NATALIA BELUCHE BARRANTES*
A partir da estreia de “A Forma da água”, filme de Guillermo del Toro, recolhi várias opiniões de cinéfilos e não tão cinéfilos. Escutei discussões sobre se, com a obra, del Toro estava ou não fazendo uma homenagem aos seus filmes favoritos, à estética de Jean-Pierre Jeunet em Amélie (2001) – que não deixa de ser um remake do “Monstro da lagoa negra”, que Jack Arnold dirigiu em 1954. Inclusive se fala da obra como uma releitura pseudo-intelectual da Bela e a Fera para adultos.
No entanto, e com permissão da indústria cinematográfica, minha tese é a seguinte: ao longo da história da humanidade podemos ver que em amplos ramos das artes temos conseguido expressar, de maneira criativa, as situações sociais e políticas. Tem se demonstrado que as artes são o meio pelo qual se denuncia fortemente o que não poderíamos dizer em voz alta, sob pena de colocar em risco nossa própria vida.
Portanto, levando em conta que Guillermo del Toro é um mexicano exitoso na era Trump e tudo o que isto significa: xenofobia, racismo, machismo, muro fronteiriço entre Estados Unidos e México. Poderia o premiado cineasta nos contar algo mais, além da obra de linda estética?
Pensando nisto, é bom destacar que o personagem-guia é uma mulher muda (latina?), que a simples análise fala do obrigado silêncio a que é relegada a metade da população. Seu melhor amigo é um pintor gay e a companheira de trabalho, uma mulher negra, vítimas da violência psicológica. Estes três personagens são representativos das mal chamadas minorias, cada um tem uma história individual. Para além do filme e em pequenos momentos, as cenas aparentemente esquecidas por parecerem não tão importantes, por não serem românticas, estão nos detalhes de como vêm sendo relegados à obscuridade e ao silêncio.
Falemos dos vilões. Em primeiro lugar do coronel Strickland, branco e extremamente machista, militar estadunidense, família de foto de publicidade dos anos 50. Nada disso é casualidade. Depois poderíamos falar dos russos, mas estamos no meio da Guerra Fria. No entanto, há um vilão chave que quase não vemos, o general Frank Hoyt, que revela o que é realmente importante para o governo estadunidense, desenvolvendo a ideia de que não importa ser decente, não há espaço para equívocos. A imagem do homem decente e da família feliz criada nos EUA é somente uma fachada, para vender o famoso “sonho americano”. É impossível que estas frases sejam um acidente.
Vamos pensando que o slogan de Donald Trump é “fazer a América grandiosa novamente”. A época focada pelo filme é a da Guerra Fria, o final dos anos 50 e o início dos 60.
Claro, temos o maravilhoso rebelde, que desde dentro se revela a ambos governos, Dimitri, que se destaca com sua ética como cientista e dá sua vida por isso.
Finalmente chegamos à Criatura, vinda de um lago da América do Sul, no Brasil. Deus de um povo originário semi-humano, foi raptado, desaparecido pelos militares. A ele se dedica toda uma cena de tortura, sob o poder da picana elétrica, arma favorita dos militares formados na Escola das Américas. Seguramente, isto será recordado pelos milhares de desaparecidos na América Latina, sitiada pelas ditaduras de militares treinados pelo governo estadunidense.
Diante deste conjunto de ideias e análises, será que esta obra nos convida a trabalhar a memória e a perguntar se queremos repetir nossa história?
*Atriz panamenha formada em Arte Dramática. Artigo publicado originalmente no jornal La Prensa, do Panamá