CARLOS LOPES
[O texto abaixo serviu de base à intervenção do autor no debate “Getúlio Vargas – 70 anos da vida para a história”, realizado no dia 24 de agosto, no Cine-Teatro Denoy de Oliveira, na sede da Umes, em São Paulo.]
Gostaria de expressar a minha satisfação por estar, hoje, aqui, com meu velho amigo Beto Almeida, nesta homenagem a Getúlio Vargas.
Especialmente pelo fato de estar falando para um público majoritariamente jovem – o que significa a essência do Brasil. Nós, que somos a geração que está se despedindo, sabemos disso muito bem.
Alguns anos atrás, eu e um amigo saíamos da redação da Hora do Povo, depois de uma noite de trabalho, quando ouvi, desse amigo, uma pessoa muito inteligente, uma observação, não sei dizer se instigante ou intrigante. Disse ele: “um dia vamos ter que explicar porque as duas figuras maiores da nossa história – Santos Dumont e Getúlio Vargas – se suicidaram”.
Guardei essa observação na memória e ela me incomodou durante muito tempo. Aliás, me incomoda até hoje. O máximo que avancei e posso dizer hoje é que esses homens eram de uma tal grandeza que consideravam a sua pátria muito maior do que a si mesmos. Portanto, em determinado momento, puderam deixar de existir por sua própria vontade – desde que a pátria continuasse, ou, mais precisamente, fosse a sua própria continuidade.
Eu havia planejado começar exatamente por aí a minha intervenção de hoje, ou seja, pelo fim da vida física de Getúlio. Quando pensei nisso, ainda não havia visto o filme que acabamos de exibir. Depois de vê-lo, descobri que a ideia dos seus autores foi a mesma.
Comecemos, então, pelo documento final, aquele no qual Getúlio Vargas resumiu sua vida e a História do Brasil – talvez porque os dois fossem a mesma coisa. Esse é o sentido da Carta-Testamento, talvez o mais impressionante libelo anti-imperialista já escrito:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.
“Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
“Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social.
“Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás; mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
“Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
“Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado.
“Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre ao vosso lado.
“Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência.
“Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.
“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
Gostaria, então, de me concentrar numa questão que, posteriormente, como consequência da política de Getúlio após a Revolução de 30, seria abordada por muitos estudiosos.
Particularmente Nelson Werneck Sodré, em seu livro Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil (Oficina de Livros, 1990), onde examina, entre outras questões, a época de Vargas, levantou que o desenvolvimentismo sem o seu aspecto nacional deixa de ser desenvolvimentismo, pelo menos no sentido mais progressista da palavra.
Em suma, desenvolvimentismo, ou é nacional-desenvolvimentismo, ou é desenvolvimento nacional, ou acaba por ser submissão à metrópoles externas. É aí que Werneck vê a diferença essencial entre a política de Getúlio e a política posterior, do governo Juscelino Kubitschek.
Tal diferença também foi vista por Jacqueline A. H. Haffner em A CEPAL e a Industrialização Brasileira (1950-1961) (EDIPUCRS, 2002), embora com outro viés.
Mas, se é assim – e nós achamos que é – qual foi a ação inicial de Getúlio? Tal como sabemos por seus discursos e escritos na época em que era governador do Rio Grande do Sul, ele dera muita importância ao crédito.
Ao contrário de outros governantes, tão fixados naquele velho ditado de Antonio de Oliveira Salazar, segundo o qual somente seria possível gastar o que se arrecada, Getúlio sabia que todo operário, todo cidadão, recorre ao crediário quando lhe falta dinheiro líquido à vista. Se todo operário assim o faz, mais ainda a máquina pública, a máquina do Estado, pode fazer.
Porém, essa descoberta – ou essa crença – não bastava para resolver os problemas que infernizavam o país no final da década de 20 do século XX.
Em 10 de novembro de 1930, quando, ao chegar ao Rio de Janeiro, entrou no Palácio do Catete, o Brasil estava economicamente arrasado por décadas de submissão aos banqueiros externos – sobretudo ingleses – e pelos privilégios à oligarquia cafeeira, que antes detinha o poder.
Desde o governo Campos Sales (1898-1902), o Brasil trabalhava para pagar juros à banca londrina. Com o “Convênio de Taubaté”, em fevereiro de 1906, pelo qual o governo de São Paulo, tendo como avalista o governo federal, foi autorizado a contrair diretamente empréstimos no exterior para garantir os lucros – e, sobretudo, cobrir os prejuízos – da oligarquia cafeeira, a dívida pública passou a ser monstruosa. Com toda a sangria desatada a partir de Campos Sales, a dívida passou de 30 a 90 milhões de libras esterlinas entre 1889 e 1910. Eram, em sua maioria, empréstimos externos pagos pelo Estado, ou seja, pelo trabalho de toda a população, para beneficiar apenas o pequeno setor que detinha o poder. Ao mesmo tempo, esse endividamento financiava a vasta enxurrada de importações, impedindo o desenvolvimento da indústria nacional.
Somente a barreira às importações devida à I Guerra Mundial (1914-1918), que trouxe como consequência algum desenvolvimento da indústria interna, adiou a crise terminal da República Velha. Terminada a guerra, e restaurada a política econômica da oligarquia, já em 1921, com a queda nos preços internacionais do café, a economia entrou em colapso. A solução do governo Epitácio Pessoa foi a de sempre: mais empréstimos aos bancos ingleses para evitar os prejuízos da oligarquia, fazendo com que o povo pagasse por eles.
Não por acaso, no ano seguinte irromperia o primeiro levante tenentista, o do Forte de Copacabana.
Três anos depois, em 1924 – ano da revolução de 5 de julho, em São Paulo, e do início da Coluna Prestes -, o país estava outra vez quebrado e assoberbado pelos pagamentos da dívida. Os bancos ingleses, diante da possibilidade de deixarem de receber seus juros, exigiram a privatização das estatais então existentes, o Banco do Brasil e a Central do Brasil. Queriam o patrimônio público brasileiro, que, apesar de ainda incipiente, era muito mais concreto do que a espera por receber juros de um país devastado por eles mesmos e seus sequazes internos. Apavorados com a possível inadimplência do país, os bancos externos queriam esse patrimônio sem conceder novos empréstimos, o que fez com que a oligarquia cafeeira apoiasse a recusa do governo – no qual, eventualmente, estava um presidente, o mineiro Artur Bernardes, que não era seu direto representante – contra as exigências inglesas.
No entanto, com Washington Luiz, sucessor de Bernardes, a oligarquia cafeeira terá um presidente seu. Não deixa de ser cômico que alguns epígonos tardios da oligarquia tentassem passar o autoritarismo doentio de Washington Luiz como prova de sua independência. Sua vida política foi, na verdade, a de um adesista.
Nascido em Macaé, no interior do Estado do Rio de Janeiro, numa família de escravocratas que forneceu ao Império um ministro da Fazenda e outro do Exterior, Washington Luiz, após a República, tornou-se republicano, transferindo-se para São Paulo.
Lá, foi a princípio opositor feroz da oligarquia cafeeira, em especial de Campos Sales e Rodrigues Alves, mas, depois que, em 1900, não teve sua eleição a deputado reconhecida – na República Velha não bastava ser eleito: para tomar posse era necessário ter o mandato reconhecido por uma comissão, naturalmente composta por partidários do governo – e após seu casamento com a filha de um dos maiores cafeicultores do país, Washington Luiz aderiu completamente à oligarquia, sua política, seu esbulho econômico interno e sua subserviência externa.
Como presidente, sua retórica foi a da “estabilidade” – o que significava colocar o país à serviço dos bancos ingleses. A reforma monetária de 1926, apresentada pelo seu futuro candidato a sucessor, Júlio Prestes, tinha explicitamente esse objetivo.
Essa política contou, no entanto, com a oposição do outro Estado decisivo da federação, Minas Gerais. Daí a tentativa de usar o Rio Grande do Sul como contrapeso a Minas, com a nomeação de Getúlio Vargas para ministro da Fazenda. Getúlio, que havia de início recusado o cargo, tentou estabelecer uma política cambial de incentivo às exportações e de barreira às importações, favorecendo o desenvolvimento da indústria. Mas não ficaria senão um ano no Ministério. Exonerou-se em dezembro de 1927, e, em seguida, assumiu o governo do Rio Grande do Sul.
2
Havia se acumulado demasiado material inflamável tanto na política quanto na economia. A partir de 1925 as exportações de café haviam estagnado, enquanto a produção interna crescera 100%, com a formação de imensos estoques – em 1929 o valor deles atingia 10% do PIB brasileiro – comprados pelo governo com os empréstimos externos. Enquanto isso, entre 1920 e 1929 as importações cresceram 100%, mas as exportações somente 10%.
No último trimestre de 1929, quando explodiu a crise do capitalismo mundial, o preço do café, e com ele a economia do Brasil, despencaram no abismo: em seis meses, de 22,5 centavos de dólar por libra [1 libra=0,45 kg], o preço do café caiu para 8 centavos de dólar por libra.
Em poucos meses, com a manutenção da política de “valorização” do café – isto é, a compra pelo governo dos encalhes, com a formação de gigantescos estoques -, no mesmo momento em que secavam os empréstimos externos e os banqueiros ingleses em pânico passavam a cobrar a dívida, as reservas cambiais brasileiras desceram a zero.
Quando Getúlio entrou no Catete, o país não contava com um único centavo de reservas monetárias.
Como consequência da crise, a desvalorização da nossa moeda provocou uma alta generalizada nas mercadorias importadas, com uma explosão de falências, desemprego, miséria e fome, num país já exangue com uma crise interna que vinha desde o início da década de 20.
Apesar disso, a política do governo Washington Luiz foi a de tentar assegurar à oligarquia cafeeira a continuação do paraíso artificial em que vivia às custas da coletividade. Acabadas as reservas monetárias, lançou mão das reservas em ouro para pagar aos bancos externos.
Esta foi a base econômica do rompimento da política do “café com leite”, que revezava oligarcas paulistas e mineiros na Presidência da República, e da Revolução de 30.
O programa inicial da revolução já havia sido esboçado por Getúlio no discurso de apresentação da Aliança Liberal. Era todo um plano de reconstrução do país, reiterado, após a Revolução, em seu discurso de posse. Significava a unidade de todas as forças do país – daí a anistia aos perseguidos pela República Velha; a construção de um Estado Nacional, um Estado que representasse o conjunto do povo, para realizar as suas aspirações e a sua vontade; um novo modelo econômico, centrado no mercado interno, com exceção das “sobras exportáveis”, isto é, do que excedesse as necessidades internas; o amparo à produção nacional; o fim dos privilégios aos monopólios privados estrangeiros; a regulamentação das relações trabalhistas; e um plano geral de transportes – naquela época, a comunicação entre os vários pontos do país era, ainda, realizada principalmente pela navegação costeira.
Esta obra assentava-se em quatro pilares, os quais implicavam na mobilização do povo, na promoção dos trabalhadores a personagens decisivos da História nacional, no desenvolvimento da indústria e em utilizar os recursos internos como mola propulsora do crescimento.
O primeiro pilar em que se sustentou a política econômica do governo de Getúlio Vargas foi o rompimento com a ilusão servil de que o país só poderia sair da crise quando o capitalismo mundial também saísse. Toda a política da República Velha, a partir da crise de 29, estava baseada nessa melancólica premissa, isto é, a de que quando os países centrais, os países imperialistas, se levantassem, o café e outros produtos agrícolas, nossa “vocação natural”, aumentariam outra vez de preço, os lucros dos exportadores de café estariam garantidos, e sobrariam mais recursos para o Estado e o país, que, então, continuaria a viver, ou a vegetar, exatamente como antes.
O segundo pilar da política econômica da Revolução de 30 foi o desmascaramento do engodo de que vivemos num mundo em que todos são iguais, têm iguais oportunidades e concorrem em igualdade de condições num mercado livre. Esse engodo era tanto mais fatal quanto a política dos países centrais para superar a depressão, especialmente a da Inglaterra, consistia, precisamente, em aumentar a espoliação sobre os povos, economias e países dependentes. A política de submissão significava, portanto – e tão somente – o estrangulamento do país. Tornou-se claro para Getúlio a implacável guerra de monopólios em que tinham se transformado as relações internacionais, particularmente as relações econômicas entre países capitalistas centrais e países como o nosso.
O terceiro pilar da política econômica revolucionária foi o estancamento da hemorragia externa, com o direcionamento dos nossos recursos para o desenvolvimento.
No dia 21 de setembro de 1931, o Brasil suspendeu oficialmente a drenagem de recursos para os bancos externos. Em 10 de outubro, durante reunião do Ministério, é decidido que “parte das quantias cujo pagamento é suspenso seja empregada no desenvolvimento econômico do país, e que não seja toda ela reservada para o oportuno restabelecimento do serviço da dívida”.
A partir de então, banqueiros, monopolistas e representantes imperialistas, antes tão petulantes e seguros de que mandavam – e, principalmente, de que desmandavam – no país, tiveram que lidar, naturalmente que a contragosto, com uma Nação e não com uma colônia. Em dezembro de 1931 eles começaram a entrar em acordo com o Brasil, e em março de 1932 eles o fazem formalmente.
O quarto pilar da política de reconstrução econômica foi colocar a produção e exportação de café a serviço do país, investindo parte dos recursos advindos daí na industrialização do Brasil.
Antes da revolução, a política em relação ao café era traçada pelo Conselho Nacional do Café (CNC), um órgão escolhido pelos “Estados produtores”, ou seja, diretamente pela oligarquia cafeeira e não pelo governo. Como o governo federal e o poder político da oligarquia eram praticamente a mesma coisa, não havia necessidade de nenhum controle público sobre a produção e a exportação da principal mercadoria e fonte de divisas do país. Cabia ao governo meramente garantir a “independência” do CNC em relação à sociedade – e referendar os interesses de produtores e exportadores, com os empréstimos externos para a aquisição de estoques, de onde vinham os seus lucros, forçando o conjunto da população a pagar essa dívida.
O resultado era uma inundação de café impossível de ser absorvida por qualquer mercado, seja externo ou interno, pois o governo sempre comprava o excesso. Em 1929, a produção brasileira de café atingiu 28 milhões e 941 mil sacas (1 saca=60 kg), enquanto a exportação foi de 14 milhões e 281 mil sacas. Ou seja, fora o consumo interno, que não era muito num país com população relativamente pequena, sobraram quase 15 milhões de sacas.
Getúlio agiu no sentido, primeiro, de defender o preço do café, queimando estoques: era o nosso principal produto, de onde poderiam vir os recursos para o desenvolvimento do país. No entanto, era exatamente o produto sob o domínio dos antigos detentores do poder, depostos pela revolução.
O primeiro conflito ocorreu logo em março de 1931: diante da débâcle mundial, o preço da saca havia caído para 8 centavos de dólar, e continuava caindo. Os representantes da oligarquia propõem, então, o uso de recursos públicos para elevar a 12 centavos o preço pelo qual vendiam o produto.
Getúlio decide recusar esse sacrifício da coletividade em prol de uma minoria.
Em setembro, o Conselho Nacional do Café foi subordinado ao Ministério da Fazenda – seria depois extinto, com a fundação do Departamento Nacional do Café. Em dezembro, foi instituída uma nova política para o produto, com o aumento do imposto de exportação e a destruição de 12 milhões de sacas/ano. Por um lado, aumentava-se a receita do Estado, colocando os recursos do café à disposição do desenvolvimento. Por outro, impedia-se que o preço caísse ainda mais, para manter o emprego, a renda e o valor da moeda até que uma nova estrutura econômica, tendo por base a indústria, se consolidasse.
A política sobre o café passava, então, a ser determinada pelo Brasil e não pelo exterior.
Com a suspensão das transferências aos bancos externos e a passagem das decisões sobre o café para o Estado, era a própria política econômica que passava ao controle da Nação. Até então ela estivera sob o controle externo (v. HP 23/08/2006, Revolução de 1930: os quatro pilares da reconstrução econômica de Vargas).
3
A República Velha, disse Getúlio, era “um infinito Saara moral, privado de sensibilidade e sem acústica. O povo oprimido e faminto. O regime representativo golpeado de morte, a subversão do sufrágio popular”.
Com efeito.
Rompida a aliança que tinha sustentado Washington Luiz e lançada, pelo governador mineiro, a candidatura do governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, esta se tornou o desaguadouro de todas as insatisfações, de todas as esperanças e de todas as aspirações populares a um Brasil desenvolvido, independente e justo.
A 2 de janeiro de 1930, na capital do país, Getúlio apresentou o seu programa – o programa da frente que se chamava “Aliança Liberal”. Antes prevista para um local fechado, a apresentação teve de ser feita em praça pública, na Esplanada do Castelo, pois o governo havia conseguido que todos os auditórios procurados se fechassem diante da candidatura da oposição.
Esperava-se o comparecimento de uns poucos – a apresentação de um programa de governo nunca atraíra muita gente. Aliás, havia quase dez anos nem mesmo os comícios dos candidatos a presidente atraíam gente, pois já se sabia o resultado de antemão. Desde a candidatura de Nilo Peçanha contra Bernardes, praticamente ninguém se interessava por comícios.
Quanto aos programas, resumiam-se sempre à “salvação da lavoura”, expressão que passou para o anedotário nacional e que não significava outra coisa senão a proteção dos interesses cafeeiros às custas de todo o povo.
Mas naquele segundo dia de janeiro compareceram mais de 100 mil pessoas, o que se repetiu dias depois em São Paulo – que a oligarquia tinha como sua propriedade -, numa época em que o Brasil, para não falar da população dessas duas cidades, tinha menos de um terço dos habitantes de hoje, e sem que houvesse ainda a tecnologia de som atual.
Mesmo assim, as milhares de pessoas ocuparam o centro das duas principais cidades do país, aplaudiram as palavras do seu candidato, e o saudaram efusivamente ao final.
O programa da Aliança Liberal, lido em forma de manifesto por Getúlio, incluía o fim do voto de cabresto, com uma nova lei eleitoral que garantisse o voto secreto e universal; o ensino público geral; a reorganização da Justiça; políticas estatais para alimentação, moradia, amparo da mulher, da criança, dos idosos e dos inválidos; amparo, com concessão de créditos, à produção nacional – indústria e agricultura e também ao comércio e setor financeiro nacionais; garantia de salário e de repouso remunerado; estímulo ao esporte e à cultura; incentivos ao Nordeste e apoio às vítimas da seca; colonização da Amazônia.
Era já, fundamentalmente, como já dissemos, o programa da revolução que seria deflagrada nove meses depois. Eleger Getúlio contra o prócer da oligarquia, imposto por Washington Luiz, seria a revolução. Se ela não se deu por essa via, foi exclusivamente pela resistência dessa oligarquia, que fraudou, escandalosamente, o resultado das eleições.
Assim perceberam os tenentes, com uma exceção, somando-se à campanha da Aliança Liberal, a mais ampla e profunda frente nacional e popular já formada até então no país, superando, nestes dois pontos – amplitude e profundidade – as que fizeram a Independência e a República. Formavam-na desde setores que antes tinham se subordinado à oligarquia cafeeira – de Minas, do Rio Grande do Sul finalmente unido por Getúlio após décadas de guerras e conflitos, da Paraíba, cujo governador, João Pessoa, era o candidato a vice-presidente – até o elemento autenticamente popular que eram os revolucionários de 22, 24 e da Coluna. Estes, com Getúlio, iriam vertebrar, política e ideologicamente a Aliança, da campanha eleitoral à revolução.
O que houve no dia do pleito, 1º de Março de 1930 – e o clima resultante – é sinteticamente retratado na resposta, ironicamente arrasadora, de Oswaldo Aranha, então governador interino do Rio Grande do Sul, ao arrogante telegrama de Washington Luiz comunicando a “eleição” do seu candidato:
“Presidente da República – Palácio do Catete – Rio. Agradeço o telegrama de Vossa Excelência, cujos termos farei publicar por virem tranquilizar a opinião pública do país, pela confirmação feita com a autoridade do supremo magistrado da República, de que ‘o brasileiro, consciente dos seus direitos, só será governado pelo eleito de sua vontade soberana’. Não era outra a nossa convicção quando nos empenhamos nesta luta eleitoral, confiantes na cultura e na civilização do nosso povo e dos seus governantes. Fechar as urnas, negar boletins, não instalar mesas, recusar fiscais, adulterar resultados, afugentar eleitores, comprar votos, falsear alistamento, invadir as mesas com policiais, arrebatar livros eleitorais e procurações de candidatos, fazer eleição antecipada, não aceitar votação em cartório, sonegar, enfim, ao cidadão o direito de votar ou forçá-lo contra a sua consciência, são fatos degradantes que verificados, tínhamos antecipadamente certeza que não influiriam no resultado do pleito, repugnando a qualquer caráter medianamente honesto e merecendo a condenação de todos os brasileiros. Tenho, infelizmente, de fatos similares, denúncias documentadas em relação a muitos Estados, especialmente São Paulo, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, Paraná e Sergipe (….). Estamos confiantes e tranquilos, desejosos de concorrer, com honestidade e firmeza políticas, para o êxito desta campanha cívica de grande alcance para a nossa civilização, como Vossa Excelência muito bem afirma, em seu telegrama. Correspondendo ao pedido de Vossa Excelência, transmito o resultado até o momento conhecido aqui: Getúlio Vargas, 278.321 votos e Júlio Prestes, 789, faltando alguns municípios e seções de outros. Aguardando as informações prometidas por Vossa Excelência, transmitirei tudo quanto possa interessar à apuração da verdade eleitoral nesta campanha”.
4
Estavam fechados os caminhos eleitorais para a mudança. Os meses seguintes seriam de luta intensa dentro da frente a respeito do que fazer: submeter-se ou, como queriam os tenentes – mas não só eles -, insurgir-se. A 1º de maio de 1930, Getúlio lança um manifesto, afirmando que cabe ao povo brasileiro “a solução da contenda”, isto é, o destino do Brasil.
O assassinato de João Pessoa, nos últimos dias de julho, iria cobrar uma decisão de todos os setores que tinham formado a Aliança Liberal. A partir de então, discutia-se não mais o que fazer, mas quando fazer – e como fazer.
Às 17 horas do dia 3 de outubro, a revolução estava nas ruas. No dia seguinte, pela manhã, os jornais divulgavam o manifesto de Getúlio:
“… qual a perspectiva que se nos desenha e que porvir nos espera, com o prosseguimento do atual estado de coisas? Um infinito Saara moral, privado de sensibilidade e sem acústica. O povo oprimido e faminto. O regime representativo golpeado de morte pela subversão do sufrágio popular. O predomínio das oligarquias e do profissionalismo político. As Forças Armadas, guardas incorruptíveis da dignidade nacional, constrangidas ao serviço de guarda-costas do caciquismo político. A brutalidade, a violência, o suborno, o malbarato dos dinheiros públicos, o relaxamento dos costumes, e coroando este cenário desolador, a advocacia administrativa a campear em todos os ramos da governação pública.
“Daí, como consequência lógica, a desordem moral, a desorganização econômica, a anarquia financeira, o marasmo, a estagnação, o favoritismo, a falência da justiça.
“Entreguei ao povo a decisão da contenda, e este, cansado de sofrer, rebela-se contra os seus opressores.
“Não poderei deixar de acompanhá-lo, correndo todos os riscos em que a vida será o menor dos bens que lhe posso oferecer.
“Estamos ante uma revolução para readquirir a liberdade, para restaurar a pureza do regime republicano, para a reconstrução nacional.
“Trata-se de um movimento generalizado, do povo fraternizando com a tropa, desde o Norte valoroso e esquecido dos governos, até o extremo Sul.
“Amparados no apoio da opinião pública, prestigiados pela adesão dos brasileiros que maior confiança inspiram dentro e fora do país, contando com a simpatia das Forças Armadas e a cooperação de sua melhor parte, fortes pela justiça e pelas armas, esperamos que a Nação reentre na posse de sua soberania, sem maior oposição dos reacionários, para evitar a perda inútil de vidas e bens, abreviar a volta do país à normalidade e a instauração de um regime de paz, harmonia e tranquilidade, sob a égide da lei”.
O regime da oligarquia ruiu como um edifício podre. Não havia mais, naquele momento, quem tivesse disposição ou achasse que valia a pena defendê-lo, diante do povo nas ruas e das tropas avançando.
Washington Luiz manteve-se durante quase um mês no território pleno da fantasia, a repetir que não havia qualquer problema realmente sério acontecendo no país, enquanto a revolução, em meio a uma explosão popular, ia do Sul, de Minas e do Nordeste em direção ao Rio. A concentração de forças governistas em Itararé rendeu-se depois de dois ataques preparatórios por parte das tropas do general Miguel Costa, antigo comandante da Coluna Prestes, e Getúlio entrou em São Paulo, abrindo pela primeira vez ao povo, que ocupava as ruas da cidade, as portas do Palácio dos Campos Elísios, símbolo do poder oligárquico.
No dia 20 de novembro, alguns dias depois de empossado no Palácio do Catete, comentando o embarque de Washington Luiz para o exílio, Getúlio escrevia em seu Diário:
“Bem amargas deveriam ser as reflexões do dr. Washington Luiz. Recordei-me que muito mais havia eu sofrido em torturas morais, pela quebra de amizades e compromissos resultantes da campanha da Aliança, e pelas perspectivas e ameaças que de futuro poderiam advir e tudo ser atribuído a mim, como responsável. E, afinal, depois de humilhar-me e quase suplicar para que os outros nada sofressem, sentindo que tudo era inútil, decidi-me pela revolução, eu, o mais pacífico dos homens, decidido a morrer. E venci, vencemos todos, triunfou a Revolução! Não permitiram que o povo se manifestasse para votar, e inverteram-se as cenas. Em vez de o sr. Júlio Prestes sair dos Campos Elísios para ocupar o Catete, entre as cerimônias oficiais e o cortejo dos bajuladores, eu entrei de botas e esporas nos Campos Elísios, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse do governo no Catete, com poderes ditatoriais. O sr. Washington Luiz provocou a tormenta, e esta o abateu. Dizem que o destino é cego. Deve haver alguém que o guie pela mão”.
Ou, como disse depois:
“… só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo, livrando-o da camarilha que o explorava, abater a hipocrisia, a farsa e o embuste”.
5
A Revolução de 1930 inaugurou o primeiro período de independência plena do Brasil desde o descobrimento. Foi, portanto, o mais importante, mais profundo e mais fecundo acontecimento de nossa História até os dias de hoje. Até então, todos os movimentos e revoluções havidos tinham conseguido livrar o país de algum bloqueio particular ao seu desenvolvimento, mais precisamente, de algum aspecto que naquele momento histórico se apresentava como o principal entrave ao progresso do país e de seu povo – porém sem remover o quadro fundamental de dependência no qual o país, em sua luta por se constituir como Nação, era bloqueado e sangrado.
Assim foi com a Independência, que quebrou definitivamente com o estatuto colonial, mas não com a dependência à Inglaterra, apesar das tentativas, tensões e conflitos que perpassam a nossa história no século XIX; assim tinha sido com a Abolição e a República, que tinham livrado o país das caducas relações escravagistas e do Estado – a monarquia – que era a expressão do domínio político dos senhores de escravos, mas ainda mantendo a dependência, que se refletiu nos obstáculos à industrialização nacional antes e depois da I Guerra.
A Revolução de 30 jogou por terra a dependência. Promoveu um desenvolvimento autônomo e autocentrado, com base nos recursos internos e sob controle nacional. Iniciou, deste modo, o maior período de crescimento da história do país – e o maior crescimento de um país capitalista no mundo durante os 50 anos seguintes.
Éramos, então, na lembrança do grande patriota Euzébio Rocha a respeito de uma frase de Getúlio (“O Brasil deve deixar de ser um país exportador de produtos de sobremesa”), um país produtor de sobrepastos – café, açúcar e cacau, principalmente. A Revolução de 30 nos tornou um país moderno, industrializado e poderoso.
O impressionante é que seu líder, ao entrar no Palácio do Catete para tomar posse no dia 10 de novembro de 1930, já demonstrava, em seu discurso, plena consciência desse papel único da revolução que chefiava:
“O movimento revolucionário, iniciado, vitoriosamente, a 3 de outubro, no Sul, Centro e Norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva que, até hoje, tivemos da nossa existência como nacionalidade. Em toda a nossa história política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas”.
E, mais adiante:
“Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional. Essa a nossa maior satisfação, a nossa maior glória e a base invulnerável sobre que assenta a confiança de que estamos possuídos para a efetivação dos superiores objetivos da Revolução Brasileira”.
No discurso de posse, depois de expor os motivos pelos quais tornou-se inevitável que “só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da Pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça – abater a hipocrisia, a farsa e o embuste”, Getúlio desenvolve seu programa e o sintetiza em 17 pontos:
“1. Concessão de anistia aos revolucionários de 1922, 1924 e da Coluna Prestes;
“2. Saneamento moral e físico da Nação, extirpando ou inutilizando os agentes da corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e educação sanitária;
“3. Difusão intensiva do ensino público, principalmente técnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estímulo e colaboração direta com os Estados, com a criação de um Ministério de Instrução e Saúde Pública;
“4. Instituição de um Conselho Consultivo, composto de personalidades eminentes e sinceramente integradas na corrente de ideias novas;
“5. Nomeação de comissões de sindicância para apurarem a responsabilidade dos governos depostos e de seus agentes, relativamente ao emprego do dinheiro público;
“6. Remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional;
“7. Reforma do sistema eleitoral, tendo em vista principalmente a garantia do voto;
“8. Reorganização do aparelho judiciário no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer o processo eleitoral em todas as suas fases;
“9. Feita a reforma eleitoral, consultar a Nação sobre a escolha dos seus representantes, com poderes amplos de constituintes;
“10. Consolidação das normas administrativas, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislação em vigor;
“11. Manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e suntuárias;
“12. Reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho atualmente rígido e inoperante, para adaptá-lo às necessidades do problema agrícola nacional;
“13. Intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das nossas sobras exportáveis;
“14. Rever o sistema tributário, de modo a amparar a produção nacional, abandonando o protecionismo dispensado às indústrias artificiais, que não utilizam matéria-prima do País, e mais contribuem para encarecer a vida e fomentar o contrabando;
“15. Instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural;
“16. Promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferência direta de lotes de terra de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade;
“17. Organizar um plano geral ferroviário e rodoviário, para todo o País, a fim de ser executado gradualmente, segundo as necessidades públicas e não ao sabor dos interesses de ocasião”.
É, como já observamos, todo um plano de reconstrução do país.
Em primeiro lugar, o distensionamento político, com a anistia.
Logo em seguida, a construção de um Estado Nacional, isto é, um Estado que representasse o conjunto do povo brasileiro, suas aspirações e sua vontade – e não mais as de uma oligarquia.
Como base e missão desse Estado, um novo modelo econômico, com a “policultura” – não mais a monocultura do café -, a exportação dos excedentes (“sobras exportáveis”), isto é, apenas do que sobrasse depois de supridas as necessidades internas, o amparo à produção nacional, o combate aos privilégios predatórios de empresas estrangeiras, a regulação das relações trabalhistas, a extinção do latifúndio e um plano geral de transportes – a comunicação entre os vários pontos do país era, ainda, realizada principalmente por mar; no interior do país, as duas rodovias maiores eram somente a Rio-Petrópolis e a antiga Rio-São Paulo, enquanto as ferrovias serviam apenas aos interesses dos exportadores de café.
6
Não foi nenhum mecanismo automático que nos fez ser o primeiro país do mundo, atingido pela crise, a recuperar-se. A redução da renda monetária nos EUA, por exemplo, foi de 50% no mesmo período e o país só a partir de 1934 voltou a crescer – para depois entrar em outra crise, na segunda metade da década de 30.
Um ano antes, em 1933, o Brasil já tinha voltado a crescer – a indústria, particularmente, desde 1931 -, com a produção para o mercado interno atingindo outra vez os níveis de antes da crise de 29. Em alguns setores, decisivos, esses níveis haviam sido amplamente superados: a produção de bens de capital cresceu 60% em relação a 1929. Em 1937, a produção industrial já era 50% maior que em 1929 e a produção destinada ao mercado interno, 40% maior.
Quanto à renda, em 1937 ela tinha aumentado em 20% – o que correspondia a mais 7% per capita. No mesmo período, a renda per capita dos EUA diminuiu.
A comparação com os EUA mostra que não foi, mesmo em 1937, qualquer melhora na situação dos países centrais que fez com que o Brasil superasse a crise, mas uma política nacional de desenvolvimento, conscientemente baseada na poupança interna e no mercado interno.
Significativo é o ritmo de crescimento em cada setor da economia. Nos 10 anos anteriores à revolução, apesar de todos os entraves à industrialização, a indústria havia crescido a um ritmo superior (3,5% ao ano) em relação à agricultura (3,3% ao ano). Nos 10 anos seguintes à Revolução de 30, a indústria cresceu 7,2% ao ano, enquanto a agricultura crescia a 2,8%. Nos primeiros cinco anos da década seguinte, até o fim do primeiro período em que Getúlio esteve na Presidência, a indústria cresceu 9,2% ao ano, enquanto a agricultura crescia 2,4%.
O que estava se fazendo era a construção de uma Nação e de um povo, de forma autônoma, independente – a única possível para as nações e para os povos.
O conjunto das outras medidas do governo no período 1930/1934, dá bem a ideia do que era, desde o seu começo, o projeto nacional de Getúlio e da Revolução de 30.
Já em novembro de 1930 foi criado o que foi chamado de “o ministério da revolução” – o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, com a função de coordenar todos os “fatores da produção” para o crescimento econômico. Em março do ano seguinte são decretadas a lei dos 2/3, que obrigava as empresas a empregarem 2/3 de brasileiros – essencial para a promoção da mão-de-obra do país, ou seja, dos trabalhadores brasileiros, a um novo patamar de qualificação, renda e participação no desenvolvimento – e a lei de sindicalização. A Previdência Social foi instituída em setembro de 1931. A jornada de 8 horas de trabalho, reivindicação e luta dos trabalhadores durante décadas, foi decretada em março de 1932.
Em maio de 1932, os impostos interestaduais, que transformavam os Estados em feudos econômicos, encarecendo os produtos e prejudicando a produção nacional, foram abolidos. Em junho, as sociedades anônimas foram regulamentadas.
Em abril de 1933, Getúlio assinou a Lei da Usura, estabelecendo limite máximo para os juros e o parcelamento no pagamento das hipotecas – desde a República Velha a maior parte dos empreendedores, tanto industriais quanto agrícolas, teve que hipotecar seus bens, situação agravada após 1929. No mesmo ano foi decretada a redução em 50% dos débitos dos agricultores.
A formação do Conselho Federal de Comércio Exterior, presidido pelo próprio Getúlio, foi a efetivação do planejamento na economia brasileira. Para desenvolver o país internamente e financiar a indústria nascente, era essencial equacionar o problema do comércio exterior, primeira fonte de recursos do desenvolvimento. O Conselho tornou-se, então, o órgão dirigente da economia brasileira. Toda a discussão sobre o caminho a seguir, teve por palco, inicialmente, este conselho, a tal ponto que em dezembro de 1937, logo após o Estado Novo, suas funções foram oficialmente ampliadas para que fizesse o papel do futuro Conselho de Economia Nacional, em formação. Na verdade, o que houve foi a formalização das funções que ele já exercia.
Foi no âmbito desse Conselho que Roberto Simonsen, o maior líder dos empresários brasileiros, pôde, finalmente, ver vitoriosa a posição que defendia desde a década de 20 contra os anglo-colonizados mentais, defensores da “vocação natural” do Brasil para exportar café, importar mercadorias inglesas e tomar empréstimos em Londres. Mais de 10 anos antes, Simonsen tinha declarado que “querer negar que o desenvolvimento e a consolidação do parque industrial brasileiro concorrem para o aumento da riqueza, prestígio, poder e formação de nossa própria raça, é desconhecer os mais comezinhos princípios da política econômica e social. A grande indústria, por toda parte do mundo em que se instala, traz como corolário a melhoria dos salários, o barateamento relativo do produto, o enriquecimento social e o aumento da capacidade de consumo”. Mas só a revolução de 30 e a política de Getúlio levariam à prática as formulações de Simonsen, com a sua intensa contribuição.
Em novembro de 1933, é abolida a chamada cláusula-ouro dos contratos do Estado com a Light, a Societé Anonyme du Gaz do Rio de Janeiro e outras empresas estrangeiras que monopolizavam os serviços públicos. Por essa cláusula, elas recebiam do Estado em ouro a metade do valor das tarifas, à cotação do mês de consumo. O extorsivo contrato com a Itabira Iron, empresa que a preços mesquinhos transportava montanhas de ferro brasileiro para o exterior, foi também rompido, no que foi o início do processo que conduziu à fundação da Companhia Vale do Rio Doce.
Desde maio de 1931 os serviços de rádio, telefonia e telegrafia passaram a ser concessões do Estado e os Correios e Telégrafos foram tornados públicos em janeiro de 1932. A aviação civil é regulamentada no mesmo mês.
Em abril de 1931 tinha sido feita a reforma do ensino superior, que instituiu a organização de universidades e não mais, como antes, de faculdades isoladas, preparando as condições para o desenvolvimento da pesquisa, cultura e ciência nacionais. Em junho do mesmo ano foi assinada a reforma ortográfica, que simplificava a língua escrita do país, tornando-a mais acessível ao povo, reforma a que a oligarquia havia resistido arduamente – e resistiria ainda, fazendo com que a Constituição de 1934 fosse ainda redigida na empolada e bastarda ortografia anterior.
Em fevereiro de 1932, é decretada a reforma eleitoral. Pela primeira vez na história do país é instituído o voto secreto, o direito das mulheres a votar, a representação classista no parlamento e a Justiça Eleitoral.
A 21 de abril de 1933, Getúlio tornou feriado nacional o dia do martírio de Tiradentes.
Uma questão decisiva para o destino do país e da revolução era a do fortalecimento das Forças Armadas. A República Velha tinha tornado o país uma colcha de retalhos, cada um dominado por uma oligarquia. Para isso, o Exército e demais Forças tinham sido marginalizadas, pois elas eram praticamente a única instituição que se identificava com a Nação, acima do poder local. Assim, o fortalecimento das Forças Armadas representava o próprio fortalecimento da unidade nacional. Sem isso, era impossível acabar completamente com os retalhos oligárquicos.
As medidas tomadas inicialmente, como a formação do Corpo de Fuzileiros Navais, o estabelecimento do Plano Geral de Ensino Militar, a reforma do Código de Justiça Militar, foram acompanhadas por intensos esforços para adquirir armamento necessário ao cumprimento da função do Exército e da Marinha. A II Guerra Mundial, com a nossa brava participação na campanha da Itália, mostraria o quanto esses esforços foram bem sucedidos.
7
A oligarquia apeada do poder e seus aliados, uma vez passada a perplexidade da derrota de 1930, passaram ativamente a conspirar. Quando, em maio de 1932, é marcada a eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, isso fez apressar os planos contrarrevolucionários.
É sintomático que depois da contrarrevolução de 1932 tenha-se tentado mascará-la com o rótulo do “constitucionalismo”. De 9 de julho de 1932 até a rendição em 2 de outubro do mesmo ano, a Constituição só foi lembrada na medida em que se pretendia voltar à anterior – à Constituição da República Velha. Essa era a única reivindicação “constitucionalista” da contrarrevolução – até mesmo porque as eleições para a Constituinte já haviam sido marcadas, dois meses antes, para o dia 3 de maio do ano seguinte.
Porém, no momento em que foram marcadas, tudo indicava uma esmagadora vitória eleitoral da revolução, pois o fraudulento sistema eleitoral anterior havia sido jogado ao lixo com a instituição do voto secreto, do direito de voto às mulheres e da Justiça Eleitoral.
Portanto, as eleições marcadas foram um motivo a mais para que a contrarrevolução se apressasse.
Tal foi o “constitucionalismo” de 1932. O que ele não admitia era uma Constituinte com maioria revolucionária – ou seja, o fim da Constituição que seu próprio autor, Rui Barbosa, havia considerado caduca já na primeira década do século.
O mesmo se pode dizer do suposto caráter “paulista” do movimento. Sem dúvida – e pelo menos nisso há alguma coerência, embora apenas aparente – a contrarrevolução, na época, foi apresentada pelos seus promotores como uma espécie de protesto de São Paulo contra supostas atitudes hostis do governo revolucionário. Em suma, a oligarquia apresentava o fato de não poder mais impor seus interesses particulares ao conjunto do país – vale dizer, o servilismo frente aos banqueiros ingleses e a socialização dos seus prejuízos com o café – como uma terrível hostilidade ao povo de São Paulo, o mesmo povo que em 1924 ela tinha bombardeado com artilharia pesada – e, mesmo assim, não desistira de lutar pela revolução; o mesmo povo que havia saído às ruas duas vezes – na campanha e na revolução de 30 – para saudar Getúlio.
Ainda que pessoas de boa fé – que depois deram mostras de sua capacidade e patriotismo cooperando com Getúlio – hajam sido envolvidas, permanece o julgamento do líder da revolução ao comentar as despesas que a derrota da contrarrevolução demandou, numa situação em que as finanças públicas mal começavam a se recuperar: “Revolução Constitucionalista? Não, porque a data das eleições estava marcada e os tribunais eleitorais já constituídos! As reivindicações da autonomia paulista? Tampouco. Tudo já fora atendido, até mesmo a mudança do comando da Região. Tão satisfeitos estavam eles com o seu governo que o mantiveram. A Revolução de São Paulo foi um movimento reacionário para se apoderar do governo, falsamente rotulado de constitucionalista”.
Com efeito, Getúlio e o governo revolucionário, após uma série de escaramuças e intrigas políticas contra o interventor do Estado – João Alberto, que substituíra Prestes à frente do movimento tenentista -, havia concordado, numa tentativa de pacificação, em entregar o governo de São Paulo a representantes da oligarquia.
Sob esse governo estadual, nomeado pelo próprio Getúlio, foi organizada, promovida e empreendida a contrarrevolução. Ainda que, com sua costumeira tranquilidade, Getúlio não tenha usado a palavra, tratava-se de um ato de traição, de uma tentativa de depor o governo revolucionário para restaurar o antigo regime, rompendo com os compromissos assumidos de público, na ilusão de que outros Estados se somariam à intentona, e tendo por base militar o envolvimento da Força Pública contra as Forças Armadas. Quando a própria Força Pública, em 2 de outubro de 1932, depôs o governo estadual, a paz foi, no mesmo dia, selada.
A convocação da Constituinte, portanto, não era o objetivo da contrarrevolução. Era o seu motivo, diante de uma derrota iminente que poderia acabar definitivamente com qualquer pretensão de restaurar a situação anterior – ou seja, de alojar outra vez na cabeça do Estado a burguesia cafeeira, cujo poder político agora limitava-se ao território de sua base econômica, mas mesmo em São Paulo estava em franco declínio. Em suma, um estertor de agonizante, ainda que não o último.
Quanto ao levante da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, o mínimo que se pode dizer é que foi uma tentativa de derrubar o poder que emergira da mais autêntica, patriótica e popular revolução já acontecida no país. Foi o resultado de uma série de equívocos, iniciados antes mesmo da campanha eleitoral de Getúlio à Presidência, em 1930. O fato de brasileiros que amavam o seu país e o seu povo, com abnegação enérgica e dispostos a sacrifícios imensos, inclusive o da própria vida, terem participado dela, só faz mais trágica essa série de equívocos.
Como se sabe, Prestes foi o único dos “tenentes” a não participar da campanha da Aliança Liberal, o que provocou seu isolamento e substituição como presidente do movimento tenentista por um dos seus comandados na Coluna, João Alberto. Numa tensa reunião em Buenos Aires com seus companheiros, condicionara qualquer apoio à Aliança Liberal ao compromisso público com um programa cujos itens iniciais eram o cancelamento da dívida com os banqueiros ingleses e a expropriação do latifúndio, o que inviabilizaria de pronto a própria candidatura da Aliança Liberal, garantindo de antemão a permanência da burguesia cafeeira e sua política de destruição do país, com a vitória de seu candidato, quase certamente como candidato único.
Prestes havia sido contraditado, na reunião, por todos, e principalmente por Siqueira Campos – o segundo dos “tenentes” em prestígio e popularidade, devido ao seu heroísmo em 1922, 1924 e na Coluna. Siqueira faleceu na volta ao Brasil, num trágico desastre de avião. Posteriormente, o adjunto de Prestes no estado-maior da Coluna, Juarez Távora, que não pudera estar em Buenos Aires, também dirigiu carta a Prestes no mesmo sentido.
Apesar de não ter apoiado a candidatura de Getúlio, Prestes foi convidado por este para ser o comandante militar da Revolução de 30. Depois de encontrar-se com Getúlio, condicionou outra vez a sua aceitação ao mesmo programa. Depois de ouvir Prestes silenciosamente por uma hora, Getúlio comentou: “o senhor tem a eloquência da convicção”. No entanto, a eloquência não bastava. O chefe de estado-maior das tropas revolucionárias seria o tenente-coronel Góes Monteiro.
Significativa é a exigência feita por Prestes: o cancelamento da dívida externa foi realizado, na prática, pelo governo revolucionário, sob forma de suspensão dos pagamentos, prorrogação dos prazos e, posteriormente, recompra dos papéis da dívida por um preço ínfimo – 10% do seu valor nominal. Quanto à reforma agrária, ela constou, desde o início, no conteúdo do programa da Revolução – inclusive no discurso de posse de Getúlio, a 3 de novembro de 1930 –, é verdade que sem palavras supostamente muito radicais. Um dos obstáculos posteriores à sua efetivação, consistiu na recusa de apoio ao governo revolucionário – e certamente não seria dos latifundiários que poderia vir esse apoio.
Naquele momento, a exigência de Prestes de que a revolução anunciasse em seu programa que aquelas eram as duas primeiras medidas que realizaria logo após a tomada do poder, transformava a possibilidade de vitória num aborto antecipado, pois significaria a ruptura da frente nacional formada, com o abandono dela pelos seus setores menos conscientes, que governavam o segundo Estado em importância, Minas Gerais, e a Paraíba, do candidato a vice-presidente, João Pessoa, e, com ela, o Nordeste.
Esses erros tinham como base a avaliação de que o movimento de 30 era principalmente oligárquico – uma briga interna das oligarquias – e fundamentalmente uma briga entre o imperialismo inglês e o imperialismo norte-americano.
Se a recusa de Prestes em 1930 foi um equívoco canhestro, 1935, quando já se tinha decretado a suspensão das transferências da dívida externa e uma série de medidas em prol dos trabalhadores e do desenvolvimento, foi um desastre. A avaliação feita nessa época do governo de Getúlio é tão fora da realidade quanto a avaliação da correlação de forças que levou aos acontecimentos de Natal, Recife e Rio de Janeiro – sendo uma a consequência da outra.
Em síntese, a política da ANL foi expressa por Prestes, em sua carta de adesão: “quero combater, lado a lado com todos os que não estão vendidos ao imperialismo e desejam lutar pela libertação nacional do Brasil, com todos os que queiram acabar com o regime feudal em que vegetamos e defender os direitos democráticos que vão sendo sufocados pela barbárie fascista ou fascistizante”.
O governo vindo da revolução, que há cinco anos tomava todas as medidas para industrializar o país, é “o regime feudal”; os direitos democráticos que haviam sido instituídos precisamente por aquela revolução, e que nunca tinham existido antes dela, “vão sendo sufocados, etc.”; e é evidente a quem ele se refere como “vendidos ao imperialismo”: exatamente aos homens, muitos dos quais ele conhecia muito bem, que acabavam de fazer com que o país rompesse com a subordinação ao imperialismo.
Quanto ao fascismo, muito cedo Getúlio e o governo revolucionário estiveram atentos a ele. Desde 1932, a atividade nazi-fascista no país foi colocada sob vigilância e reprimida. O conflito com o embaixador alemão Karl Ritter, declarado persona non grata depois da proscrição do Partido Nazista do Brasil e da proibição do ensino básico em outras línguas que não o português, é apenas o incidente mais conhecido.
Quando o embaixador de Hitler compareceu ao Catete para dizer que o partido nazista “não poderia ser comparado com qualquer outro porque era a própria Alemanha oficial, e que Hitler defendia os alemães fora do seu território”, citando a Áustria recém-anexada como exemplo e fazendo a ameaça de que o convênio comercial do Brasil com a Alemanha “não poderia ter andamento sem que se resolvesse esse caso”, ouviu de Getúlio uma resposta que não esperava:
“Respondi-lhe (….) que a Alemanha era uma nação poderosa perante a qual o Brasil era um país mais fraco, mas que por isso mesmo a nossa suscetibilidade nacional era maior: que nós éramos uma nação soberana, não éramos colônia de ninguém, e que nada poderíamos aceitar que tivesse um caráter de imposição”.
Durante algum tempo o integralismo, apesar de germanófilo (como se chamavam então os simpatizantes do nazi-fascismo), era um movimento nacional, conseguindo ganhar espaço mimetizando, ainda que superficialmente, o programa da revolução – o de construir um Brasil independente, o que implicava em enfrentar o imperialismo inglês, mas não imediatamente o seu rival alemão, com o qual não tínhamos de romper com uma dominação de décadas.
Mais ainda, devido ao seu anticomunismo histérico, o fato do PCB ter-se colocado na oposição e, inclusive, ter empreendido uma tentativa de derrubá-lo, fez com que os integralistas se aproximassem do governo revolucionário. Alguns próceres do integralismo chegaram a pensar em tomar o governo “por dentro”.
Assim se explica o seu crescimento e que brasileiros ilustres, que depois mostrariam um grande valor, tenham participado do integralismo. Todos estes afastaram-se da direção integralista quando, frustrada em seus planos de chegar ao poder, ela partiu para o putsch, conspirando com a oligarquia, que , com o Estado Novo, tinha sido derrotada novamente a 10 de novembro de 1937.
É justo ressaltar – até porque é fato muito pouco conhecido – que, por ocasião do atentado integralista ao Palácio Guanabara, os comunistas presos em virtude dos acontecimentos de 1935 solidarizaram-se com Getúlio e o governo, enviando mensagem de apoio ao chefe da Nação.
8
A Constituição de 1934 consagrou em seu texto as conquistas da Revolução de 30. No entanto, a oligarquia derrotada conseguiu, em boa parte, neutralizá-las, em especial as que se referiam à capacidade do governo revolucionário de promover o desenvolvimento.
Naturalmente, como já tinha sido observado desde a Revolução Inglesa e a Revolução Francesa, uma antiga classe dominante, mesmo depois de derrotada, conserva por longo tempo uma força e um poder que as novas classes, mesmo estando agora à testa do Estado, ainda demorarão a conseguir: a força do hábito, da rotina – e o poder econômico.
O rompimento da frente nacional que sustentara a Revolução pelas correntes chefiadas por Borges de Medeiros – depois por Flores da Cunha – no Rio Grande do Sul e por Artur Bernardes em Minas Gerais, inclusive com apoio à contrarrevolução de 32, forçou a passagem ao regime de 34, fruto de uma situação onde a oligarquia não tinha mais força para dominar o país, mas onde o novo poder não tinha ainda forças suficientes para liquidar de vez com ela e o que restava de seu domínio.
O rompimento de Borges de Medeiros, Bernardes e depois Flores da Cunha, e sua adesão aos inimigos de 30, representou a resistência dos setores mais atrasados da frente ao avanço da revolução, avanço este que perceberam, com justa razão, como uma ameaça ao poder regional das oligarquias, o coronelismo que predominou na República Velha. Ao fim e ao cabo, esses setores eram também expressões oligárquicas, ainda que dissidentes diante da imposição absolutista da candidatura Júlio Prestes.
Tratava-se agora de construir um Estado Nacional assentado numa economia nacional, e é isso o que provocou o rompimento dos setores mais atrasados, num momento em que Getúlio, e o que havia de mais avançado na frente revolucionária, ainda não tinham se consolidado completamente – da mesma forma que os trabalhadores e empresários industriais ainda não eram suficientemente fortes para predominar completamente sobre a ganga oligárquica.
Ao perceber o que se desenhava, Getúlio, como mostram todos os documentos disponíveis, foi forçado a mudar o seu projeto inicial de retirar-se da vida pública, passando a Presidência a um sucessor. Era preciso, outra vez, enfrentar a contrarrevolução – e não havia ninguém mais em condições de continuar liderando o processo revolucionário.
A publicação de seu Diário demonstrou, de uma vez por todas, a absoluta sinceridade de sua afirmação pública no dia da instalação do Estado Novo: “Tenho suficiente experiência das asperezas do poder para deixar-me seduzir pelas suas exterioridades e satisfações de caráter pessoal. Só acedi em sacrificar o justo repouso a que tinha direito, ocupando a posição em que me encontro, com o firme propósito de continuar servindo à Nação”.
Apesar de desejar e, inclusive, planejar o “justo repouso”, prevalece nele o sentimento de que “o homem de Estado, quando as circunstâncias impõem uma decisão excepcional, de amplas repercussões e profundos efeitos na vida do país, acima das deliberações ordinárias da atividade governamental, não pode fugir ao dever de tomá-la, assumindo perante a sua consciência e a consciência dos seus concidadãos, as responsabilidades inerentes à alta função que lhe foi delegada pela confiança nacional”.
A atividade espantosa de Getúlio nos anos que vão de 1934 a 1937, corresponde à exigência de enfrentar a contrarrevolução no terreno do regime parido pela Constituinte de 1934.
Antes da promulgação da Constituição, ele decreta o fim das chamadas “luvas” – uma forma de extorsão à iniciativa privada empreendedora – nos contratos de locação para estabelecimentos industriais e comerciais. Apressa o reaparelhamento das Forças Armadas e, em julho, antes do dia 17 – data de promulgação da nova Constituição – decreta o novo Código de Minas, elaborado por Juarez Távora; o Código de Águas; a lei que estabelece uma nova estrutura sindical; a reforma do Código de Justiça Militar.
São medidas de defesa dos trabalhadores, dos empresários, do território nacional e das riquezas naturais. Contra a resistência acirrada dos representantes do velho regime, ele tenta continuar a obra revolucionária, criando, ainda em 1934, a Comissão de Estradas de Rodagem Federais (depois transformada no DNER); dá início às pesquisas para extrair-se derivados de petróleo do xisto betuminoso – o petróleo não havia ainda sido descoberto no Brasil; implementa os estudos para a fundação da FAB, premiando, inclusive, o construtor do primeiro avião nacional.
Em julho de 1936, consegue impor o “reembolso dos impostos alfandegários para as matérias-primas necessárias à produção de mercadorias em condições de concorrer fora do país com as similares estrangeiras”, dando uma nova amplitude à industrialização: não é apenas o mercado interno que a produção nacional deve abastecer, mas é a própria pauta de exportações, ainda dominada pelos produtos agrícolas, que deve ser modificada.
No mesmo ano, funda a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, destinando recursos específicos ao financiamento da produção nacional.
Mas era evidente que a reação conspirava para a retomada do poder. Do ponto de vista externo, mais uma vez os bancos de Londres se açodam. Já em setembro de 1934, em virtude do aumento de nosso comércio com os EUA, os banqueiros enviam um representante a Getúlio para “manifestar seus receios por qualquer operação com os Estados Unidos que reduzisse nossos recursos para atender aos credores ingleses”.
Do ponto de vista da política interna, como Getúlio dirá na Mensagem à Nação de 10 de novembro de 1937, “transformada a Assembleia Nacional Constituinte em Câmara dos Deputados, para elaborar, nos precisos termos do dispositivo constitucional, as leis complementares constantes da Mensagem do Chefe do Governo Provisório, de 10 de abril de 1934, não se conseguira, até agora, que qualquer delas fosse ultimada, malgrado o funcionamento quase ininterrupto das respectivas sessões. Nas suas pastas e comissões se encontram, aguardando deliberação, numerosas iniciativas de inadiável necessidade nacional. Não deixaram, entretanto, de ter andamento e aprovação as medidas destinadas a favorecer interesses particulares, algumas, evidentemente, contrárias aos interesses nacionais e que, por isso mesmo, receberam veto do Poder Executivo”.
Em 1937, em meio à sabotagem externa e interna, Getúlio nacionalizou o setor de seguros, antiga fonte de espoliação por parte dos bancos ingleses, que eram os seguradores de nossa frota e dos produtos embarcados para exportação. Porém, não consegue implementar as medidas práticas que efetivariam a nacionalização, das quais a principal é a fundação do Instituto de Resseguros do Brasil.
O ano de 1937 foi de intensa luta política. As forças derrotadas em 30 e 32 organizavam o que pensavam ser uma marcha batida para a retomada do poder, seja através da candidatura de Armando Sales de Oliveira, seja pelas armas, servindo-se ou não dos integralistas. Estes apresentam a candidatura de seu “chefe”, Plínio Salgado, que assume cada vez mais o papel de linha auxiliar da candidatura da oligarquia. Não há um líder que possa substituir Getúlio para derrotar o poder econômico nas eleições.
A luta se trava, cada vez mais, em torno da política econômica da revolução. Além da nacionalização dos seguros, o projeto de incentivo à produção de trigo – até então inteiramente importado – foi sabotado dentro e fora do Congresso. A encampação do Lloyd – ainda nossa principal via de comunicação interna – enfrentou resistências só a custo dobradas.
Mas ele tenta prosseguir em seu trabalho, fundando a Universidade do Brasil (atual UFRJ), que servirá de modelo para a estrutura de universidades públicas e federais do país; realizando a eletrificação da Central do Brasil, para tirá-la da dependência do carvão inglês; assinando a Lei de Reajustamento dos Funcionários Civis; e elaborando o projeto para a previdência dos servidores – mas não consegue aprová-lo.
A situação externa também se agrava. Com o recrudescimento da crise nos países centrais, as exportações brasileiras entraram outra vez em queda. O Brasil, que a partir de 1934 havia retomado as transferências aos bancos externos por conta da dívida herdada da República Velha, passou a ser outra vez sangrado em seus recursos para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, os países centrais preparam-se para a guerra. O fascismo avança na Europa, diante da pusilanimidade inglesa e francesa que iria em pouco tempo levar, nas palavras de Churchill, à colheita da tempestade.
A quantidade de inverdades, distorções e infâmias que já se disseram e escreveram sobre o 10 de novembro de 1937 e o Estado Novo é apenas sintomática de seu cunho profundamente revolucionário. Nisso – e não só nisso – a Revolução de 30 está perfeitamente integrada a todas as revoluções, anteriores e posteriores.
Desde 1930 que o Brasil tinha um verdadeiro Estado Nacional: à sua frente, estava um representante da Nação. Mas devido à resistência que a revolução ainda não pudera vencer, externa e internamente, esse Estado ainda conservava uma quantidade apreciável de deformações que nada mais eram do que os resquícios – que não eram pequenos – do antigo Estado oligárquico, viciado pela dependência à matriz londrina.
O Estado Novo, ao quebrar de vez com essa resistência quando ela ameaçava transformar-se em assalto ao poder e restauração do antigo regime, pôde, naquele momento, levar até o fim a obra iniciada em 30. Foi tal a profundidade com que isso se fez que depois dele, com a implantação de uma sólida base industrial no país, a própria oligarquia cafeeira deixou de existir como classe significativa – ainda que sobrevivências ideológicas tenham persistido – o mesmo acontecendo com a subordinação ao imperialismo inglês que marcara nossa história durante décadas.
Os motivos que tornaram o Estado Novo necessário foram conscientes desde o início, e só alguns contratempos posteriores da história de nosso país é que permitiram que tantas fantasias, aliás muito interessadas, fossem alçadas à categoria de conhecimento histórico.
Esses motivos foram declarados explicitamente na mensagem de Getúlio à Nação na noite do dia 10 de novembro de 1937. Nada tinham a ver com algum “plano Cohen”, nenhuma rebelião “comunista” forjada como pretexto. A revolução não precisava de pretextos.
Apenas, como disse Getúlio em sua Mensagem, “quando os meios de governo não correspondem mais às condições de existência de um povo, não há outra solução senão mudá-los, estabelecendo outros moldes de ação”.
A Mensagem de 10 de novembro de 1937 é um dos documentos mais importantes de nossa História, só comparável à Carta-Testamento, do próprio Getúlio. É uma denúncia fundamentada dos inimigos do povo e do país, das forças contrarrevolucionárias, da oligarquia e do capital financeiro inglês, e o anúncio das medidas necessárias para que o Brasil superasse a difícil situação em que se encontrava. É um salto de qualidade no processo revolucionário, entravado a partir de 1934:
“Tanto os velhos partidos, como os novos em que os velhos se transformaram sob novos rótulos nada exprimiam ideologicamente, mantendo-se à sombra de ambições pessoais ou de predomínios localistas, a serviço de grupos empenhados na partilha dos despojos e nas combinações oportunistas em torno de objetivos subalternos”.
E ele aborda a questão sucessória:
“Aí está o problema da sucessão presidencial, transformado em irrisória competição de grupos, obrigados a operar pelo suborno e pelas promessas demagógicas, diante do completo desinteresse e total indiferença das forças vivas da Nação. Chefes de governos, capitaneando desassossegos e oportunismos, transformaram-se, de um dia para outro, à revelia da vontade popular, em centros de decisão, cada qual decretando uma candidatura como se a vida do país, na sua significação coletiva, fosse simples convencionalismo, destinado a legitimar as ambições do caudilhismo provinciano”.
Aprofundando sua denúncia da oligarquia, Getúlio desmascara o suposto apego à lei dos seus representantes, já verificado em 1932:
“Os preparativos eleitorais foram substituídos, em alguns Estados, pelos preparativos militares, agravando os prejuízos que já vinha sofrendo a Nação, em consequência da incerteza e instabilidade criadas pela agitação facciosa. O caudilhismo regional, dissimulado sob aparências de organização partidária regional, armava-se para impor à Nação as suas decisões, constituindo-se, assim, em ameaça ofensiva à unidade nacional”.
Denunciava, portanto, o formalismo cínico, que em última instância não recusaria em recorrer ao golpe aberto – como o apoio ao motim integralista demonstraria logo em seguida. Evidenciava também o golpe encoberto sob uma capa de democracia tão formal quanto falsa, que pretendia impor outra vez a subjugação ao povo, através da deformação imposta pelo poder econômico às conquistas democráticas da Revolução de 30:
“O sufrágio universal passa, assim, a ser instrumento dos mais audazes e máscara que mal dissimula o conluio dos apetites pessoais e de corrilhos. Resulta daí não ser a economia nacional organizada que influi ou prepondera nas decisões governamentais, mas as forças econômicas de caráter privado, insinuadas no poder e dele se servindo em prejuízo dos legítimos interesses da comunidade”.
Esse era o caráter da candidatura engendrada pela oligarquia, a candidatura Armando Sales Oliveira, caráter que tinha se tornado explícito à medida que a contrarrevolução percebia as dificuldades para restaurar o seu domínio:
“Ainda ontem, culminando nos propósitos demagógicos, um dos candidatos presidenciais mandava ler da tribuna da Câmara dos Deputados documento francamente sedicioso e o fazia distribuir nos quartéis das corporações militares, que, num movimento de saudável reação às incursões facciosas, souberam repelir tão aleivosa exploração, discernindo, com admirável clareza, de que lado estavam, no momento, os legítimos reclamos da consciência brasileira”.
Depois de assim descrever a situação política, Getúlio analisou as suas origens, fazendo o balanço da história de décadas do domínio oligárquico interrompido em 1930:
“Considerando, de frente e acima de formalismos jurídicos a lição dos acontecimentos, chega-se a uma conclusão iniludível, a respeito da gênese política das nossas instituições: elas não corresponderam, desde 1889, aos fins para que se destinavam. Um regime que dentro dos ciclos prefixados de quatro anos, quando se apresentava o problema sucessório presidencial, sofria tremendos abalos, verdadeiros traumatismos mortais, dada a inexistência de partidos nacionais e de princípios doutrinários que exprimissem as aspirações coletivas, certamente não valia o que representava, e operava, apenas, em sentido negativo”.
Como consequência disso, estava a necessidade e o sentido da Revolução de 30, cuja continuidade era o significado do Estado Novo:
“Numa atmosfera privada de espírito público, como essa em que temos vivido, onde as instituições se reduzem às aparências e aos formalismos, não era possível realizar reformas radicais sem a preparação prévia dos diversos fatores da vida social”.
O Estado Novo foi, então, declaradamente, o instrumento político da revolução, frente aos “ônus e dificuldades que o Executivo terá que enfrentar para resolver diversos problemas de grande relevância e de graves repercussões, visto afetarem poderosos interesses organizados, interna e externamente. Compreende-se, desde logo, que me refiro, entre outros, aos da produção cafeeira e regularização da nossa dívida externa”.
Getúlio passa, então, à situação econômica do país e às medidas imprescindíveis para resolvê-la:
“O governo atual herdou os erros acumulados em cerca de vinte anos de artificialismo econômico, que produziram o efeito catastrófico de reter estoques e valorizar o café, dando em resultado o surto da produção noutros países, apesar dos esforços empreendidos para equilibrar, por meio de cotas, a produção e o consumo mundial da nossa mercadoria básica.
“No concernente à dívida externa, o serviço de amortização e juros constitui questão vital para a nossa economia. Enquanto foi possível o sacrifício da exportação de ouro, afim de satisfazer as prestações estabelecidas, o Brasil não se recusou a fazê-lo. É claro, porém, que os pagamentos, no exterior, só podem ser realizados com o saldo da balança comercial. Sob a aparência de moeda, que vela e disfarça a natureza do fenômeno de base nas relações econômicas, o que existe, em última análise, é a permuta de produtos. A transferência de valores destinados a atender a esses compromissos pressupõe, naturalmente, um movimento de mercadorias do país devedor para os seus clientes no exterior, em volume suficiente para cobrir as responsabilidades contraídas. Nas circunstâncias atuais, dados os fatores que tendem a criar restrições à livre circulação das riquezas no mercado mundial, a aplicação de recursos em condições de compensar a diferença entre as nossas disponibilidades e as nossas obrigações só pode ser feita mediante o endividamento crescente do país e a debilitação da sua economia interna”.
“A gravidade da situação que acabo de descrever em rápidos traços está na consciência de todos os brasileiros. Era necessário e urgente optar pela continuação desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil”.
Anuncia, então, a suspensão novamente das remessas, retomadas em 1934, aos bancos estrangeiros, que sangravam o país, desviando os recursos do desenvolvimento e impondo outra vez a estagnação econômica:
“Não é demais repetir que os sistemas de cotas, contingenciamentos e compensações, limitando, dia a dia, o movimento e volume das trocas internacionais, têm exigido, mesmo nos países de maior rendimento agrícola e industrial, a revisão das obrigações externas. A situação impõe, no momento, a suspensão do pagamento de juros e amortizações, até que seja possível reajustar os compromissos sem dessangrar e empobrecer o nosso organismo econômico. Não podemos por mais tempo continuar a solver dívidas antigas pelo processo ruinoso de contrair outras mais vultosas, o que nos levaria, dentro de pouco, à dura contingência de adotar solução mais radical. As nossas disponibilidades no estrangeiro, absorvidas, na sua totalidade, pelo serviço da dívida e não bastando, ainda assim, às suas exigências, dão em resultado nada nos sobrar para a renovação do aparelhamento econômico, do qual depende todo o progresso nacional”.
Em linhas gerais, as tarefas mais urgentes para a “renovação do aparelhamento econômico” nacional, uma vez resolvidos os problemas da dívida externa e da política do café, foram também estabelecidas na mensagem – e nos anos posteriores seriam executadas metodicamente. São as medidas iniciais de um plano para um país imenso, pleno de riquezas naturais mas ainda mal conhecido e pouco integrado economicamente, com o objetivo de remover os entraves à expansão do mercado interno – vital para a sobrevivência e crescimento da indústria nacional – e reduzir a dependência das importações de máquinas, equipamentos e aço:
“Precisamos equipar as vias férreas do país, de modo a oferecerem transporte econômico aos produtos das diversas regiões, bem como construir novos traçados e abrir rodovias, prosseguindo na execução do nosso plano de comunicações, particularmente no que se refere à penetração do hinterland e articulação dos centros de consumo interno com os escoadouros de exportação. Essas realizações exigem que se instale a grande siderurgia, aproveitando a abundância de minério, num vasto plano de colaboração do governo com os capitais estrangeiros que pretendam emprego remunerativo, e fundando, de maneira definitiva, as nossas indústrias de base, em cuja dependência se acha o magno problema da defesa nacional”.
É para essas tarefas e objetivos que Getúlio conclamou o povo brasileiro:
“Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: – na sua autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas e externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino”.
A política anunciada na Mensagem de novembro de 1937 foi concretizada por duas medidas de fundo: a suspensão das transferências aos bancos externos e o fim do “sistema de valorizações artificiais de compra para queima que tinha o Tesouro fornecendo dinheiro ao Departamento Nacional do Café” – ambas colocadas em prática imediatamente.
Logo em seguida, em dezembro de 1937, o Conselho Federal de Comércio Exterior teve suas atribuições ampliadas, de forma a exercer as funções do Conselho de Economia Nacional, até que este fosse formado. Constituía-se assim um órgão central de planificação, com vistas a edificar economicamente o país. O Plano Quinquenal que começou a ser elaborado, já em nível ministerial, em agosto do ano seguinte, concretizou, pela primeira vez de forma sistemática, o planejamento econômico – a independência do país frente às forças cegas e catastróficas que naquele momento açoitavam o mercado mundial e os países capitalistas.
Do ponto de vista do trabalho, toda uma série de medidas foram tomadas no sentido de dotar os trabalhadores de condições para participar do esforço e usufruir dos resultados do crescimento econômico. A lei do salário-mínimo, estabelecendo condições dignas de subsistência – portanto, tornando ilegais, perante o Estado e a Nação, as condições indignas de subsistência – foi decretada no 1º de maio de 1938, juntamente com a isenção de impostos de transmissão na aquisição de terrenos para a construção de casas para operários; em junho, Getúlio iniciou um programa para a construção de pequenos teatros nos bairros populares; no mesmo mês são tomadas medidas para evitar a alta do preço da carne e, em outubro, é lançado um plano de barateamento do custo de vida, com a construção de mercados para eliminar os intermediários entre o produtor e o consumidor; em dezembro, foram publicadas as leis de proteção à família: estímulo ao casamento, abono às famílias com muitos filhos, criação de instituições de amparo à maternidade e à infância; em maio de 1939, tornou-se obrigatório para as empresas com mais de 500 empregados a instalação de refeitórios e a realização de cursos de aperfeiçoamento profissional; o Conselho Nacional do Trabalho foi formado em junho do mesmo ano; a unicidade sindical foi conquistada no mês seguinte.
Todo o edifício – o mais avançado em um país capitalista – da nossa legislação trabalhista, posteriormente reunida na Consolidação das Leis do Trabalho, incluindo o descanso semanal remunerado, as férias e a licença-gestante, ao possibilitar que a maior parte da população aumentasse sua participação na renda nacional em crescimento, teve como consequência também a expansão de nosso mercado interno, desaguadouro natural dos produtos da indústria nacional, sem o qual ela não poderia sobreviver e, ao mesmo tempo, a liberação, em boa parte, da agricultura de sua dependência anterior do mercado externo.
No sentido em que apontou Roberto Simonsen, o governo revolucionário implementou uma enérgica política destinada a prover a indústria de uma infraestrutura, com o aproveitamento de nossos recursos naturais: em junho de 1938, Getúlio supervisionou as experiências com o “coque” nacional, com o objetivo de tornar o país independente das importações de carvão inglês, o que era essencial não só para as ferrovias e sua ampliação, mas também para o estabelecimento da grande siderurgia; em agosto, determinou ao Conselho Técnico de Economia e Finanças os estudos para a construção de uma grande siderúrgica e formou o Conselho Nacional do Petróleo, à frente do qual estará o general Horta Barbosa; em janeiro do ano seguinte, após a descoberta do petróleo em Lobato, na Bahia, a área é declarada Reserva Petrolífera Nacional.
Nesse mesmo mês de 1939, Getúlio lançou o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional, constituído por: “1. Instalação da indústria de base, sobretudo a siderurgia; 2. Execução de obras públicas de infraestrutura; 3. Provimento das Forças Armadas”.
Em junho, começou o plano para a eletrificação do país. Para realizar essa obra gigantesca era necessário democratizar o Estado e dotá-lo de todos os mecanismos e instâncias de intervenção adequadas a essa finalidade.
Assim, além de levar à prática as decisões que tinham sido bloqueadas entre 1934 e 1937, se procedeu à reforma da Justiça e à instalação do Tribunal de Contas; à instituição de Conselhos com a participação paritária das entidades dos trabalhadores, para gerir os institutos de previdência pública; à reestruturação do Exército, dando-lhe condições de exercer sua função de força de defesa terrestre nacional; à implantação da Aviação Naval; à completa reforma do Ministério da Agricultura, com a criação do Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas, dos serviços de Publicidade Agrícola, de Economia Rural, Florestal, de Meteorologia, do Departamento de Administração e da Divisão de Terras e Colonização.
9
Getúlio tinha, há muito, uma posição firmada sobre o nazi-fascismo. Era o mesmo homem que, aos 35 anos de idade, declarou, ao fim da I Guerra, em 1918: “toda violência é inútil, toda opressão passageira, toda tirania produtora de ódios. Só há uma força permanente e capaz de construir – é o amor”.
Como já mostramos, o combate ao nazismo dentro do Brasil começou antes da guerra, indo até mesmo à expulsão do embaixador de Hitler do país.
Não por acaso, os submarinos alemães escolheram como um dos seus alvos os navios mercantes brasileiros.
Mesmo assim, pretende-se que o discurso de Getúlio no encouraçado Minas Gerais, por ocasião das comemorações da Batalha de Riachuelo, em junho de 1940, teria revelado “simpatia” pelo nazismo.
Além do esclarecimento escrito de próprio punho por Getúlio, divulgado logo em seguida à repercussão – como ele observou, os ataques principais vieram da imprensa inglesa, o que explica o charivari dos seus vassalos na imprensa local – absolutamente nada no conteúdo do discurso tem alguma coisa a ver com isso.
Trata-se de um libelo anti-imperialista, e dos mais contundentes já pronunciados – na verdade, esse é o problema que viram nele os seus detratores, que, exatamente por isso, não gostaram do que ouviram.
Nas palavras de Getúlio, em junho de 1940:
“A economia equilibrada não comporta mais o monopólio do conforto e dos benefícios da civilização por classes privilegiadas. A própria riqueza já não é, apenas, o provento de capitais sem energia criadora que os movimente; é trabalho construtor, erguendo monumentos imperecíveis, transformando os homens e as coisas, agigantando os objetivos da Humanidade. Por isso mesmo, o Estado deve assumir a obrigação de organizar as forças produtoras, para dar ao povo tudo quanto seja necessário ao seu engrandecimento como coletividade. Não o poderia fazer, entretanto, com o objetivo de garantir lucros pessoais exagerados ou limitados a grupos cuja prosperidade se baseia na exploração da maioria”.
E logo em seguida, referindo-se ao servilismo diante do imperialismo inglês em crise, com os porta-vozes da oligarquia em pânico diante do que consideravam impossível e impensável – a possibilidade, muito concreta naquele momento, do imperialismo inglês deixar de ser uma força dominante, como, aliás, aconteceu:
“A incompreensão dessas formas de convivência, a inadaptação às situações novas, acarretam aos pessimistas, cassandras agourentas de todos os tempos, o desânimo infundado que os leva a prognósticos sombrios e vaticínios derrotistas. Dificuldades relativas aparecem-lhes com o aspecto tenebroso das crises irremediáveis; a perda temporária de mercados toma fisionomia de catástrofe”.
Realmente, a derrocada do amo sempre parece ao serviçal o fim do mundo, pelo menos até que encontre outro amo em melhores condições para servir.
Getúlio fez, então, a sua análise do que estava acontecendo:
“Atravessamos, nós, a Humanidade inteira transpõe, um momento histórico de graves repercussões, resultante de rápida e violenta mutação de valores. Marchamos para um futuro diverso de quanto conhecíamos em matéria de organização econômica, social, ou política, e sentimos que os velhos sistemas e fórmulas antiquadas entram em declínio. Não é, porém, como pretendem os pessimistas e os conservadores empedernidos, o fim da civilização mas o início, tumultuoso e fecundo, de uma nova era. Os povos vigorosos aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se deterem na contemplação do que se desmorona e tomba em ruínas. É preciso, portanto, compreender a nossa época e remover o entulho das ideias estéreis”.
Que ideias estéreis são essas? A ideia de que não resta a países como o Brasil outra coisa melhor do que ser uma colônia financeira e comercial, uma plantação para fornecimento de produtos agrícolas ao mercado externo. A ideia de que a miséria, o atraso e a estagnação são impossíveis de serem vencidas, senão por conta de supostas e imaginárias benesses externas. A ideia de que não precisamos ser uma Nação, com um Estado e uma economia independentes. Como ele disse, precisamente:
“Se há mercados fechados à venda dos nossos produtos em consequência da guerra, em compensação, para eles não se canalizam economias nossas em troca dos artigos que nos forneciam. O que resulta, em última análise, é o aumento da produção nacional, procurando o país bastar-se a si mesmo, ao menos enquanto persistirem os empecilhos atuais ao comércio exterior. O governo age, não somente com o propósito de desenvolver as trocas internas, mas, também, negociando convênios com as nações credoras, no sentido de pagar em utilidades o serviço de nossas dívidas, reduzindo-as na base dos valores em bolsa. Estamos criando indústrias, ativando a exploração de matérias-primas, a fim de exportá-las transformadas em produtos industriais”.
Por fim, Getúlio analisa e denuncia as ilusões de que o país possa progredir sem se defender da espoliação externa, como se o mundo fosse uma coleção de comunidades filantrópicas, debaixo de um culto a um individualismo feroz que amesquinha a coletividade, sem promover o seu povo, em especial o proletariado:
“A ordenação política não se faz, agora, à sombra do vago humanitarismo retórico que pretendia anular as fronteiras e criar uma sociedade internacional sem peculiaridades e atritos, unida e fraterna, gozando a paz como um bem natural e não como uma conquista de cada dia. Em vez desse panorama de equilíbrio e justa distribuição dos bens da Terra, assistimos à exacerbação dos nacionalismos. Passou a época dos liberalismos imprevidentes, das demagogias estéreis, dos personalismos inúteis e semeadores de desordem. À democracia política substitui a democracia econômica, em que o poder, emanado diretamente do povo e instituído para a defesa do seu interesse, organiza o trabalho, fonte de engrandecimento nacional e não meio e caminho de fortunas privadas. Não há mais lugar para regimes fundados em privilégios e distinções. A disciplina política tem de ser baseada na justiça social, amparando o trabalho e o trabalhador. Só assim se poderá constituir um núcleo nacional coeso. É preciso que o proletário participe de todas as atividades públicas, como elemento indispensável. A ordem criada pelas circunstâncias novas é incompatível com o individualismo. Ela não admite direitos que se sobreponham aos deveres para com a Pátria”.
Esse é o conteúdo do pronunciamento de junho de 1940: a proclamação de que o individualismo já não tem mais papel no mundo, exceto o de retardar o progresso e a liberdade. É sobre essa base ideológica que Getúlio traça a posição do povo brasileiro frente ao imperialismo e ao seu próprio destino. Sua denúncia não se refere apenas ao imperialismo inglês mas ao imperialismo em geral – inclusive o nazismo, ao qual menciona como “nacionalismo exacerbado”, isto é, chauvinismo.
É verdade que Getúlio não deseja a guerra. À rigor, somente os fascistas a desejaram e a provocaram. Para o país, a paz teria sido melhor para a continuação do seu desenvolvimento independente. No entanto, nem sempre é possível escolher entre a paz e a guerra, exceto se a escolha for a de ser escravo. O Brasil, agredido pelos submarinos alemães, fez o que devia fazer. Não se limitou a defender o seu território. Foi a outras terras também lutar pela liberdade de outros povos. Getúlio o liderou, em meio ao povo que exigia resposta à agressão e solidariedade ao mundo agredido.
10
O golpe de estado de outubro de 1945 é a apresentação pública do imperialismo norte-americano, e de sua quinta-coluna, como o novo inimigo e obstáculo ao desenvolvimento do Brasil.
O processo iniciado em 1930 havia derrotado o imperialismo inglês dentro do país, mesmo antes que ele saísse da II Guerra reduzido a um papel medíocre no mundo capitalista.
O que permitiu ao Brasil superar incólume a situação de crise da década de 30, foi, precisamente, a política de industrialização e desenvolvimento autônomo. É contra ela que o imperialismo norte-americano, agora hegemônico, se voltará.
Em função de um discurso que é uma clara ingerência nos assuntos internos brasileiros – e que foi interpretado como uma garantia dos EUA ao golpe em preparação – muito se falou no papel do embaixador norte-americano, Adolf Berle Jr., no golpe de Estado de 1945. No entanto, forçoso é reconhecer que seu papel, além de secundário, foi meramente incidental.
Berle tinha sido um dos principais autores da política de Roosevelt, o “New Deal”. Ao chegar ao nosso país, tinha, como Roosevelt, simpatia por Getúlio – o que é impossível sem algum grau de aprovação à política que ele representava.
O pretexto dos golpistas, o suposto continuísmo de Getúlio, era frágil demais – as eleições estavam marcadas, o prazo para inscrição de candidatos já havia caducado, os candidatos principais eram dois chefes militares, um dos quais o ex-ministro da Guerra, e Getúlio havia dito explicitamente que não era candidato à Presidência.
O fato é que o capachismo interno não esperou ser chamado para se apresentar a Berle e oferecer seus serviços para derrubar Getúlio. Compareceu à própria embaixada norte-americana, com esse intuito.
No entanto, seria um erro esperar do servilismo uma autonomia e um poder suficientes para dirigir o próprio imperialismo a quem servia, mesmo que fosse apenas a pessoa do embaixador norte-americano. Os que se apresentaram à Embaixada dos EUA já estavam comprometidos de várias formas – econômicas, políticas e ideológicas – seja com a Standard Oil, para quem uma parte deles advogava, seja com a CIA, que havia colocado um de seus futuros diretores-gerais, Vernon Walters, à caça de incautos e candidatos a renegados.
A própria necessidade de irem a Berle mostrava que o embaixador era, naquele momento, o setor imperialista menos entusiasmado com a deposição do presidente brasileiro. Ele mesmo surpreendeu-se com o efeito de seu discurso, mostrando, com essa surpresa, o pouco domínio que tinha do que estava acontecendo.
O objetivo do golpe era garantir a vitória do entreguismo – que se escondia (ou se revelava) atrás da candidatura, na eleição presidencial que se aproximava, de um dos antigos “tenentes” de 22, 24 e 30, o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN. Queriam evitar que Getúlio presidisse o país durante a campanha e as eleições. Como, devido ao prestígio imenso de Getúlio, nem isso garantia que o próximo governo fosse dócil aos interesses imperialistas, chegar ao poder através do golpe tornou-se para eles uma obsessão desesperada – que perdurará nos 20 anos seguintes.
Num quadro bastante obscuro para as forças nacionais sob pressão, o próprio candidato apoiado por Getúlio concordou com o golpe, assim como, depois de longa resistência, seu ministro da Guerra, o chefe militar da Revolução de 30, Góes Monteiro.
Nesse momento, ficou evidente o jogo: a UDN, que tinha como palavra de ordem entregar o poder ao Judiciário, sofreu uma comoção quando o marechal Dutra aceitou a reivindicação de seus adversários eleitorais e exigiu que ela fosse cumprida, com a posse no Catete do presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares. Mas não lhe restava mais, agora, do que aceitar que sua própria palavra de ordem fosse levada à prática… O golpe tinha sido inútil, pelo menos momentaneamente. Não seria sob um governo seu que os entreguistas disputariam as eleições.
A tranquilidade com que Getúlio saiu do Catete – bem expressa nas fotografias da época – sugere que ele percebia que, longe de estar derrotado, saía da Presidência como vencedor. Tinha assumido o país à frente do povo, um país sufocado pelo jugo do imperialismo inglês e de uma oligarquia servil – um país atrasado, agrário, faminto. Saía depois de vencer os inimigos externos e internos do país e do povo. O Brasil era um país industrial, moderno, com um operariado numeroso e um empresariado nacional empreendedor.
Assim, no ano em que a Humanidade derrotou o nazismo, começa uma nova guerra para o Brasil – a que opõe a Nação ao imperialismo norte-americano. A guerra nacional anterior – a do Brasil contra a espoliação imperialista inglesa – havia terminado com a nossa vitória.
11
A eleição de Dutra foi devida, exclusivamente, a Getúlio. Apesar do desastre que foi a política econômica do seu governo, não é verdade, em absoluto, que Dutra ou a UDN no poder teriam feito exatamente a mesma coisa.
Não obstante as grandes concessões – feitas em nome do anticomunismo ao imperialismo -, a siderúrgica de Volta Redonda continuou pública e brasileira; o petróleo, depois de uma tentativa de entrega, através do projeto do Estatuto do Petróleo, manteve-se como riqueza sob controle nacional, ainda que a Petrobrás tenha continuado somente um projeto; a legislação trabalhista e previdenciária – outro espantalho da UDN – manteve-se intocada; a Fábrica Nacional de Motores continuou nacional; e a sucessão presidencial se deu sem problemas, com a posse do novo presidente eleito – Getúlio Vargas.
Não houve uma política de terra arrasada sobre o que tinha sido construído nos 15 anos anteriores, apesar de nada ter sido acrescentado ao que já existia e apesar do prejuízo ao nosso desenvolvimento, devido às maciças importações de sucata, feitas à custa da dilapidação das reservas acumuladas no governo de Getúlio.
É evidente que manter o que foi construído mais ou menos como estava – e cedendo à pressão – era muito pouco para as necessidades do país. O Brasil necessitava avançar, não ficar parado, até porque é impossível: ou se avança ou se regride. Mas, naquele momento, era o máximo que o imperialismo havia conseguido: parar o país e prejudicar o seu desenvolvimento.
E ele queria muito mais.
Porém, as reservas brasileiras foram dilapidadas em importações e transferências a bancos externos. É elucidativo um trecho do relatório da comissão de inquérito instalada por Getúlio – dez dias depois de empossado, em 1951 – para investigar as irregularidades havidas no Banco do Brasil durante a gestão anterior:
“Desejando combater a inflação, o governo aumentou-a grandemente, consumindo a esse pretexto nossas divisas no exterior. É de se notar que, relativamente às existentes na Inglaterra, o ex-ministro encarregou-se de consumi-las com o resgate antecipado de títulos de dívidas externas, operação esta descrita com pormenores nos ns. 760/774 deste relatório. Nunca se viu no Brasil política cambial tão ignorante e nefasta. A prudência dos seus dirigentes oscilava entre a temeridade e o alarme“.
A indústria nacional sofreu as consequências do escancaramento aos cartéis financeiros externos. O crescimento do país se viu travado.
“De outubro de 1945 até o presente”, disse Getúlio em mensagem ao povo brasileiro no Ano Novo de 1950, “vejamos o que aumentou neste grande país: aumentou o custo de vida 100%, aumentaram todos os impostos cerca de 140% e aumentou a receita pública de quase o triplo. Mais do que isso aumentou também a respectiva despesa. Ainda aumentaram a dívida pública, os déficits orçamentários, os da balança comercial e de contas. Aumentaram as emissões de papel-moeda em mais de nove bilhões. Em compensação, algo deve ter diminuído. Sim, diminuiu a produção nacional e quase sumiram as reservas de ouro que lastreavam nossa moeda. Deve existir algo errado que é preciso corrigir”.
Numa menção ao seu retiro, desde 1946, em São Borja, depois de participar da Constituinte – eleito senador por São Paulo e Rio Grande do Sul e deputado federal por nove Estados:
“O silêncio, a meditação, o estudo convenceram-me de que só uma reforma de base pode salvar o Brasil. Restabeleçamos a confiança dos brasileiros em si mesmos e tracemos um plano de grande envergadura. É necessário já não só uma planificação econômica mas um plano integral de reorganização nacional para combater a subprodução, o subconsumo, a subcultura, a subnutrição e a desorganização geradora de uma subdemocracia, dominada por parasitas e intermediários que exploram o produtor e o consumidor”.
E mais adiante:
“Precisamos defender o povo, esse povo brasileiro, bom, generoso, paciente e sofredor ludibriado por falsas promessas e massacrado quando protesta. Renovação ou perecimento, é o dilema que nos aguarda”.
São unânimes os testemunhos de que Getúlio não pretendia ser candidato a presidente em 1950. À beira dos 70 anos, considerava que já tinha dado a sua contribuição. Procurava uma solução de compromisso para a sucessão presidencial. No entanto, esta solução não apareceu. Nem era possível. Como da outra vez, em 1937, não se tratava de um problema meramente eleitoral. Para a nova guerra que havia se iniciado em 1945, o Brasil ainda não tinha produzido um comandante à altura de ser o seu substituto. Será ele, que comandou a nossa libertação do jugo anterior, que terá de empreender a primeira batalha da nova guerra – da qual sairá vitorioso o povo brasileiro, ainda que isso custe o sacrifício da vida de seu líder.
Sob esse aspecto, Getúlio parece, estranhamente, prever desde o início qual será o desfecho: em julho de 1950 – três meses antes das eleições que o levariam outra vez ao governo – ele concedeu uma entrevista ao jornal “Folha da Noite”:
“Conheço meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei que lutar. Até onde resistirei? Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão aguentar? Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações”, afirmou.
Precisamente: humilhá-lo será humilhar o povo brasileiro, que ele representava e representou como nenhum outro. Ele não o permitirá, aconteça o que acontecer. O que Getúlio parece perceber, nesse momento, é que as forças nacionais não têm ainda a maturidade necessária para a vitória completa nessa nova guerra. Assim, dificilmente poderão se unir e resistir ao assédio das forças contrárias. O sacrifício para que essa unidade e maturidade possam ser alcançadas – ou, como escreveu na Carta-Testamento, para que “meu nome seja vossa bandeira de luta” – é, então, uma possibilidade em que ele não pode deixar de pensar.
Assim ele o fundamenta, na mesma entrevista:
“Tenho 67 anos e pouco me resta de vida. Quero consagrar esse tempo ao serviço do povo e do Brasil. Quero, ao morrer, deixar um nome digno e respeitado. Não me interessa levar para o túmulo uma renegada memória. Procurarei, por isso mesmo, desmanchar alguns erros de minha administração e empenhar-me-ei a fundo em fazer um governo eminentemente nacionalista. O Brasil ainda não conquistou a sua independência econômica e, nesse sentido, farei tudo para consegui-lo. Cuidarei de valorizar o café, de resolver o problema da eletricidade e, sobretudo, de atacar a exploração das forças internacionais. Elas poderão, ainda, arrancar-nos alguma coisa, mas com muita dificuldade. Por isso mesmo, serei combatido sem tréguas. Eles, os grupos internacionais, não me atacarão de frente, que não se arriscam a ferir os sentimentos de honra e civismo do nosso povo. Usarão outra tática, mais eficaz. Unir-se-ão com os descontentes daqui de dentro, os eternos inimigos do povo humilde, os que não desejam a valorização do homem assalariado, nem as leis trabalhistas, menos ainda a legislação sobre os lucros extraordinários. Subvencionarão brasileiros inescrupulosos, seduzirão ingênuos inocentes. E, em nome de um falso idealismo e de uma falsa moralização, dizendo atacar sórdido ambiente corrupto, que eles mesmos, de longa data, vêm criando, procurarão, atingindo minha pessoa e o meu governo, evitar a libertação nacional. Terei de lutar. Se não me matarem…”.
Isso foi dito, e publicado três meses antes das eleições – e quatro anos antes de seu último gesto.
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Não existe exemplo, até os dias de hoje, de uma eleição presidencial comparável à de outubro de 1950. Com três candidatos principais, Getúlio teve 48,7% dos votos contra 29,7% dados ao candidato da UDN e 21,5% ao candidato do PSD.
Os rábulas da UDN, rapidamente apresentaram a ridícula tese de que Getúlio não havia sido eleito, pois tinha ficado a pouco menos de 1% da maioria absoluta.
Não só a Constituição de 46 não previa a maioria absoluta, como a tentativa de instituí-la havia sido fragorosamente derrotada na Constituinte. A parcela mais deteriorada da UDN, o entreguismo histérico, tornou-se, a partir daí, uma impudica vivandeira de quartel. Era o golpe de Estado que pregavam abertamente – e tentaram, várias vezes.
Mas, agora, a Nação estava de volta ao poder.
Se a única obra do segundo governo de Getúlio houvesse sido a Petrobrás, já seria um dos maiores governos que o país já teve. Sua fundação foi a continuidade da política implementada durante o Estado Novo e um salto de qualidade nessa política.
A primeira medida para a implantação da indústria petrolífera nacional havia sido o dispositivo da Constituição de 1937 que exigia a nacionalidade brasileira dos acionistas de empresas de mineração, proibindo ao capital estrangeiro a exploração de nossos recursos naturais; a segunda, o decreto de abril de 1938, que declarava propriedade pública todos os campos produtores de petróleo; a terceira, o decreto do mesmo mês que criou o Conselho Nacional do Petróleo, declarou utilidade pública o abastecimento de derivados de petróleo e nacionalizou a indústria de refinação.
Tais medidas tinham como evidente objetivo impedir que o nosso petróleo caísse sob o monopólio do cartel das sete irmãs, cujo interesse, reiteradamente demonstrado, era o de que o petróleo brasileiro não fosse explorado – o que poderia baixar os preços internacionais – mantendo-nos prisioneiros das importações de seus produtos e como reserva a ser usada de acordo com suas necessidades e interesses.
Faltava um instrumento que explorasse em benefício do país o seu petróleo. A situação se agravara desde o Estado Novo: entre 1945 e o final de 1951, o consumo nacional de derivados de petróleo havia mais do que triplicado e o país gastava 23% de sua receita cambial com a importação deles. O desenvolvimento do país dependia de ter uma indústria petrolífera própria.
De São Borja, em novembro de 1948, numa entrevista à Revista do Globo, Getúlio afirmara:
“Não devemos permitir a participação do capital estrangeiro na exploração do nosso petróleo. Devemos entregá-lo ao monopólio estatal. O governo é que deve explorá-lo. Se permitirmos o capital particular, mesmo nacional, nosso petróleo pode cair nas mãos de testas-de-ferro.”
A assessoria econômica que preparou o projeto deparava-se, porém, com um problema, os custos de implantação da empresa, que somavam o triplo dos investimentos da siderúrgica de Volta Redonda, sem que pudéssemos contar com qualquer empréstimo externo: não era mais Roosevelt que estava na Presidência dos EUA, e os interesses norte-americanos não eram mais, como no início da década de 1940, o de obter nossa cooperação tendo em vista a guerra, mas o de promover a espoliação do país.
Os custos de implantação, supostamente impossíveis ao Brasil, era a argumentação dos que queriam conceder nossas reservas à Standard Oil e à Shell.
Colocado o problema ao presidente, ele escreveu à margem do documento da assessoria: “Prossigam-se os estudos sem temor quanto ao vulto dos investimentos, desde que os fundamentos do programa sejam objetivos e a possibilidade de mobilizar recursos sejam efetivas”.
A solução foi descoberta logo em seguida: desde 1946 que o imposto sobre as importações de petróleo e derivados não era atualizado, beneficiando a Standard Oil, a Shell e demais “irmãs”. Corrigido de acordo com a inflação, bastava 25% da arrecadação desse imposto para que os custos com a implantação da indústria nacional do petróleo fossem cobertos. Existiam os recursos suficientes para a alavancagem inicial da Petrobrás.
A batalha parlamentar, que durou de outubro de 1951 até setembro de 1953, foi feroz. O projeto do governo partia de uma cuidadosa avaliação da correlação de forças no Congresso e na sociedade. Sabia-se da posição udenista de não distinguir entre capital nacional e capital estrangeiro, o que, devido à diferença de poderio entre um e outro, era a mesma coisa que privilegiar o capital estrangeiro contra o nacional. Sabia-se que parte do PSD e outros partidos que constituíam a base parlamentar do governo poderiam ser arrastados pela UDN – ou, melhor, pelas sete irmãs, que mandaram seus representantes e seu dinheiro ao Brasil.
O projeto estabelecia, então, em seu art. 5º, que o controle da Petrobrás – sob a forma de, no mínimo, 51% das ações com direito a voto – pertenceria, obrigatoriamente à União, isto é, ao Estado, mas que seria permitida a participação do capital privado, inclusive estrangeiro, em minoria. Era a forma de dobrar as resistências, fabricadas e açuladas pela indústria petrolífera externa, no Congresso.
Apesar disso, o projeto foi bombardeado equivocadamente como entreguista por elementos dentro do próprio campo nacional. A direção da UDN, com o partido sem unidade interna – pois havia um setor udenista que defendia a proteção ao petróleo nacional -, e à beira da desmoralização diante da sua própria base eleitoral, foi compelida, então, à mais desastrada manobra parlamentar da história política brasileira: tentou inviabilizar o projeto atacando-o ‘pela esquerda’, como insuficientemente nacionalista, pretendendo, assim, derrubá-lo em aliança com os setores patrióticos que criticavam o projeto do governo. Derrotado o projeto, o país continuaria sem indústria petrolífera.
Era a mais translúcida confissão de que não havia espaço político algum para a entrega do petróleo ao cartel das sete irmãs. Os entreguistas eram obrigados a travestir-se de defensores do petróleo brasileiro para que este ficasse onde o cartel das sete irmãs queria que ficasse – embaixo da terra. Mas, com isso, estava aberta a brecha: quando o deputado Euzébio Rocha foi a Getúlio e em seguida lançou o substitutivo que estabelecia o monopólio estatal do petróleo, com a Petrobrás como executora em nome do povo brasileiro, a derrota do entreguismo foi retumbante. A própria UDN foi obrigada a votar pelo monopólio estatal e pela Petrobrás. No dia 3 de outubro de 1953, aniversário da Revolução de 30, Getúlio sancionava a lei 2.004.
O outro problema básico para o desenvolvimento nacional era o da eletricidade, monopolizada por um cartel estrangeiro que cobrava tarifas extorsivas, com a estagnação e sucateamento da geração, distribuição e transmissão de energia. A fraude imperava, às custas do Estado e do povo brasileiro.
Aprovada a Petrobrás, é à solução desse problema que Getúlio se dedicará a partir de fins de 1953.
Em janeiro de 1954, chegou aos lares brasileiros, através do rádio, a mais contundente denúncia da situação da espoliação do país a partir de fora, e particularmente no setor elétrico:
“Posso hoje anunciar o meu programa de governo, programa que venho executando em silêncio, e só não o anunciei previamente porque os debates teriam impedido sua realização”.
Getúlio descreveu o “excepcional campo de exploração” que era causa de nossas dificuldades cambiais, de balança comercial e monetários, com “o enfraquecimento de nossas energias, a redução de nossos valores de trabalho”.
Ao investigar as responsabilidades, “quase que paralelamente se desencadeava uma campanha para tisnar de corrupção o meu governo. Estendia-se uma cortina de fumaça para se impor meu recuo ou uma perda de autoridade que paralisasse a Nação”.
“Agora vou dizer-vos como se sangravam as energias do trabalho do povo brasileiro”.
Além da exploração comercial, com o aumento, somente em 1951, do preço das importações em 50% sem que as exportações tivessem aumento de preço semelhante, o superfaturamento das importações campeava: “Tivemos um mínimo de desvios cambiais de 250 milhões de dólares em 18 meses”.
“Outra sangria se determinava no registro de capitais estrangeiros e na remessa de lucros. Uma instrução da fiscalização bancária permitia fossem adicionados ao capital estrangeiro, como moeda estrangeira, os excedentes dos lucros, juros ou dividendos sobre 8% do capital. Começou a multiplicação dos lucros em cruzeiros, transformados, assim, em capital estrangeiro, contra o texto expresso da lei. De acordo com essa estranha interpretação, passou-se a registrar como capital em moeda estrangeira os lucros obtidos em cruzeiros. Verificando a violação do texto e do espírito da lei, tendo conhecimento da elevação vertiginosa de compromissos de câmbio para pagamento de capital que não fora realmente investido no Brasil, denunciei à Nação, em dezembro de 1951, o abuso, e determinei providências enérgicas. Em 1948, estavam registrados capitais estrangeiros no valor de Cr$ 6.232 milhões. Em 1949, o valor subia a Cr$ 9.633 milhões e, em 1950, já tínhamos um valor de Cr$ 15.718 milhões pedindo registro. A progressão era geométrica. O registro como moeda estrangeira dos lucros acima de 8% representava operação cambial correspondente a um esgotamento definitivo das nossas energias. Examinadas as contas de capital de US$ 237.355.454, ficou verificado que, efetivamente, só tinham direito ao registro de US$ 104.674.868. E quanto aos empréstimos, que totalizavam US$ 241.982.694, só existia a documentação de empréstimos reais no valor de US$ 57.243.721”.
Referindo-se ao problema do petróleo, recém equacionado, e ao da energia:
“Uma curiosa coincidência criou um regime fiscal privilegiado para desenvolver o consumo de gasolina. Ao mesmo tempo, entravam em derrocada nossos transportes ferroviários, sem recursos básicos para a renovação. Outra curiosa coincidência: diminuía o ritmo das instalações para a produção de energia hidrelétrica e se desenvolvia a produção de energia termelétrica, na base do petróleo. Nestes últimos dez anos o desenvolvimento do Brasil tem exigido um aumento de produção de energia elétrica na base de 14% ao ano. As empresas concessionárias, não dispondo mais de capital, têm recorrido a empréstimos. Não podendo mais dar garantias, têm recorrido às garantias do governo. E aos que apontam o governo como responsável pela crise de energia elétrica por não auxiliar as empresas concessionárias, respondo com o documento de US$ 312 milhões de certificados de prioridade cambial, concedidos como garantia de empréstimos para energia elétrica”.
Getúlio aponta, então, as providências tomadas:
“Mas eu não posso concordar com a inflação de capital, nem empréstimos fictícios, nem ainda com uma resistência tenaz dos que acreditam que a manipulação dos instrumentos de formação da opinião pública seja suficiente para assegurar a consolidação de negócios contra o povo. O trabalho de revisão dos empréstimos e de capital dessas empresas é sempre demorado e ainda não me chegou às mãos. Entretanto, informações positivas que foram colhidas num levantamento feito em quatro empresas em São Paulo apontam uma majoração de US$ 38.803.021,00 no capital e US$ 24.708.679,00 nos empréstimos, além de 1 milhão, 366 mil e 671 libras no capital e 631 mil e 307 mil libras nos empréstimos. Este fato ainda não é tudo. Pedem, as empresas de serviços públicos, câmbio para pagar as instalações a serem feitas. E pedem uma base média de US$ 30 milhões por ano. Nessas condições, não há investimento. Se fornecer, através do câmbio, dólares para a compra das instalações, onde está o capital estrangeiro? Eu não pretendo nacionalizar nem os bens nem o capital estrangeiro. Não pretendo encampar nem desapropriar empresas. O que tenho o dever de evitar é a desnacionalização do Brasil”.
A saída para esse assalto despudorado ao dinheiro público, que, além de humilhante, estrangulava o crescimento da economia, era, como foi, a criação da Eletrobrás:
“Desde que somos nós mesmos que temos de solucionar o problema, vamos resolvê-lo. Nessas condições, seria incúria governamental permitir que o consumo de energia estivesse produzindo renda em divisas, sem investimento efetivo de capital. É claro que esse programa vem ferir, frontalmente, os interesses nesse negócio. Mas para tudo há um limite. E a resistência do povo estabeleceu esse limite intransponível. O povo está sendo sacrificado e o Brasil espoliado. Nosso povo tem valores de trabalho a defender e deles precisa para se desenvolver e se tornar útil à comunhão de todos os povos”.
13
O programa que Getúlio tornou público em janeiro de 1954 era o mais profundo programa de libertação do Brasil, desenvolvimento econômico independente e justiça social já formulado no país – superior, e, ao mesmo tempo, continuidade do programa da Revolução de 30.
Correspondia a uma necessidade histórica, a uma necessidade do Brasil e de seu povo, ainda que as forças nacionais que o representavam politicamente não tivessem adquirido ainda a maturidade para levá-lo totalmente – e até o fim – à prática.
Tratava-se, nas condições surgidas após a II Guerra, em que o imperialismo tinha pela primeira vez uma única potência hegemônica – que exigia a nossa submissão, o nosso “alinhamento” incondicional em sua guerra pela sobrevivência contra o socialismo – de dotar o país, a partir de seus recursos imensos, de uma base econômica nacional, colocando o mercado interno e a poupança interna em outro patamar, como as molas propulsoras da economia.
Em suma, significava manter e desenvolver uma fisionomia própria e não dependente, o que agora implicava não apenas em aumentar o peso político do empresariado nacional – tal como a Revolução de 30 havia feito – mas também o da classe operária e demais setores populares, e o peso econômico do Estado nacional.
Era contra esse programa que se açulavam, desde o início do governo e mais ainda a partir de janeiro de 1954 – quando se tornou claro que Getúlio não recuaria nem faria concessões às custas da Nação – o capachismo dos Lacerda e cia.
Mas é ainda atribuir demasiado papel a um grupelho de serviçais, o de terem, sozinhos, levado o país e Getúlio à situação de agosto de 1954. A fábrica de calúnias, insultos, mentiras, apelos ao golpe, envolvimento de oficiais honrados, em suma, a origem da campanha contra Getúlio e o programa nacional de transformação do Brasil, nunca esteve em Lacerda e seus melancólicos colegas, a quem faltava, como se viu depois de 64, até o mínimo da coragem que geralmente se atribui aos ratos quando acuados.
Praticamente todas as supostas “denúncias” contra o governo de Getúlio, sem exceção desmascaradas como falsas depois, foram forjadas no “Escritório Monsen”, uma suposta empresa de advocacia de propriedade da Standard Oil, com vinculações – para dizer o mínimo – com a CIA, e que tinha como um de seus principais membros o genro do diretor da filial da Hollerith, uma subsidiária da IBM. Lacerda era apenas um alto-falante – e, por sua psicopática histeria, falta de escrúpulos e crapulice, enfim, pela sua compulsão amebiana e rancorosa de servir, o alto-falante ideal para seus amos. Mas, ainda assim, apenas um papagaio.
Desde a vitória de Getúlio nas eleições de 50 e sua posse, o objetivo era não deixá-lo governar e não deixá-lo terminar o mandato.
Em agosto de 1954 faltava pouco mais de um ano para completá-lo. Porém, não havia chance alguma de aboletar no Catete um novo presidente servil, se Getúlio – isto é, o povo – estivesse no poder durante a campanha eleitoral e as eleições fossem livres e honestas. Em 50, ele vencera mesmo contra o governo e a totalidade da imprensa. Como a história posterior o demonstrou, naquele momento era impossível ao imperialismo instalar, por via eleitoral, um governo que lhe conviesse. Seus representantes e serviçais sabiam disso. Daí, os apelos reiterados ao golpe.
Por trás da questão eleitoral, e determinando-a, estava o que o próprio Lacerda e o antigo antagonista de Roberto Simonsen, Eugênio Gudin – que de defensor da nossa “vocação agrícola” e eterna dependência à Inglaterra tinha passado a defensor de nossa vocação natural de fornecedores de matérias-primas aos EUA – confessaram depois: era preciso impedir que a política de Getúlio se tornasse “permanente”, se consolidasse como o programa do Estado e da Nação brasileira naquela nova fase da nossa história.
Era preciso, portanto, tirar o povo do poder. Essa era a condição para subordinar o país à matriz imperialista, aos seus cartéis, bancos e monopólios privados.
Para isso, a conspirata golpista seguiu por três lados: a tentativa de isolar o governo das Forças Armadas; a tentativa de privar Getúlio de qualquer órgão de comunicação com o povo; e a tentativa de isolá-lo do empresariado nacional. Se faltasse alguma prova do golpismo e da orquestração externa, bastaria a descrição sucessiva desses acontecimentos.
Para isolar o governo das Forças Armadas era preciso dividi-las, afastar a direção patriótica do Clube Militar, cujo presidente, general Newton Estillac Leal, era também o ministro da Guerra, e envolver oficiais honestos, colocando-os contra colegas e contra o governo.
Naturalmente – até onde pode-se usar a palavra “natural” num caso tão aberrante – os empregados do “Escritório Monsen” só tinham a brandir para esse fim o anticomunismo mais cretino. A oposição dos militares brasileiros a que fossem morrer na Coreia para ajudar a malfadada agressão norte-americana àquele país, ou o apoio decidido à Petrobrás – cuja origem estava nos relatórios do Estado Maior na segunda metade da década de 30 e na gestão do general Horta Barbosa à frente do Conselho Nacional do Petróleo – foram tachados de “comunistas”. A questão era atrair, neutralizar e intimidar oficiais com essa cruzada, para fazer com que o Ministério da Guerra ficasse em mãos cada vez menos firmes.
Era impossível, no entanto, derrubar o governo sem isolá-lo do povo. Por isso, aí se concentrou o alto-falante mais doentio, o infeliz Lacerda, munido das inovações “jurídicas” do Escritório Monsen – cuja atuação foi aberta. Tratava-se de destruir o único órgão de comunicação com que Getúlio contava, a “Última Hora”, do jornalista Samuel Wainer. No decorrer dessa campanha infecta, seus promotores, embriagados com a própria fraude, chegaram a tentar um atalho: o de pedir o impeachment de Getúlio. A derrota foi acachapante.
Na campanha de 50, Getúlio vencera contra toda a imprensa. Lançada a “Última Hora”, ela tornou-se em poucos meses o principal jornal do país, exatamente devido à sua linha editorial de defesa da Nação e apoio às medidas tomadas nesse sentido por Getúlio. A própria transformação editorial e gráfica que a “Última Hora” realizou pela primeira vez na imprensa brasileira, era uma decorrência da necessidade de comunicar esse conteúdo nacional e popular.
Em abril de 1953, Lacerda publicou uma acusação falsa, a de que Wainer não havia nascido no Brasil: a Constituição de 46 proibia a propriedade de órgãos de comunicação por estrangeiros ou brasileiros naturalizados. Em suma, os serviçais de tudo o que era de mais pútrido no estrangeiro acusavam Wainer de ser… estrangeiro.
Em seguida, já que a primeira era insustentável, a acusação passou a ser a de que o jornal tinha obtido créditos bancários para se viabilizar. Exigiam da empresa que fosse a única no mundo a sobreviver sem créditos ou empréstimos. Chamado a depor na CPI montada contra o jornal, o conde Matarazzo, na época o maior industrial brasileiro, esclareceu a questão: “Senhores deputados, o dinheiro que subscrevi para o capital necessário ao lançamento da ‘Última Hora’ era dinheiro meu e eu não tenho que dar satisfação disso a ninguém. Dei o dinheiro a Wainer porque acreditei na sua capacidade técnica, aliás, altamente comprovada pelo sucesso do seu jornal”. E a uma pergunta desrespeitosa de um dos funcionários do “Escritório Monsen”, deputado pela UDN: “Senhor deputado, o senhor conhece por acaso algum dono de jornal no Brasil que seja pobre?”.
Finalmente, com o fracasso de mais essa acusação, jogou-se outra, a de favorecimento ao jornal por parte do governo. Com sua prodigiosa falta de escrúpulos, Lacerda inventou – tudo indica que apenas repetiu uma fraude armada sabe-se aonde – um crédito de Cr$ 300 mil que teria sido concedido pelo Banco do Brasil ao “Última Hora”, sem que Wainer tivesse que pagá-lo, ou seja, uma fantasiosa doação de dinheiro público. Além disso, um simples aval cambial para importação de papel de imprensa, que o BB estava, por lei, obrigado a conceder, foi transformado em um “empréstimo”.
Dos jornais com tiragem de alguma importância, a “Última Hora” era o que devia menos ao BB – e todos os pagamentos estavam em dia, assim como as garantias eram reais e somavam muito mais do que os empréstimos. É compreensível – ainda que não admissível – que alguns homens de bem não tenham, na época, entendido como era possível a alguém mentir tanto, tão alto e tão repetidamente: quando o próprio ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, um dos companheiros mais próximos de Getúlio, cedeu às pressões e mandou executar os Cr$ 300 mil, descobriu que a dívida passível de execução eram meros Cr$ 8 mil, que foram pagos em 24 horas.
Não era o caso dos jornais envolvidos na campanha contra Getúlio. Posteriormente, já relegado à desgraça final, Lacerda confessou o que todos sabiam: que sem dispor à sua vontade da Rádio Globo e da TV de Chateaubriand (única do país na época), a campanha contra Getúlio nem mesmo teria começado. No entanto, os “Diários Associados”, de Chateaubriand, deviam Cr$ 162 milhões ao BB; “O Globo”, somente nos dois anos anteriores, tinha obtido US$ 1.022.211,00 do BB em sucessivos empréstimos, dando sempre como garantia uma mesma velha impressora, e sem quitar durante esse período sequer o primeiro desses empréstimos. O próprio jornal de Lacerda, insignificante quanto à tiragem, era um dos devedores do BB.
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O próximo alvo foi o Ministério do Trabalho, encabeçado primeiramente por Danton Coelho e depois por João Goulart, ambos dos mais próximos e firmes getulistas, principais dirigentes do PTB – o último, seu presidente nacional.
A 8 de março de 1953, o “The New York Times” iniciou, em editorial, a campanha contra Jango, mais jovem ministro da História da República, dando lições aos brasileiros do que seria ou não seria uma “traição” ao Brasil. O editorial foi prontamente repicado pela trupe de renegados.
Jango respondeu em seguida: “além de ataques infames à minha honorabilidade, inventam as mais sórdidas mentiras e intrigas, como é exemplo essa pitoresca ‘república sindicalista’ que anda no cabeçalho de alguns jornais. O Ministério do Trabalho deseja tão-somente que se oriente no sentido dos legítimos interesses das classes trabalhadoras e rigorosamente dentro da Constituição”.
Jango, ele mesmo um empresário, também esclareceu que “não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo. À frente do Ministério do Trabalho estou pronto a aplaudir e a estimular os capitalistas que, fazendo de sua força econômica um meio legítimo de produzir riquezas, dão sempre às suas iniciativas um sentido social, humano, patriótico. Sou contra, isso sim, o capitalismo parasitário, exorbitando no ganho e imediatista no lucro, contra o capitalismo cevado à base da especulação, que afinal só contribui para o desajustamento social. Não é admirável que, enquanto uns estão ameaçados de morrer de fome, outros ganham em um ano aquilo que normalmente deveriam ganhar em 50 anos ou até séculos”.
O objetivo dessa outra campanha era isolar o governo do empresariado nacional, apesar de Euvaldo Lodi, seu principal líder depois da morte de Roberto Simonsen, continuar apoiando Getúlio.
O pretexto foi o aumento do salário-mínimo, a ser concedido em maio de 1954, sobre o qual foi inventada uma peculiar regra divina, segundo a qual ele não poderia ultrapassar a inflação (de 42% desde o último aumento, em 1951), sob pena do empresariado ir à falência. Do ponto de vista da situação econômica da época, o contrário era o verdadeiro: a expansão do mercado interno, com o aumento real de salários, era essencial para que as empresas nacionais pudessem continuar crescendo. Os estudos realizados pelo Ministério do Trabalho demonstravam que um aumento de 100% podia ser absorvido sem problemas pelas empresas, até porque apenas devolvia o poder de compra dos salários aos níveis anteriores ao governo Dutra, durante o qual, apesar da inflação, não houve sequer um reajuste do salário.
Diante da gritaria que conseguiu envolver setores do empresariado e alguns militares de prestígio – o chamado “manifesto dos coronéis” -, Jango resolve demitir-se para privar a conspiração de um alvo e impedir que o governo fosse paralisado. Como carta de demissão, ele envia ao presidente a exposição de motivos a favor do aumento salarial:
“… a atual situação do trabalhador, com o salário de miséria que recebe, é de desespero. A realidade é que vivemos numa época em que a ostentação e o fausto debocham e tripudiam da miséria popular, os lucros se multiplicam nas mãos de poucos à custa do sofrimento de muitos e a psicose do enriquecimento rápido domina a maioria dos detentores do poder econômico. Não existe melhor estatística para o pobre do que o caderno de pagamento das suas contas, que lhe mostra de maneira irrefutável a diminuição constante dos seus salários com a elevação vertiginosa dos preços das utilidades e dos gêneros essenciais à preservação da vida. E não se diga, como querem alguns, que os trabalhadores são culpados por essa situação. Aceitar esse ponto de vista seria inverter maliciosamente os termos do problema. Não são os salários que elevam o custo de vida. Pelo contrário, a alta do custo de vida é que exige salários mais elevados”.
Jango saiu do Ministério, mas o aumento de 100% foi decretado no dia 1º de maio de 1954 – e nenhuma empresa faliu por causa dele ou mesmo passou por dificuldades para pagá-lo.
De todos os notáveis pronunciamentos que Getúlio fez nos vários 1º de maio – e esta data havia sido sempre a sua preferida para falar ao povo – este, o último deles, em que decretou o aumento de 100% do salário-mínimo, é o mais profundo e o mais avançado de sua vida. Apenas quatro meses antes da Carta-Testamento, ele declara aos trabalhadores, que 24 anos antes motivaram o primeiro grande ato da Revolução de 30, a criação do “ministério da revolução”, o Ministério do Trabalho:
“Neste 1º de maio, tão grato a quem, como eu, se acostumou a ver em vossa nunca desmentida solidariedade o maior motivo de alento para continuar devotado ao serviço da Pátria e à causa da reforma social, quero estar convosco, em espírito e sentimento, participando das vossas alegrias, na data consagrada à exaltação do vosso esforço e heroísmo.”
Como sempre, ele não faz concessões a fáceis, altissonantes e vazias figuras de retórica. Ao contrário, entra no cerne dos problemas:
“A rápida industrialização e expansão econômica do país geraram uma acentuada desproporção entre o nosso surto de progresso e o nível dos salários. O crescimento vertiginoso da arrecadação do imposto de renda, que subiu de Cr$ 310 milhões em 1939 para Cr$ 10 bilhões em 1953, mostra que o aumento da riqueza privada e o vulto dos lucros das classes abastadas estão em contraste chocante com o índice dos salários”.
Ao mesmo tempo, é magnífica a sua serenidade e ironia ao abordar a campanha dos inimigos:
“Os que vivem a apregoar, por convicção ou por espírito de oposição sistemática, que o custo de vida aumentou assustadoramente devem ser os primeiros a reconhecer que a elevação dos salários é uma necessidade imposta pela atual conjuntura econômica. As publicações jornalísticas sobre o encarecimento da vida estão fornecendo preciosos subsídios aos estudos do Ministério do Trabalho para melhorar os salários dos trabalhadores da imprensa”.
Relata ele as principais medidas tomadas pelo governo, além do aumento do salário-mínimo, destinadas especificamente aos trabalhadores – a Campanha de Prevenção dos Acidentes do Trabalho e o programa de moradias populares:
“Como vedes, tudo o que depende da ação do governo, no âmbito das suas faculdades constitucionais, tem sido feito para que não falte amparo e assistência às massas trabalhadoras. Todas as medidas que dependem de aprovação legislativa têm sido propostas ao Congresso para que se convertam em lei. As promessas que vos fiz estão sendo cumpridas, como estão sendo saldados os compromissos que assumi. As dívidas que contraí com o povo estão sendo resgatadas. Tenho realizado por vós tudo o que posso e mais do que posso”.
A última frase, como se viu meses mais tarde, também não era uma figura de retórica. Mas para ele isso não é o mais importante. Importante e decisivo é o futuro, o do Brasil e o da classe operária, um inseparável do outro:
“Não me perdoam os que me queriam ver insensível diante dos fracos e injusto com os humildes. Continuo, entretanto, ao vosso lado. Mas a minha tarefa está terminando e a vossa apenas começa. O que já obtivestes ainda não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades. Tendes de prosseguir na vossa luta para que não seja malbaratado o nosso esforço comum de mais de 20 anos no sentido da reforma social, mas, ao contrário, para que esta seja consolidada e aperfeiçoada. Para isso não cabe nenhuma hesitação na escolha do caminho que se abre à vossa frente. Não tendes armas nem tesouros nem contais com as influências ocultas que removem os obstáculos e reduzem as resistências: é preciso unir-vos e organizar-vos. União e Organização devem ser o vosso lema”.
E ele estabelece a missão da classe operária para conquistar a “plenitude dos direitos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades”, o que implica em ter um país independente, livre, desenvolvido – os trabalhadores devem chegar ao poder:
“Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. A satisfação dos vossos reclamos, as oportunidades de trabalho, a segurança econômica para os vossos dias de infortúnio, o amparo às vossas famílias, a educação dos vossos filhos, o reconhecimento dos vossos direitos, tudo isso está ao alcance das vossas possibilidades. Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter”.
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Em agosto de 1954, a campanha contra Getúlio estava em maré vazante. No entanto, diante da imaturidade das forças nacionais, cuja consequência mais visível eram as pesadas perdas na guerra política que se travava desde a posse do presidente, era claro que se preparava um novo assalto ao poder.
Essa imaturidade tinha se manifestado nos três lados pelos quais as marionetes do “Escritório Monsen” tinham tentado, até então, forjar o golpe. Tinha permitido que oficiais honrados das Forças Armadas fossem atraídos pelo golpismo, redundando na derrota dos nacionalistas no Clube Militar; na influência, desproporcional ao seu tamanho, de uma pequena facção lacerdista na Aeronáutica; e na exoneração sucessiva dos generais Estillac Leal e Espírito Santo Cardoso do Ministério da Guerra. Tinha permitido que o único órgão de imprensa que apoiava o governo ficasse sob cerco. Tinha permitido que setores ponderáveis do empresariado nacional, apesar do crescimento econômico que desfrutavam, ficassem contra o governo e que os colaboradores mais próximos de Getúlio tivessem que se afastar do Ministério do Trabalho.
As perdas – Jango, Danton Coelho, Estillac, Espírito Santo Cardoso e outros – se fariam sentir durante a crise daquele mês. As forças nacionais mantinham-se de pé, mas devido quase exclusivamente à postura do próprio Getúlio. E continuaram de pé, mas devido ao sacrifício de seu líder, Getúlio Vargas.
Mas, em que constituía a imaturidade das forças nacionais?
Basicamente, numa insuficiente consciência da necessidade – e da possibilidade – de unir todos os setores nacionais em torno do programa de desenvolvimento e independência assumido por Getúlio, ao lado da correspondente insuficiência em perceber o inimigo tal como ele era: rasteiro, mentiroso, fraudulento, sem escrúpulos e invertebrado.
Já nos referimos à atitude de Oswaldo Aranha – o mais antigo dos companheiros de Getúlio – em relação às acusações contra a “Última Hora”. Mas não era um problema pessoal, que se pudesse reduzir à ingenuidade de Oswaldo Aranha ou de outros companheiros de Getúlio: a insuficiente consciência tinha, e era inevitável que tivesse como consequência, a intimidação, numa guerra em que o inimigo fazia questão de desconhecer qualquer Convenção de Genebra. Não há, aliás, Convenção que ponha limites à falta de caráter. Apenas a luta e a consciência dos que têm caráter é capaz disso.
Apesar da imaturidade no campo getulista e petebista, forçoso é reconhecer que ele fez o que pôde para apoiar Getúlio e seu programa. Pedir mais seria exigir daqueles homens e mulheres uma consciência que ainda estava por desenvolver-se.
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Getúlio construiu a Nação brasileira: um país independente, soberano, com uma potente base industrial e orgulhoso das suas riquezas. Sua política de desenvolvimento e expansão industrial formou uma numerosa classe trabalhadora, que conquistou o direito ao salário-mínimo, à jornada de trabalho de oito horas, às férias e ao descanso remunerado, à aposentadoria e ao trabalho regular – de que a carteira profissional tornou-se o documento histórico.
Ao mesmo tempo, formou-se um forte empresariado nacional, que multiplicou a empresa privada, com base nas iniciativas estatais para dotar o país de uma indústria de base – siderurgia, petróleo, mineração, eletricidade. O controle de nossa própria economia e, consequentemente, de nosso próprio destino, resumem a política e o programa econômico de Getúlio.
O Brasil foi a obra de Getúlio.
Em 1930, nosso país era extremamente atrasado, dominado por uma oligarquia cafeeira submissa ao capital financeiro inglês, cuja principal – quase exclusiva – atividade econômica estava em fornecer, a preços mesquinhos, determinados pela metrópole, produtos agrícolas e matérias primas para o exterior.
A indústria era extremamente débil. Importávamos, a preços exorbitantes, também determinados pela metrópole, produtos industriais, usufruídos pela pequena parcela de privilegiados. A estagnação, o desemprego, a miséria, a fome, o analfabetismo imperavam no país, das grandes cidades – que eram somente duas – aos lugares mais remotos.
Um regime político senil se sustentava pelo voto a bico de pena, isto é, pela fraude, ou pela violência pura, simples e estúpida, empenhando o Tesouro aos bancos, principalmente ingleses.
Os trabalhadores – em geral das poucas indústrias têxteis inglesas ou das empresas também estrangeiras que dominavam áreas de serviços urbanos – não tinham mínimos direitos.
O tênue empresariado nacional sufocava com os obstáculos ao crescimento – basicamente, a drenagem dos recursos do país para fora.
Este foi o pântano que a Revolução de 30 volatizou, o regime econômico, social e político dos carcomidos e dos servos oligárquicos.
A marcha de Getúlio, de Porto Alegre ao Rio, com o povo tomando ruas, praças, estações e margens das ferrovias para saudar o líder e as tropas da revolução, tornou-se o símbolo de que um novo mundo se iniciava, um novo Brasil começava ali.
A oligarquia, podre, caiu. Como sempre acontece, reagiu com o desespero dos condenados a desaparecer. Tentou uma contrarrevolução em 32, com um pretexto pseudo-constitucionalista, quando as eleições para a Constituinte já haviam sido convocadas e marcadas – por Getúlio.
Foi derrotada. Tentou outra vez voltar ao poder, e foi novamente derrotada, em 37.
Getúlio decretou a moratória, estancando a hemorragia de nossos recursos como “dívida externa”. Canalizou parte da renda com a exportação do café para a industrialização. O emprego de nossas riquezas e recursos em proveito do nosso desenvolvimento, ao invés de alimentarem a voracidade colonialista, foi concretizado com a CSN, Vale do Rio Doce, Companhia Nacional de Álcalis, Fábrica Nacional de Motores e depois a Petrobrás e a Eletrobrás – fundada a primeira, e projetada a segunda, durante o segundo governo de Getúlio.
Com a concentração, através da ação do Estado, dos esforços e recursos internos, sem endividar o país, com a inflação mais baixa de toda a história do Brasil, impulsionou uma vaga de desenvolvimento econômico tão poderosa que, mesmo com todas as distorções posteriores a ele, se estendeu até o fim da década de 70, com o maior crescimento de um país capitalista neste período de 50 anos.
Na verdade, Getúlio, à frente do povo brasileiro, fundou o Estado nacional, o Estado público, o Estado popular, onde antes existia um Estado de casta, dominado por meia dúzia, em suma, um Estado oligárquico e excludente.
A fraude eleitoral da oligarquia, o “bico de pena”, foi abolida e instituído o voto universal e secreto. As mulheres, pela primeira vez, conquistaram o direito de votar e serem votadas. Os sindicatos, antes frágeis, minúsculas e isoladas entidades, foram consolidados com o imposto sindical, a unicidade e a fundação de federações e confederações estaduais e nacionais.
Foi promovida a mais ampla e profunda revolução administrativa, com a fundação do DASP, o estabelecimento de um programa de capacitação do funcionário – que nessa época recebeu o título honroso de “servidor público”, ou seja, servidor do povo e da coletividade -, a instituição do concurso público, plano de carreira e critérios de mérito, com a valorização salarial do serviço público.
Sob esse aspecto – o do atendimento ao povo – em todas a áreas, Saúde, Educação, Habitação, Transportes, nunca os brasileiros tiveram tal qualidade de serviços.
As Forças Armadas, que, após o governo Floriano, tinham sido enfraquecidas pela oligarquia em prol de tropas regionais submissas a ela e seus aliados de ocasião, foram fortalecidas, reequipadas e assumiram o seu papel na Defesa Nacional. As brilhantes e heroicas vitórias contra o nazismo na Itália as consagraram internacionalmente.
Getúlio e a Revolução de 30 elevaram um país que se constituía numa série de províncias, algo isoladas, com governos que eram quase autárquicos, até mesmo com forças armadas próprias, ao patamar da unidade nacional no plano político e cultural.
A Rádio Nacional – numa época em que o rádio era o mais poderoso meio de comunicação – unificou a língua, dando o aspecto definitivo ao português falado no Brasil e divulgou as manifestações culturais de todo o país, dando a elas todas, respeitando a sua peculiaridade, riqueza e variedade, um caráter nacional. Com as grandes figuras que, como Villa-Lobos, sintetizaram seu conteúdo popular, foi conformada uma verdadeira cultura nacional.
Por esta obra, para construir o Brasil, Getúlio viveu e morreu.
Realmente, diante da obra desse titã, os retardados carrapatos da oligarquia caduca, servis aos interesses dos agiotas externos, aos inimigos do país e do povo, não poderiam mais do que destilar o seu rancor – com a alucinação de que poderiam, setenta anos depois, fazer o país regredir à colônia que Getúlio transformou em uma Nação.