O texto abaixo, do maestro Marcus Vinicius, foi apresentado ao Observatório da Democracia, em maio, pela Fundação Instituto Cláudio Campos.
Pela sua excepcional clareza e lucidez (nem sempre uma é sinônima da outra), que o leitor poderá conferir, nós o oferecemos aos nossos leitores.
O Observatório da Democracia é composto pela Fundação João Mangabeira (PSB), Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), Fundação Mauricio Grabois (PCdoB), Fundação Perseu Abramo (PT), Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL), Fundação Instituto Claudio Campos (PPL) e Fundação da Ordem Social (PROS).
C.L.
MARCUS VINICIUS DE ANDRADE
Dizem que no mundo não há nada tão ruim que não possa piorar. Essa boutade da sabedoria popular parece ser verdade verdadeira quando o tema é a Cultura brasileira nos tempos atuais, em que a terra é plana e Cristo surge encarapitado em goiabeiras, talvez “insitando” todos contra as bibliotecas, escolas e universidades inquisitoriais, onde se metamorfoseiam as kaftas mais palatáveis à certa mesa ministerial.
De fato, no balanço dos tempos recentes vemos que a situação da Cultura no país se agrava a cada dia. Até porque, muito mais que a piora propriamente dita, cujos sinais são visíveis a todos, ela está sendo afetada pelo vírus da imobilidade, da inação – coisa que nem todo mundo percebe, mas que contribui para reforçar, perante a opinião pública, a ideia de insignificância que a atividade cultural vem adquirindo nos dias atuais, lamentavelmente. A sensação que se tem é que, se tirarem a Cultura do mapa do país, ninguém irá notar. Pior, muitos vão até aplaudir.
Por paradoxal que pareça, a imobilidade cultural é a única coisa que está avançando em nosso país. De tanto ficarmos parados enquanto a realidade se mexe, acabaremos indo pra trás, o que nos faz lembrar a frase famosa de Lewis Carrol (1832-1898, o criador de Alice no País das Maravilhas) mencionada por um economista da CEPAL, nos anos 1960, ao falar do subdesenvolvimento latino-americano: “Vamos ter de correr muito pra ficar no mesmo lugar.”
E estamos ficando. Ou avançando para trás, como os soldados da Guerra do Paraguai retratados pelo escritor catarinense Deonísio da Silva (1948-) em romance premiado em Cuba pela Casa de las Américas, em 1992. Quem achou que o incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018, foi o momento mais vergonhoso da Cultura brasileira dos tempos recentes, não perdeu por esperar. A vergonha não parou por ali: o que dizer quando se sabe que, há algumas semanas, o já quase folclórico MEC simplesmente cortou cerca de R$ 12 milhões destinados à recuperação daquele museu, valor equivalente a 21,63% do orçamento de R$ 55 milhões concedidos para tal finalidade por emenda coletiva da bancada de deputados do Rio de Janeiro? Ou que este mesmo MEC do país das goiabeiras transferiu à UNESCO, ainda no ano passado, um valor de R$ 5 milhões para um “projeto de desenvolvimento das bases conceituais e técnicas” para a reconstrução do Museu Nacional? Ou seja: repassou a uma entidade internacional um valor expressivo por um projeto, ainda mais meramente conceitual, enquanto não hesitou em cortar recursos para uma ação concreta e urgente, qual seja a própria obra de recuperação do Museu.
O acompanhamento do atual quadro brasileiro revela que o governo federal, na área da Cultura, afora não ter elaborado ainda uma verdadeira Política Pública para pautar suas prioridades, continua também desconsiderando os dados e indicadores existentes sobre a Economia Criativa do país, mesmo que estes possam ser frágeis e desencontrados, como apontaram especialistas da área em Seminário realizado neste mês de maio, na cidade de São Paulo. Ou seja: por faltar-lhe articular um discurso consistente sobre a questão cultural, o governo vem sendo reprovado em Português; e reprovado igualmente em Matemática, visto não ser capaz de lidar com os números sobre a economia da cultura no país, em lugar dos quais prefere as ilações e achismos dos palpiteiros de ocasião, em geral baseados em teorias conspiratórias, preconceitos ideológicos e outras sandices do gênero. Não por outra razão, mesmo certos dados apurados pelo próprio governo vêm sendo sumariamente descartados e jogados no lixo, como aconteceu com a pesquisa sobre drogas realizada ao longo de três anos pela Fiocruz, que ouviu cerca de 16 mil entrevistados e teve um custo final de 7 milhões de reais. Para uma lata de lixo, tá muito bom…
Entre as ilações e achismos governamentais, a demonização dos incentivos públicos à Cultura continua a ser o fator mais recorrente. E um dos mais prejudiciais, justamente por falsear a compreensão da realidade cultural pela sociedade: sonega-se a esta, p. ex., a informação de que a hoje malsinada Lei Rouanet sempre representou uma fatia ínfima de todos os instrumentos de renúncia fiscal no país, significando apenas 0,5% do que o Brasil deixa de coletar em impostos com programas de incentivo. Mesmo com suas imperfeições, entre 1993 e 2018 essa lei foi capaz de incluir quase R$ 50 bilhões em nossa economia cultural, valor muito superior aos R$ 31 bilhões concedidos pelo Estado, a título de renúncia fiscal, no mesmo período (valores corrigidos).
Enquanto o governo Bolsonaro desdenha de dados e números, a sociedade, hoje induzida ao anti-intelectualismo por estímulo dos setores oficiais, continua sem saber que a Indústria Criativa nacional, segundo mapeamento realizado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – FIRJAN, apenas no ano de 2017 foi capaz de injetar R$ 171 bilhões na economia brasileira, um montante equivalente a 2,6% do PIB do país naquele ano, apesar da crise. E quem achar que esses números são excessivos, deveria dar-se conta de que a vizinha Colômbia, tendo um PIB cultural apenas um pouco inferior ao nosso, planeja ampliá-lo para 7% até 2022. E nós, estamos projetando alguma coisa?
Há poucas semanas, no programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, o Ministro da Cidadania, Osmar Terra, apresentou algumas ideias para a Secretaria Especial de Cultura – SECULT, que integra sua pasta como sucedânea do antigo Ministério da Cultura. Tivemos a grata surpresa de constatar que muitas das ideias do Ministro se aproximavam de projetos defendidos inclusive por correntes políticas progressistas, o que fazia crer que o debate cultural nacional preservaria alguma continuidade, com base numa plataforma comum de propósitos e princípios há muito esboçados. Da mesma forma, não deixamos de ficar animados ao ver o Presidente da República, em recente encontro com os presidentes da Câmara, do Senado e do STF, anunciar seu intento de revogar o vasto emaranhado de normas, decretos, portarias, instruções normativas, etc., que de algum tempo a esta parte vem truncando e cerceando funcionamento das entidades civis da área cultural, atrelando-as aos ditames de um governo paquidérmico e sem políticas públicas definidas. Infelizmente, palavras o vento leva. Nem a SECULT do Ministro Osmar Terra, nem a Presidência da República estão cumprindo seus arroubos transformatórios, com o que a inércia, principalmente na área da Cultura, tornou-se regra. Com isso, o Brasil vem perdendo… e muito.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, a área da Cultura é responsável por gerar cerca de 30 milhões de empregos em todo o mundo, bem como por movimentar US$ 4,3 trilhões ao ano (ou R$ 17,4 trilhões), o que equivale a aproximadamente 6% da economia global. Tomada isoladamente, caso esta área fosse um país, seria a 7ª maior economia do planeta.
Ao tratar a Cultura apenas como perfumaria ligada às diversões de massa, sem considerar seu valor como ativo econômico de alta relevância na economia mundial, o governo brasileiro dá um tiro no pé, pois a despreza como base para a afirmação do projeto de nação que todos desejamos realizar. Como já dito por muitos, para estudiosos como Lawrence Harrison, Samuel Huntington, Thomas Sowell, Robert Putnam e outros, é a Cultura – e não a Política – que determina o sucesso, inclusive material, de uma sociedade. Não por outra razão, quando Londres sofria com os bombardeios na II Guerra Mundial, ao ser instado a cortar verbas para os museus e concentrar gastos no esforço militar, Winston Churchill (1874-1965) não hesitou em responder: “Mas se não é pela Cultura, pelo que estamos lutando?”
Os atuais governantes brasileiros precisam estudar Português para poderem definir o discurso sobre a Cultura que pretendem, e aprender Matemática para compreenderem a dimensão econômica desta Cultura para o país.
Só que, antes, vão ter de descer da goiabeira.
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