(HP 08/08/2014)
Este texto foi publicado pela última vez há sete anos. Com motivo dos 60 anos do martírio do presidente Getúlio Vargas, hoje nós o reproduzimos, apenas com pequenas alterações redacionais
CARLOS LOPES
Na manhã do dia 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas deu a sua vida para impedir o golpe de Estado dos raivosos inimigos do Brasil.
A crise que redundou no 24 de agosto tivera início 19 dias antes, quando, segundo os golpistas, o mais asqueroso deles, Carlos Lacerda, teria sido vítima de um atentado à porta do edifício onde morava, na rua Toneleros, em Copacabana, com a morte de um oficial da Aeronáutica que fazia o papel de seu segurança, Rubem Vaz. A morte de Vaz e, sobretudo, o suposto “atentado” contra Lacerda foram atribuídos, em seguida, à Guarda Pessoal da Presidência, em especial ao seu chefe, Gregório Fortunato.
Tratava-se de uma farsa, desmontada anos depois no livro “Mataram o Presidente!” (1976), que reuniu o historiador Joel Rufino dos Santos e dois excelentes repórteres, Palmério Dória e Hamilton Almeida Filho. Posteriormente, o livro “Vitória na Derrota – A Morte de Getúlio Vargas” (2004), do pesquisador Ronaldo Conde Aguiar, expôs outra vez esse episódio infame. Ambos os livros reúnem uma coleção impressionante de documentos.
Gregório Fortunato estava, realmente, realizando uma investigação sobre Lacerda. Em suma, realizava “campanas”, seguia Lacerda. Este, talvez seja preciso esclarecer aos leitores mais jovens, era um canalha como pouquíssimos houve por aqui. Depois de algum tempo no Partido Comunista, onde se destacou pelo sectarismo histérico, traiu os comunistas. Tornou-se um anticomunista igualmente histérico – rancoroso e sem caráter. Recebia dinheiro do Escritório Momsen, composto pelos advogados da Standard Oil, de Rockefeller, da IBM e da Hollerith, para atacar Getúlio. Caluniava, difamava, insultava. Assacava contra a honra das mulheres de adversários políticos, como fez contra a esposa do filho de Getúlio, Lutero, expelindo catilinárias contra inventados adultérios. Denunciava roubos e corrupção – que se comprovaram completamente falsos em 50 anos decorridos desde àquela época.
Gregório resolveu segui-lo – e para isso empregou Alcino João Nascimento, que fazia relatórios sistemáticos sobre as saídas de Lacerda, com quem ele se encontrava, etc. O íntegro major Ernani Fittipaldi, um dos ajudantes de ordens de Getúlio, disse ao autor de “Vitória na Derrota” que bastante antes do episódio da rua Toneleros, Gregório havia lhe dito que tinha descoberto que Lacerda, o vigilante contra o adultério, encontrava-se secretamente todas as tardes de quarta-feira com uma certa dama, em um hotel do bairro carioca de Santa Tereza. Gregório pretendia desmascarar Lacerda. Mas a questão que, sobretudo lhe preocupava, declarou Alcino, eram os negócios de Lacerda.
No dia 5 de agosto de 1954, a tarefa de Alcino era a mesma de sempre. Estava acompanhado do membro da Guarda Pessoal que Gregório colocara para dar-lhe apoio: Climério Euribes de Almeida, compadre de Gregório – os dois eram originários da mesma localidade do Rio Grande do Sul. Naquele dia, o membro da Guarda Pessoal que normalmente dirigia o carro que Alcino usava, José Antônio Soares, estava em São Paulo. Assim, depois de acompanhar Lacerda numa palestra em um colégio da Tijuca (Alcino tomou notas do que Lacerda dizia), Climério telefonou para um ponto de táxi em frente ao Palácio do Catete, residência oficial do presidente, e pediu que um motorista seu conhecido, Nelson Raimundo, fosse levá-los até à rua em que Lacerda morava, a Toneleros. Climério explicou a Alcino o motivo: a mulher de Lacerda não estava no Rio. Assim, ele queria saber com quem Lacerda chegaria em casa.
Somente essas circunstâncias já mostram a fragilidade da farsa urdida logo depois:
a) para realizar um atentado, os supostos assassinos chamaram um táxi que fazia ponto em frente ao Palácio do Catete;
b) na dupla que supostamente iria matar Lacerda, um dos seus membros, exatamente o que chamou o táxi, e que era conhecido do taxista há muito tempo, era compadre de Gregório e ligado a ele desde a juventude;
c) apesar de ter vários carros à sua disposição e poder facilmente arrumar outros, Gregório não se preocupou em conseguir um para o que seria um “atentado”; Climério e Alcino chegaram ao local de táxi, de um taxista que era também barbeiro, numa barbearia ao lado do Palácio – e que nem carro próprio tinha (teve que pedir emprestado um Studebaker de um colega para atender ao chamado);
d) um pistoleiro que vai realizar um assassinato se preocupa em tomar notas das diatribes de Lacerda, e ir antes a um lugar em que era impossível a tentativa de matar o suposto alvo, devido ao número de pessoas que o cercavam;
e) uma dupla que vai realizar um atentado contra um elemento que vivia entre meganhas e militares, não se preocupa em organizar nenhum esquema para fugir do local;
f) Gregório teria contratado para matar Lacerda um sujeito que jamais foi um pistoleiro, nem profissional nem amador – Alcino era um trabalhador que ficou conhecido em Minas por ter descoberto uma lavra de mica numa propriedade de uma companhia americana, que o mandou prender. Sabendo do caso, o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, que era amigo de seu pai, cuidou de sua defesa, sendo então solto, fato noticiado amplamente na imprensa local. Alcino jamais matou ninguém nem antes nem depois daquele dia 5 de agosto. E foi ele que Gregório teria contratado para matar Lacerda, tendo tantos pistoleiros à disposição, do Oiapoque ao Chuí. Conhecendo esse ponto fraco da sua farsa, os seus autores tentaram remediar o problema atribuindo-lhe dois latrocínios. Foi provado que era inocente dos dois. Além do que, pistoleiros profissionais e latrocidas operam em ramos de atividade diferente, não se misturam.
Alcino manteve sempre a mesma história, sem que ninguém até hoje consiga desmenti-la, nem apontar incoerência nela. Em 1977, logo depois de cumprir 23 anos de prisão – sem uma falta de comportamento durante esse tempo – Alcino deu seu depoimento ao jornalista Palmério Dória:
“Eu não era pistoleiro. Não saí para matar ninguém, nunca podia imaginar que aquele segurança do Lacerda fosse um major. [Vaz] rodeou o carro pela frente e surgiu na traseira. Ele me atacou e eu saltei. Aí surgiu um tiro, não sei de onde partiu – uma bala passou zumbindo no meu ouvido. O segundo tiro parece que atingiu o major pelas costas, justamente na hora em que ele me deu uma chave-de-braço, no braço esquerdo. Antes, eu estava pulando e me defendendo… Conforme ele me quebrou, me dando uma chave-de-braço, eu já tinha levado a mão pro revólver. Eu estava com um Smith & Wesson, calibre 45, e dei dois tiros no peito dele” (“Mataram o Presidente! – memórias do pistoleiro que mudou a história do Brasil“, Alfa-Ômega, 1978).
Estranhamente, os relatórios de Alcino sobre Lacerda que ainda não haviam sido entregues a Gregório foram apreendidos em sua casa, mas jamais incorporados ao inquérito feito por lacerdistas na base aérea do Galeão.
Ao contrário de Alcino, Lacerda mudou sua história várias vezes. Como nota Ronaldo Conde Aguiar, ele contou pelo menos três versões diferentes do suposto “atentado”:
(1ª) No dia seguinte ao episódio da Toneleros, Lacerda contou que foi alvo de tiros vindos de vários locais diferentes e, depois de empurrar seu filho (na época com 15 anos), que estava com ele, para a garagem, respondeu aos tiros; depois, entrou na garagem e saiu pela porta principal do prédio, reparando, então, que estava ferido no pé esquerdo e que Vaz estava estendido na calçada.
(2ª) Em agosto de 1967, em entrevista à revista “Manchete”, Lacerda modificou a história: nessa, havia um único atirador, Alcino, e ele começou logo a atirar no suposto pistoleiro; Lacerda estava com um revólver 38 cano curto, uma arma para distâncias pequenas, completamente inadequada para trocar tiros com uma 45; além do que, Lacerda não sabia atirar.
3ª) Em 1977, na longa entrevista que redundou no livro “Depoimento”, Lacerda afirmou que depois de se despedir de Vaz, quando foi até a porta do edifício, reparou que estava sem chave e, ao voltar para trás, estranhou um homem, mulato, que em seguida começou a atirar, e imediatamente sentiu uma “dor violenta” no pé. A bala o teria atingido “em cima do pé”. E Lacerda não disparou contra o atirador imediatamente, porque seu filho, em pânico, agarrou-se a ele, impedindo-o de reagir. Só depois de conseguir levar o filho para a garagem, subir uma escada e percorrer um corredor, saindo pela porta da frente do edifício, é que começou a atirar, fazendo todo esse percurso com essa “dor violenta” no pé, ou seja, com um tiro de 45 no peito do pé. Como disse o professor Joel Rufino: “Nem o pé do Cyborg teria conserto após um balaço daqueles“.
Por que Lacerda variou tanto os detalhes da história ao longo dos anos?
Porque nada disso era verdade. Uma história inventada tende a mudar com o tempo, pela própria falta de fundamento na realidade. Os detalhes – e detalhes importantes – da invenção revelam o embusteiro, porque mudam quando a história é recontada em intervalos de tempo maiores. O que houve foi a agressão de Vaz a Alcino, que disparou dois tiros. E Lacerda sabia disso. Talvez soubesse também mais sobre o terceiro tiro, o que atingiu as costas de Vaz.
Existe ainda uma quarta versão, a dos lacerdistas que fizeram o IPM conhecido, pelo seu desrespeito às leis da República, como “República do Galeão”: Lacerda teria sido atacado por Alcino, que atingiu Vaz; ferido no pé, Lacerda – com um 38 cano curto e sem saber atirar – teria revidado e colocado o “pistoleiro” em fuga…
Algumas observações:
I) Rubem Vaz foi, realmente, como se constatou no Hospital Miguel Couto, atingido por duas balas no peito (tal como Alcino relatou que foram seus disparos) e uma nas costas; que bala era essa que o atingiu nas costas?
II) O corpo nunca foi submetido à necrópsia: os golpistas não permitiram que ele fosse examinado no Instituto Médico Legal, pretextando que podiam incriminar Lacerda, apesar de poderem indicar médicos para participar do exame pericial.
Por quê impediram a necrópsia – aliás, obrigatória, pela lei, em se tratando de crime ou morte violenta?
III) Lacerda recusou que seu revólver fosse submetido à perícia, sob o mesmo pretexto, e também nunca submeteu esse revólver a um exame nem por peritos que poderia contratar.
Por quê?
IV) A bala no pé de Lacerda: duas testemunhas, um vizinho, Fernando Aguinaga, e Otávio Bonfim, um dos jornalistas do “Diário Carioca” que estavam lá na hora, depuseram que Lacerda caminhava normalmente quando foi em direção ao corpo do major Vaz, após a fuga do suposto pistoleiro. Isso, apesar de, segundo ele, ter recebido um tiro de 45 “em cima do pé”. Um tiro que, nessas condições, teria destruído o seu pé. Porém, Lacerda foi dirigindo até o Hospital Miguel Couto, ou seja, de Copacabana até a Gávea, com o corpo de Vaz no carro, depois de atingido por uma bala de 45 no pé. Certamente, bala de 45 “no peito do pé”, ele não tinha. É possível – até provável, nos parece – que, covarde como Lacerda sempre foi, a bala no pé possa ter sido de uma arma de outro calibre. Um 38 cano curto, por exemplo. Fernando Aguinaga foi ouvido no Galeão, mas seu depoimento não foi incorporado ao inquérito.
V) Um dos três jornalistas presentes, Armando Nogueira, disse a Palmério Dória que a cena que presenciou quando estava chegando na Toneleros não foi a que contou no relato que publicou no “Diário Carioca”, no qual confirmou a primeira versão de Lacerda. O “Diário Carioca”, como disse outro desses jornalistas, Otávio Bonfim, “fazia do anti-getulismo sua razão de viver”. Posteriormente, perguntado sobre esse assunto, numa entrevista para a revista “Interview”, pelo próprio Palmério Dória, Armando Nogueira não desmentiu que tivesse mentido. Preferiu não responder.
VI) O fato é que no dia seguinte a esse charivari, Lacerda e toda a imprensa reacionária estavam já acusando Getúlio e o Palácio do Catete.
O motorista de táxi que conduziu Alcino e Climério, se apresentou à polícia apenas duas horas após ter deixado Alcino no centro do Rio. O que não lhe salvou de ser condenado, numa sentença absurda, a 11 anos de prisão, com Lacerda garantindo que o via sempre nos seus comícios – Nelson, o taxista, jamais havia ido a um comício na vida. E até o promotor Cordeiro Guerra, que acompanhava o inquérito, e era lacerdista (depois ministro do STF sob a ditadura), achou estranho – aliás, achou impossível – Lacerda se lembrar de quem assistia aos seus comícios.
Os presos ficaram incomunicáveis na base aérea do Galeão durante 50 dias. Nesse tempo, foram torturados com choques elétricos e outras sevícias pelo notório Cecil Borer, que depois seria indiciado, no governo Lacerda, na Guanabara, pela morte de mendigos que eram atirados no Rio da Guarda e pelo esquema de torturas na chamada Invernada de Olaria. Os dois processos foram abafados após o golpe de Estado de 1964. Nessa época, o chefe de Borer e secretário de Segurança de Lacerda era outra figura notória, Gustavo Borges, o principal membro da chamada “República do Galeão”. Borges era, na noite de 5 de agosto, o segurança escalado para acompanhar Lacerda – pediu, na última hora, que Vaz o substituísse.
Todos os acusados declararam-se inocentes quando do julgamento. Gregório denunciou não somente as torturas, mas também a falsificação de seu depoimento no Galeão. Antes do julgamento, numa declaração à rádio Jovem Pan, indignado, falou: “Isso é, como nós chamamos lá no sul, um rodeio, procurando conversar comigo coisa de crime, que não é do meu feitio. Eu frequento rodas onde não se fala em crime. No Palácio, não se fala, não se cogita em matar ninguém. Eu não admito isso“.
Alcino foi condenado a 33 anos de prisão, posteriormente reduzidos por sua absolvição – pedida pelo próprio promotor – da acusação de latrocínio, em um segundo julgamento. Cumpriu 23 anos e sobreviveu a duas tentativas de assassinato. Gregório foi condenado a 25 anos e assassinado na prisão. Numa justa homenagem a ele, em seus funerais, compareceram o irmão de Getúlio, Spartaco, a filha, Alzira, e a sobrinha, Ivete. Climério, condenado a 33 anos, também foi assassinado na prisão. José Antonio Soares, que estava em São Paulo no dia 5 de agosto, foi condenado a 26 anos. Ele e Nelson Raimundo, o taxista, foram localizados pelo jornalista Palmério Dória, com a ajuda de Alcino, depois de saírem da cadeia.
Lacerda terminou sua vida cultivando a convivência adesiva com rapazes atléticos e espadaúdos, a qual se tornou cada vez mais absorsiva; fazia loas melífluas às rosas do seu jardim; cassado pela ditadura que ajudara (e não pouco) a instalar, morreu, só, aos 66 anos, em 1977.
Quanto ao homem que fundou o verdadeiro Estado nacional brasileiro, dotou o país de uma indústria própria, empreendeu a ascensão de trabalhadores e empresários nacionais a protagonistas da nossa História, fundou o sistema público de ensino e instaurou o sufrágio universal e secreto, incluído o voto feminino, além de impulsionar a cultura nacional como nunca antes havia sido feito, que estabeleceu o domínio nacional sobre o nosso petróleo, combateu as fraudes nas remessas de lucros das empresas estrangeiras, iniciou um projeto para dotar o país de energia elétrica – numa época em que as distribuidoras de energia eram todas externas, estrangulando a economia do país com a sua pilhagem, Getúlio Vargas, ele mesmo o disse:
“E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate”.
MUITO bom o artigo sobre a Farsa de Tonelero (sem o S, na verdade). Em meu livro “O País dos Militares e dos Bacharéis” falo bastante sobre o assunto, entre outros. Foco sobre as ações militares e conspiratórias de oficiais da FAB contra os governos de Getúlio Vargas e de JK nos anos 1950. Acrescento um detalhe que nenhum autor até foi capaz de ver: a data em que assassinaram Gregório Fortunato na cadeia.
MAIS:
O canal TV 247 publica entrevista deste autor sobre o tema. Devido ao exíguo tempo, não chego a detalhes que só o livro é capaz de trazer. Eis o link: https://www.youtube.com/watch?v=pGDAlT5vu6E