a inflação de demanda – e é questionável se a inflação de hoje é de demanda – era diminuir a demanda agregada via alta dos juros. A sustentação da proposta de subir os juros e provocar desemprego e desaquecimento da economia era a curva de Philips (que media a relação entre inflação e desemprego), e ela desapareceu. Economistas, inclusive do Fed (o Federal Reserve, o banco central americano), têm publicado artigos sobre a curva de Philips”, argumentou.
PENSAR POR CONTA PRÓPRIA
“A tese deles é a de que a tecnologia desorganizou o emprego e enfraqueceu o poder dos trabalhadores e dos sindicatos. A inflação não responde mais ao desemprego. O pleno emprego não provoca inflação e desemprego não reduz a inflação. Esse era o substrato para a ideia de que você deve provocar desemprego e recessão para controlar a inflação”, prosseguiu Lara Resende.
“Se isso fosse verdade, o Brasil já teria derrubado a inflação muito antes do Plano Real, mas as pessoas esquecem disso. A experiência dos países periféricos tem pouco impacto nos centros de debate do Primeiro Mundo. E no Brasil, de forma provinciana, toma-se a ortodoxia como sendo inquestionável. E deixa-se de pensar por conta própria. Não foi sempre assim. Já tivemos fases em que pensávamos com mais independência. O que falta é reflexão independente. E não repetição dogmática de um mantra de uma teoria que se provou disfuncional. Eu não estou pensando sozinho na necessidade de revisão da teoria”, apontou o economista.
“Outros nessa mesma linha são economistas mais próximos dos bancos centrais, da Inglaterra, do Japão, da Suécia. Economistas do Fed têm publicado artigos altamente críticos ao mainstream e buscado outras soluções para a economia. No Brasil, curiosamente os economistas que mais aparecem na mídia não apoiam essas ideias, com exceção de uns poucos”, completou.