“Eu os identifico a todos. E são, muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar.”
(MARECHAL HUMBERTO DE ALENCAR CASTELLO BRANCO, Discurso no Estado-maior do Exército, 25 de agosto de 1964)
A tese do sr. Yves Gandra – repetida e repercutida euforicamente por Bolsonaro e sua trupe digital – de que o artigo 142 da Constituição de 1988 transformou as Forças Armadas em “poder moderador” da República, acima do Legislativo e do Judiciário, é, como disse o jurista Modesto Carvalhosa, meramente “golpista” – e, nesse caso, acrescentamos nós, golpista do tipo bolsonarista, ou seja, tão obtusa, obscurantista e fascista quanto é o chefe de milícia que ocupa o Planalto.
Porém, Gandra diz que é uma autoridade no assunto, que foi consultor ou redator na Constituinte, e que foi comentador da Constituição de 1988 (v. seu recente artigo, Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes, Consultor Jurídico, 28/05/2020).
Resta saber por que, com essas credenciais, somente 32 anos após a aprovação da Constituição – e somente quando há uma anormalidade, como Bolsonaro, na Presidência da República – ele apareceu publicamente com essa tese.
Sobretudo quando, além dele, há centenas de pessoas que estavam lá quando a Constituinte aprovou o dispositivo mencionado por Gandra, e nenhuma se lembra de que o “legislador constituinte” (isto é, os deputados e senadores que fizeram e aprovaram a Constituição) tenha restaurado, ou quisesse restaurar, o “poder moderador” no Brasil.
Se fosse assim, por que os constituintes não escreveram tal coisa na Constituição?
Segundo Gandra, porque “não haveria sentido de o constituinte usar um ‘pleonasmo enfático’ no artigo 142 da Carta Magna, visto que a Lei Suprema não pode conter palavras inúteis”.
Ou seja, os constituintes não escreveram que queriam restaurar o “poder moderador”, somente para que Gandra, 32 anos depois, esclarecesse que era isso o que eles pretendiam…
Mas vamos ao conteúdo da Constituição. Seu artigo 142 diz o seguinte:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Não poderia ser mais claro. Como disse o jurista Modesto Carvalhosa (e, aliás, todos os juristas do país):
“O art. 142 da CF coloca as Forças Armadas a serviço da manutenção da lei e da ordem a pedido de qualquer um dos três Poderes. Não dá prerrogativa de o Exército intervir no STF. O povo brasileiro não admite essa interpretação golpista.”
Carvalhosa, aqui, é um bom referencial, pois é insuspeito de simpatizar com alguns ministros do STF. Já, até mesmo, pediu o impeachment de Gilmar Mendes, por sabotagem à Operação Lava Jato.
Mas isso não o faz apoiar o que seria um golpe de Estado contra o STF, o Congresso e contra as próprias Forças Armadas – que, como lembrou o general Santos Cruz, “são instituições permanentes do Estado brasileiro e não participam nem se confundem com governos, que são passageiros, com projetos de poder, com disputas partidárias, com discussões e disputas entre Poderes ou autoridades” (v. HP 28/05/2020, O Militar e a Política, pelo general Santos Cruz).
O Exército e as demais Forças Armadas não têm nenhuma culpa quando o sr. Gandra se comporta como vivandeira de quartel – e cobre essa atividade com uma toilette jurídica.
Se alguém tivesse dúvida sobre isso, bastaria o conteúdo da tese de Gandra para evidenciar que esse travestismo ou transformismo golpista nada tem a ver com as Forças Armadas.
1) “poder moderador”
O Poder Moderador foi abolido pela Revolução Republicana, por ato assinado pelo marechal Deodoro da Fonseca e demais ministros, posteriormente referendado pela Constituinte de 1891.
O “poder moderador” era a ditadura pessoal do imperador, que permitia que mudasse o governo, sem eleições, que desrespeitasse a maioria da Câmara, resultante das últimas eleições, que dissolvesse a própria Câmara, mesmo sem qualquer impasse parlamentar – e permitia que afastasse, sem precisar justificar-se, os ministros do Supremo Tribunal que lhe desagradassem, como fez Pedro II com os quatro ministros que votaram contra as pretensões de sua amante, condessa de Barral, de apropriar-se da herança de seu sogro (para um relato detalhado, v. Os monarco-bolsonaristas e seu passado radiante).
Caxias, especialmente a partir da Guerra do Paraguai e até o final da vida, 15 anos depois, demonstrou uma ojeriza visceral ao “poder moderador”, pelo qual o imperador não dependia de qualquer instituição ou mecanismo democrático, parlamentar ou judiciário, para mandar e desmandar no país.
Portanto, o Exército nada tem a ver com isso.
Pelo contrário, foi contra o “poder moderador” que se bateram Benjamin Constant e Sena Madureira, depois, Deodoro e Floriano.
2) As Forças Armadas são parte do Poder Executivo. Portanto, se elas estivessem acima do Supremo Tribunal Federal, isso significaria que o Poder Executivo estaria acima dos outros poderes.
3) Entretanto, diz Gandra, “tal intervenção [das Forças Armadas como ‘poder moderador’] apenas diria qual a interpretação correta da lei aplicada no conflito entre Poderes”.
“Apenas”?
Porém, o mais curioso vem a seguir:
“… também se o conflito se colocasse entre o Poder Executivo Federal e qualquer dos dois outros Poderes, não ao Presidente, parte do conflito, mas aos Comandantes das Forças Armadas caberia o exercício do Poder Moderador” (grifo nosso).
Gandra, portanto, omite que o comandante-em-chefe das Forças Armadas – portanto, o comandante dos Comandantes das Forças Armadas – é o presidente da República, segundo a Constituição que diz tão bem conhecer.
Logo, os Comandantes das Forças Armadas não podem ser “moderadores” entre o presidente e o STF ou o Congresso. Não é à toa que eles não querem esse papel. Como militares, eles estão acostumados a uma lógica de clareza meridiana. O papel de “poder moderador” seria tão esdrúxulo que feriria os próprios valores militares.
Aliás, é justamente a extravagância tacanha de tal concepção, que mais denuncia o seu caráter antidemocrático. Que consiste na tentativa de usar as Forças Armadas para objetivos espúrios, contra a Nação e o povo brasileiro. O que, no momento atual, reduz-se a tentar usá-las para proteger a família Bolsonaro, e seu entorno miliciano, da Justiça e da polícia.
Assim, os bolsonaristas fizeram uma bacanal com a tese de Gandra.
Algo tão ridículo, que fez o próprio Gandra declarar:
“Como não sou político, mas apenas um velho advogado e professor universitário, que sempre buscou exercer a cidadania, continuarei a interpretar, academicamente, o artigo 142, como agora o fiz, com o respeito que sempre tive às opiniões divergentes, não me importando com as críticas menos elegantes dos que não concordam comigo. (…) Só são democráticas as teorias não abrangentes, pois estas admitem contestação e diálogo. Aos 85 anos, felizmente não perdi o meu amor ao diálogo e à democracia”.
Não levantaremos contra Gandra o fato de que sua filha, no governo Bolsonaro, é titular da Secretaria da Família.
Mas Gandra sempre foi um político dentro da profissão jurídica, desde a época do Partido Libertador, do velho Raul Pilla, antes de 1964.
Entretanto, nunca tentou ir tão longe quanto conciliar o seu apoio a Bolsonaro com o seu “amor ao diálogo e à democracia”.
Deve ser por isso que o jurista desapareceu.
CARLOS LOPES