CARLOS LOPES
Uma vez, em Caucaia, lá no Ceará, bebendo cerveja com um ex-goleiro do Palmeiras, ouvi a história de um pênalti, em uma partida contra o Santos:
“O Pelé ia bater. Fiz uma confusão na área. Comecei a berrar: ‘não adianta, crioulo, que agora você vai se lascar’. Eu sabia que ele nunca tinha perdido um pênalti. Todo mundo sabia disso no Brasil. No mundo. Quem não sabia disso? Mas eu era o goleiro, tinha que fazer o que podia. Tentei deixar ele nervoso.
“Ele nem se abalou. Apenas sorriu e eu reparei na luz. Vocês nunca viram isso. Tem uma luz que vem do Pelé. É uma luz, alguma coisa que não existe nas outras pessoas, ele está sempre com essa luz, ele não é iluminado, ele ilumina, é diferente, ele enche de luz o ambiente.
“Ele sorriu, enquanto eu berrava e fazia a maior palhaçada. Eu não achava que ia dar certo, mas era o que eu podia fazer.
“Ainda sorrindo ele correu para a bola, não foi ‘paradinha’. Parou de sorrir quando chegou perto e chutou. Eu nem vi para onde foi a bola. Só quando ela já estava dentro, na rede.”
O ex-goleiro continuou insistindo na luz que vinha de Pelé – e não era difícil entender como aquela autoconfiança inabalável parecia, a ele, uma luz, provavelmente divina.
O leitor mais jovem conheceu algum jogador que fosse aplaudido pela torcida adversária, depois de golear esse time adversário?
Pois eu e todos os que viram Pelé jogar conhecemos um jogador que saía do estádio aplaudido pela torcida do time contrário.
Ele era caçado em campo – e, muitas vezes, revidava; Pelé também sabia bater, e bem. Mas, bastava-lhe um minuto, às vezes um segundo, para decidir uma partida.
LOS HERMANOS
Pelé também sorriu em 11 de setembro de 1963, na final da Libertadores da América, quando, em “La Bombonera”, o estádio do Boca Juniors, então campeão argentino, ouviu 50 mil torcedores saudando a entrada em campo do Santos: “Pelé/ hijo de puta/ macaquito de Brasil”.
O Boca Juniors atacou do começo ao fim do jogo – ou quase isso – com Pelé cercado em campo e com Gilmar fechando o gol. O empate não servia para o Boca Juniors, que perdera a primeira partida com o Santos, por 3 X 2, no Maracanã.
Para piorar a situação dos brasileiros, no começo do segundo tempo, Sanfilippo marcou para o Boca Juniors.
Porém, acabou ali a euforia argentina. Alguns minutos depois, aproveitando um tiro de meta mal executado pelo Boca, Pelé faz um de seus precisos passes – para Coutinho, que empata o jogo.
Sucessivamente derrubado em campo, a oito minutos do final, Pelé marca outro gol – e “La Bombonera” silencia.
O Santos era bicampeão da Libertadores da América, título conquistado no terreno mais adverso da época.
NO CHILE
Minha maior lembrança de Pelé está numa partida em que ele não entrou em campo: Brasil X Espanha, na Copa de 1962, no Chile.
Em 1958, muito criança, lembro apenas da festa geral em Vacaria, no Rio Grande do Sul, onde morava em um acampamento de casas de madeira, à beira da estrada para Caxias do Sul, que ainda hoje existe.
Mas em 1962 eu estava, quatro anos mais velho (isto é, com nove anos), em Araraquara, São Paulo. Morava em um bairro chamado Vila Xavier e não posso dizer que vi os jogos da Copa do Chile, porque nem os pouquíssimos ricos que já possuíam TV conseguiram vê-los, ainda que fosse em preto e branco – não havia, ainda, transmissão via satélite.
Mas ouvi todos os jogos do Brasil – pelo rádio, evidentemente.
A Copa de 58, onde Pelé surgira para o mundo, fora aquela em que Didi e Nílton Santos lideraram um time, no qual poucos acreditavam, para a vitória no lugar mais improvável do mundo – na Suécia.
Era a redenção do desastre do Maracanã, contra o Uruguai, na Copa de 50.
Até então, o mais famoso jogador brasileiro era Zizinho, ídolo de Pelé.
Mas Zizinho encerrara sua trajetória, como jogador, exatamente em 1957.
Na Seleção de 1958, somente havia dois remanescentes da equipe de 1950, que lá haviam estado na reserva: o goleiro Castilho, do Fluminense; e o zagueiro Nílton Santos, do Botafogo. Todos os outros eram de uma geração futebolística posterior, inclusive o mais experiente deles, Didi.
Em 1962, hoje é chover no molhado – porque muitos já repetiram – dizer que nossas esperanças de conquistar o bicampeonato mundial estavam, sobretudo, em Pelé.
É verdade que Pelé jamais foi um individualista, jogando sempre para o time. Não existe uma partida em que Pelé, vendo um companheiro mais bem colocado que ele, tenha retido a bola, em prejuízo da equipe. Isso sempre foi estranho à sua personalidade de jogador.
Mas, em 1962, o reserva de Pelé – Amarildo, do Botafogo – nem ao menos participara de um treino coletivo. A ninguém passou pela cabeça que Pelé não pudesse jogar em Viña del Mar ou em Santiago do Chile.
Na primeira partida, contra o México, Pelé e Zagalo liquidaram o placar contra a brava equipe azteca, que tinha sua maior estrela no veterano goleiro Carbajal, na época já com 32 anos.
A partida seguinte foi a do suplício. O empate (0 X 0) com a Tchecoslováquia.
Aos 28 minutos do primeiro tempo, depois que Zagalo, no ataque, passou a bola para Vavá, este atrasou para Didi, que acionou Zito, este lançou para seu companheiro do Santos, Pelé, que chutou, cruzado, a gol.
A bola, espalmada pelo extraordinário goleiro tcheco, Schroif, bateu na trave.
Mas Pelé caiu no chão, com a face tomada por um esgar de dor.
Pelé é levado para fora do campo. Está fora do jogo e da Copa, com uma “distensão na virilha” – ou, como depois se disse, com um “estiramento no músculo adutor da coxa esquerda”.
Porém, nessa época não havia substituições em jogos da Copa do Mundo. Pelé não queria deixar o Brasil com 10 jogadores, contra 11 da Tchecoslováquia.
As anotações a seguir são de uma testemunha ocular do jogo, o jornalista Belmiro Sauthier, enviado especial do jornal Última Hora:
“O dr. Hilton Gosling e o massagista Mário Américo aplicam uma injeção em Pelé a fim de que ele possa retornar ao jogo.
“Pelé está de pé ao lado do campo. Conversa com o técnico Aimoré Moreira e pede para voltar. Pelé quer voltar.
“Entra em campo Pelé, quase sem poder andar. Pelé faz um esforço para continuar em campo. Somente sua vontade e a injeção que recebeu podem levar o jogador a esse sacrifício.
“Pelé está inutilizado para esta partida. Não pode sequer andar em campo, mas está fazendo o que pode, usando apenas uma perna, sem correr.
“Pelé agora se encaminha para a linha de lado e troca algumas palavras com o massagista Mário Américo.
“Pelé não aguenta continuar em campo e agora está deslocado para a ponta direita, indo Garrincha para o meio” (cf. Última Hora, 04/06/1962, p. 12).
Isso foi no primeiro tempo. Pelé voltaria a campo no segundo tempo, deslocado agora para a esquerda, com o ponta esquerda – Zagalo – indo para o meio.
Sem nenhuma condição de jogo, com dores lancinantes, ele quis ficar e permaneceu em campo até o fim. O árbitro, aliás, finalizou a partida no momento em que a bola foi entregue, por Zito, a Pelé.
Escrevendo sobre a partida, na mesma edição de Última Hora, disse João Saldanha:
“… nas condições em que se verificou o jogo – os brasileiros privados do concurso de Pelé aos 28 minutos – o empate foi muito bem recebido pelo Brasil.
“A verdade é que esse jogo contra a Tchecoslováquia teve o grande mérito de mostrar a personalidade do quadro brasileiro. Mesmo privado de uma peça chave, como Pelé, nossos jogadores nunca se perturbaram. E nisso tudo, é justo que se destaque a categoria, a frieza, a inteligência inconfundíveis do extraordinário Didi. Dominando inteiramente o meio campo, orientando seus companheiros na marcação – particularmente Zito, que algumas vezes avançava demais – Didi foi o fator preponderante do equilíbrio do quadro brasileiro. Outra coisa que muito nos favoreceu foi o espírito calculista dos tchecos. Foram a campo conseguir a classificação, e nunca se esqueceram disso. Assim, não se empolgaram com a superioridade numérica, jogando como se tivessem onze contra onze.
(…)
“Com a contusão de Pelé, Amarildo deverá entrar. Não garantimos que acertará ao lado de Vavá, mas temos grandes esperanças de que essa oportunidade seja o marco de sua consagração definitiva.”
Saldanha não registra que também Garrincha e Vavá, a partir da contusão de Pelé, se agigantaram em campo. Aliás, sua avaliação sobre Vavá, nesta partida, não é justa – talvez porque, desde o início dos treinamentos para a Copa de 62, ele haja defendido uma dupla de área composta por Pelé e Amarildo, ao invés de Pelé e Vavá, como preferiu Aimoré Moreira.
Mas ele estava inteiramente certo sobre Amarildo, a partir da contusão de Pelé.
Na partida seguinte – a minha partida inesquecível – o Brasil enfrentaria a Espanha, na época sob o regime fascista de Franco, sem Pelé.
Lá em casa, em Araraquara, ganhar da Espanha, que tinha como seleção uma legião estrangeira, inclusive reunindo os jogadores húngaros que fugiram da Hungria socialista após os acontecimentos de 1956 – inclusive Ferenc Puskás, maior jogador da Copa de 1954 – era quase uma questão de princípio.
Para nossa sorte, o grande jogador da seleção espanhola, o argentino Di Stéfano – rival e carrasco de Didi, quando este jogara no Real Madrid – também se contundira.
Mesmo assim, foi um sufoco.
Aos 38 minutos do primeiro tempo, Puskás abriu um buraco na defesa brasileira, ao movimentar-se para fora da área e atrair os defensores do Brasil. Por esse buraco, entrou Adelardo, que marcou 1 X 0 para a Espanha.
Começamos o segundo tempo em desvantagem, lutando para evitar outro gol espanhol. Mas foi, então, que Didi, Garrincha, Vavá, Nílton Santos – e, sobretudo, Amarildo – foram à luta, como se cada um sentisse que a falta de Pelé lhes cobrava esforço, pelo menos, em dobro.
No dia anterior, Amarildo visitara Pelé, na cama devido à contusão.
Pelé disse a Amarildo que ficasse tranquilo: “você está protegido por Deus”, disse o santista ao seu substituto botafoguense.
E, aos 22 minutos do segundo tempo, Didi livrou-se dos seus dois marcadores, levou a bola até a entrada da área e entregou a Amarildo, que chutou, mas o goleiro espanhol defendeu.
Foi o sinal de que a partida, até então dominada pelos espanhóis, estava virando.
Três minutos depois, Zito pegou uma bola que estava com a defesa da Espanha, entregou a Vavá, e este a Zagalo, que cruzou baixo, para Amarildo, antes que a defesa espanhola interceptasse a bola, empatar o jogo.
Logo em seguida, Garrincha chutou de fora da área e Vavá, talvez pela única vez na vida, perdeu um gol com a meta escancarada.
Aos 38 minutos, Garrincha foi à linha de fundo e cruzou para trás, com a bola indo para a cabeça de Amarildo, que marcou o gol da vitória.
Muito poderia ser dito sobre esta e outras partidas, mas o nosso assunto, aqui, é Pelé.
Sua presença jamais foi tão grande quanto nesta partida, em que ele não estava. Seu sacrifício, na partida anterior, era a inspiração da equipe, composta por outros grandes jogadores.
SINGELEZA
Poderíamos aqui, abordar o conjunto da trajetória de Pelé. Mas outros serão capazes de fazê-lo melhor.
Esta é apenas uma homenagem, nos seus 80 anos, uma homenagem a um homem que sintetizou algumas das grandes qualidades de nosso povo.
Antigamente chamava-se, a isso, uma “singela homenagem”.
Não pretendemos mais.