
No mais cruel dos aspectos do genocídio fascista israelense, já foram assassinadas propositalmente 18.000 crianças palestinas. A articulista Soumaya Ghannoushi denuncia as macabras intenções do regime de Netanyahu que levam à matança de crianças na Faixa de Gaza, em sua matéria originalmente intitulada “Porque Israel está travando uma guerra contra as crianças palestinas” publicada no portal Middle East Eye*
“Milhares de crianças palestinas são mortas. De acordo com a Defence for Children International-Palestine, pelo menos 2.427 crianças palestinas foram mortas pelas forças israelenses entre a Segunda Intifada e meados de 2024, excluindo aquelas mortas em Gaza após 7 de outubro de 2023. As mortes abrangem décadas, postos de controle, campos de refugiados e cidades. A escala da violência não pode ser descartada como dano colateral. É política: repetida, institucionalizada e refinada. A crueldade se estende além da violência. Ela infecta a linguagem”, relata Soumaya Ghannoushi no artigo que a seguir publicamos:
Por que Israel está travando uma guerra contra as crianças palestinas
SOUMAYA GHANNOUSHI
Os jovens herdaram das gerações passadas o amor pela terra, preservando o sonho do regresso – e por isso, devem ser eliminados
Eles andam descalços pelos destroços — crianças carregando crianças, braços pequenos envolvendo irmãos mais novos, segurando o que sobrou de suas famílias.
Em Gaza, não há segurança, nem silêncio, nem pausa. Só há movimento: fugir, enterrar, fugir de novo. Bombas os perseguem pelo território. Tanques os perseguem em becos. Drones zumbem no alto, observando, esperando para atacar.
Vimos seus rostos. Alguns estão cobertos de cinzas, atordoados demais para chorar; outros gritam nomes na poeira – nomes que não respondem mais. Crianças, completamente sozinhas, vagam de um túmulo para o outro.
Muitos nem sequer têm nomes, apenas marcadores — um número, uma etiqueta rabiscada a caneta no braço para que, se morressem, alguém pudesse saber quem eram.
E ainda assim eles são caçados.
No início deste mês, antes do sol nascer, quase 200 crianças foram mortas em uma barragem coordenada de ataques israelenses. Isso não aconteceu em combate, nem por engano. Elas morreram em casas, em tendas, durante o sono; enroladas em cobertores, sob tetos que desabaram como um segundo céu.
Quando perguntada sobre o massacre, a embaixadora de Israel no Reino Unido, Tzipi Hotovely, não vacilou . Não houve pedido de desculpas, nenhuma demonstração de tristeza – nem mesmo a palavra “crianças”. Houve apenas o roteiro padrão sobre o Hamas, escudos humanos e autodefesa.
A OCULTAÇÃO
Dentro de Israel, o enquadramento foi ainda mais frio. Os mortos foram descritos como “ terroristas eliminados”. Nenhum nome ou idade foi dado. De acordo com o jornalista israelense Orly Noy, “a mídia adotou a alegação de que não há inocentes em Gaza”.
Essa linguagem se tornou rotina, mobilizada para que [o primeiro-ministro] Benjamin Netanyahu e o exército possam continuar a executar o genocídio. Não é uma falha de reportagem. É uma estratégia de ocultação.
Mas o mundo viu, contando um pequeno cadáver após o outro. Desde outubro de 2023, mais de 18.000 crianças foram mortas em Gaza, com muitas outras ainda acreditadas sob os escombros.
NÃO SÃO ACIDENTES. É UMA ESTRATÉGIA
A fome é o segundo cerco. Um ano atrás, a Unicef relatou que no norte de Gaza, cerca de uma em cada três crianças menores de dois anos estavam gravemente desnutridas — “uma escalada impressionante” em relação aos meses anteriores. Em Khan Younis, 28% das crianças estavam morrendo de fome, com mais de 10% à beira da morte por definhamento. Seus estômagos incham; seus membros encolhem. A fome as ataca enquanto os líderes mundiais debatem “corredores de ajuda”.
Que tipo de guerra produz uma geração de crianças sem pernas? Que tipo de estado trava essa guerra e a chama de autodefesa?
Quando a doença chega, não há hospitais, nem remédios, nem água limpa. As crianças de Gaza não são apenas bombardeadas; elas passam fome, são infectadas e deixadas sem tratamento.
De acordo com um artigo da Lancet publicado no ano passado, havia um banheiro para cada 220 pessoas, e um chuveiro para cada 4.500. A doença é a nova arma, com centenas de milhares de infecções respiratórias agudas e casos de diarreia em crianças menores de cinco anos.
Aqueles que sobrevivem às bombas e à fome frequentemente perdem seus membros. Cerca de 10 crianças por dia sofrem amputações. Em salas escuras sem anestesia, cirurgiões cortam sua carne com lanternas.
Gaza agora tem o maior número de crianças amputadas per capita do mundo. Que tipo de guerra produz uma geração de crianças sem pernas? Que tipo de Estado trava essa guerra e a chama de autodefesa?
Há um termo agora nos hospitais de Gaza: WCNSF – “criança ferida, sem família sobrevivente”. Está rabiscado em gráficos. Estes são os órfãos retirados dos escombros – queimados, ensanguentados e sozinhos, sem ninguém para dizer seus nomes.
O REFORMULADO COMO AMEAÇA
Enquanto as crianças de Gaza estão enterradas ou destruídas, na Cisjordânia ocupada, elas estão amarradas e silenciadas.
A cada ano, entre 500 e 700 crianças palestinas — algumas com apenas 12 anos — são presas e processadas em tribunais militares israelenses. A acusação mais comum é atirar pedras.
Muitos são arrastados de suas casas à noite, vendados e amarrados com zíper. Eles são levados sem aviso e interrogados sem pais ou advogados. Eles são espancados, ameaçados e forçados a assinar confissões – geralmente em hebraico, uma língua que eles não entendem.
No mês passado, Muin Ghassan Fahed Salahat, de 14 anos, tornou-se o mais jovem palestino mantido sob detenção administrativa, sem acusação ou julgamento. Com base em evidências secretas que nem ele nem seu advogado podem ver, sua detenção pode ser renovada indefinidamente.
Isso não é uma exceção. É a regra. Do início da Segunda Intifada até 2015, mais de 13.000 crianças palestinas foram presas por forças israelenses.
Milhares de outras são mortas. De acordo com a Defence for Children International-Palestine, pelo menos 2.427 crianças palestinas foram mortas pelas forças israelenses entre a Segunda Intifada e meados de 2024, excluindo aquelas mortas em Gaza após 7 de outubro de 2023. As mortes abrangem décadas, postos de controle, campos de refugiados e cidades. A escala da violência não pode ser descartada como dano colateral. É política: repetida, institucionalizada e refinada.
A crueldade se estende além da violência. Ela infecta a linguagem.
No final de 2023, durante uma troca de reféns, cativos israelenses foram trocados por prisioneiros palestinos, muitos deles menores de idade. Mas a BBC, e até mesmo o Guardian inicialmente, não os chamariam de “crianças”. Em vez disso, eles foram referenciados como “ adolescentes ” ou “ pessoas com 18 anos ou menos”. Esses eufemismos deliberados refletem um apagamento silencioso: tire-lhes a infância, e você os tira da simpatia. Tire-lhes a inocência, e suas gaiolas não precisam de chaves.
Isso não é descuido retórico. É parte de uma estratégia ideológica para reformular as crianças palestinas como ameaças, não vítimas. Se não são crianças, matá-las não é crime, e lamentar por elas não é necessário.
DÉCADAS DE APAGAMENTO
Essa eliminação não começou ontem. Ela tem décadas.
Durante a Primeira Intifada (1987-93), crianças se levantaram com pedras nas mãos. A resposta israelense foi a doutrina da força bruta. Yitzhak Rabin, então ministro da defesa, ordenou que os soldados “quebrassem seus ossos” – e eles o fizeram. As filmagens mostraram crianças imobilizadas, seus braços despedaçados por pedras nas mãos dos soldados. Isso não era caos. Era comando.
Essa mesma lógica continua viva – não mais com bastões, mas com mísseis e fósforo branco. A quebra de ossos se tornou amputação em massa. O objetivo é o mesmo: aleijar o futuro.
Esse legado encontrou um dos seus símbolos mais claros na morte de Muhammad al-Durrah. Em 2000, no início da Segunda Intifada, o garoto de 12 anos agachou-se ao lado do pai atrás de um barril ao sul da Cidade de Gaza. Seu pai o protegeu com seu corpo, mas o garoto foi atingido várias vezes por tiros israelenses. Ele morreu nos braços do pai.
O momento foi filmado, e o mundo assistiu. Israel negou, distorceu, culpou. Mas a verdade perdurou: uma criança foi executada enquanto o mundo assistia.
Então veio Faris Odeh. Com apenas 14 anos, ele ficou sozinho diante de um tanque israelense, uma pedra na mão, seu corpo arqueado em desafio. Dias depois, ele foi baleado no pescoço e morto perto da Travessia de Karni, em Gaza. A foto de um garoto enfrentando um exército, com uma pedra erguida em sua mão, está gravada na memória palestina. Eles o mataram, mas sua imagem continua viva.
De fato, a perseguição a crianças tem sido uma doutrina israelense há muito tempo, desde o massacre de Deir Yassin em 1948, ao bombardeio de uma escola egípcia em Bahr al-Baqar em 1970, até o ataque de 2006 em Qana, no Líbano, que matou dezenas.
GUERRA À CONTINUIDADE
Mesmo em momentos de suposta calma, a matança continua. Em 2015, colonos israelenses bombardearam a casa da família Dawabsheh na Cisjordânia ocupada. Ali, um bebê de dezoito meses, foi queimado vivo. Mais tarde, israelenses dançaram em um casamento, esfaqueando uma foto do bebê morto, em comemoração.
Hoje, os políticos e rabinos israelenses falam das crianças palestinas como inimigas. Um rabino pediu para matá-las sem hesitação. Um membro do Knesset declarou que toda criança nascida em Gaza era “já um terrorista”. Netanyahu invocou o conto bíblico de Amalek para enquadrar a morte em massa – incluindo a matança de crianças – como um dever divino.
Um funcionário do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança disse sobre a situação em Gaza: “A morte escandalosa de crianças é quase historicamente única… Essas são violações extremamente graves que não vemos com frequência”.
Mas o mundo viu, e ainda assim, os pequenos corpos se acumulam cada vez mais.
Isso não é genocida apenas em números. É genocida em intenção. E não termina com matança e mutilação; atinge mais profundamente, a memória e a imaginação.
Aqueles que sobrevivem são despojados de sua infância, suas escolas reduzidas a escombros, seus professores enterrados sob quadros-negros. Mais de 80% das escolas de Gaza foram danificadas ou destruídas. Até mesmo os playgrounds foram arrasados - balanços retorcidos em sucata, campos de futebol craterizados por mísseis.
As crianças palestinas estão sendo roubadas de seus futuros, de seus corpos, de suas famílias — de sua capacidade de sonhar.
Mas eles ainda resistem. Nas ruínas, nós os vemos: meninos chutando bolas embrulhadas em pano através da poeira, meninas trançando cabelos em tendas, crianças desenhando casas que não existem mais. Eles constroem casas de brinquedo de metal retorcido. Eles sorriem em meio às lágrimas. Eles brincam entre fantasmas.
Os velhos morreram, mas não antes de passar os nomes das aldeias, as histórias das árvores, as chaves das portas trancadas, os mapas gravados na memória. Os jovens herdaram tudo isso.
Eles estão mutilados, traumatizados e assombrados, embalados para dormir pelas memórias dos colegas de classe agora enterrados.
Mas eles continuam, porque os palestinos amam a vida – ferozmente, desafiadoramente. Eles se agarram a ela através da fumaça, através dos escombros, através de cada tentativa de extingui-los.
Estamos testemunhando uma guerra contra as crianças, contra a continuidade. Seu objetivo não é apenas a dominação, mas o apagamento.
Golda Meir – nascida na Ucrânia, ex-portadora de passaporte palestino e, mais tarde, primeira-ministra de Israel – certa vez ofereceu esta garantia aos companheiros colonizadores: “Os velhos morrerão, e os jovens esquecerão”.
Mas eles não esqueceram. Os velhos morreram, mas não antes de passar adiante os nomes das aldeias, as histórias das árvores, as chaves das portas trancadas, os mapas gravados na memória. Os jovens herdaram tudo isso: o amor pela terra e o direito de retornar.
E para isso, eles devem ser eliminados. Aos olhos de Israel, eles são a maior ameaça. Porque enquanto houver crianças, a história continua.
Enquanto houver crianças, a Palestina viverá.
Veja o vídeo sobre a morte de 200 crianças em uma madruagada deste mês, que testemunha o crime:
*Soumaya Ghannoushi é uma escritora tunisiana britânica e especialista em política do Oriente Médio. Seu trabalho jornalístico apareceu no The Guardian, The Independent, Corriere della Sera, aljazeera.net e Al Quds. Uma seleção de seus escritos pode ser encontrada em: soumayaghannoushi.com
** A matéria publicada em inglês foi traduzida e divulgada em redes sociais pela economista Amyra El Khalil