(HP 01-02/04/2015)
A política de Saúde do governo Dilma – não apenas agora, quando o sr. Levy submete as contas públicas a uma carnificina sem precedentes no Brasil após 1930 – tem sido a de liquidar com o Sistema Único de Saúde (SUS). Em suma, a de criar dois sistemas: um para os ricos e outro – insuportável – para os pobres. Uma política de privatização e desnacionalização.
É bastante difícil, até mesmo, dizer que ainda temos um sistema “único”. Seria necessário provar que o UnitedHealth Group, dono da Amil e com sede em Minnetonka, Minnesota, faz parte do mesmo sistema que o Hospital Estadual Getúlio Vargas, localizado na Penha Circular, Rio de Janeiro. Tal prova nos parece impossível.
A rigor, não é a criação de dois sistemas que está em pauta no governo Dilma. Esta é apenas uma forma, digamos, didática, de falar. Na realidade, levada essa política até as suas últimas consequências, trata-se de nenhum sistema: quem tem dinheiro paga pelo atendimento – e quem não tem dinheiro, não tem atendimento.
Como tudo nesse governo, vive-se de marketing e encenações que seriam ridículas, se não fossem, para a maioria, dolorosas. Porque aquilo que há de mais pervertido no neoliberalismo é a ideia (?) de que a sociedade tem que ser a mais desigual possível – uma ideologia que corresponde, apenas, ao interesse dos monopólios financeiros, em nosso caso, estrangeiros.
Na impossibilidade de defender abertamente sua verdadeira política, seus adeptos recorrem ao que pode ser chamado de política do trambique – agudamente enfatizada pelo estelionato eleitoral de 2014. Mas, também, é o caso da PEC 358, quando uma reivindicação popular (os 10% da receita corrente bruta para a Saúde) foi transformada numa redução violenta de verbas, sob a aparente – e vigarista – forma de aumento (15% da receita corrente líquida em cinco anos).
Temos, atualmente, uma estrutura hospitalar totalmente inadequada, onde 70% dos hospitais são privados – sem contar a propriedade pública que foi entregue a apaniguados. Uma situação inimaginável durante a elaboração da Constituição de 1988. Como lembrava o saudoso colega Dr. Gílson Carvalho, os que estivemos envolvidos com a questão de Saúde na Constituinte, na época, consideramos o setor privado como complementar ao setor público.
E era justo que fosse assim. A questão, evidentemente, era (como ainda é) oferecer cobertura sanitária (não apenas médica, mas é evidente que a cobertura médica, do ponto de vista da necessidade imediata da população, tem um papel decisivo) ao conjunto do nosso povo.
Isso não é possível com base no lucro, pela simples razão de que não é possível tornar mercadoria a vida e a saúde sem acabar com a vida e a saúde de uma parte – a mais pobre – da população. Como complemento conveniado do sistema público, as estruturas privadas poderiam ser incluídas – e foram incluídas – no SUS (mas jamais, como agora, contra o SUS).
Há perguntas que são fáceis de responder logo que se coloque a pergunta correta. Por exemplo: o que quer o atual governo com a esculhambação cada vez maior da Saúde?
Parece evidente, por si mesmo, que o ideal (!?) de atendimento em Saúde, no atual governo, é a compra, pelos brasileiros, de um “plano” privado de Saúde – de preferência de uma empresa americana…
Daí se explica o domínio da própria agência fiscalizadora dessas empresas de “planos”, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por egressos dessas mesmas empresas – as quais, supostamente, seria função dessa Agência fiscalizar. Colocar as empresas de “planos de saúde” para fiscalizar a si próprias, através da ANS, é tão ou mais indecente quanto… bem, o leitor sabe a história da raposa e do galinheiro. Não precisamos repeti-la.
Da mesma forma, assim se explicam as simpatias, no governo, ao projeto do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, de obrigar as empresas a comprarem planos de saúde privados para os seus empregados. Evidentemente, um projeto muito desinteressado…
Os textos a seguir foram extraídos da “Domingueira da Saúde”, coluna fundada por Gílson Carvalho – falecido em 2014 – e continuada por seus colegas e companheiros, no site do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).
Nosso objetivo, ao reproduzir esses escritos, que condensamos, é informar ao leitor sobre a situação. As conclusões políticas que enunciamos são responsabilidade exclusivamente nossa – em nossa opinião, elas correspondem aos fatos. Mas o leitor poderá julgar por si mesmo.
C.L.
A contrarreforma mais recente na saúde universal brasileira
ÁQUILAS MENDES*
Em 17 de dezembro de 2014 foi aprovada no Congresso Nacional a MP 656/2014 que, dentre outras medidas, promove a abertura da saúde para o capital estrangeiro. De acordo com essa medida provisória, empresas e capitais estrangeiros poderão instalar, operar ou explorar hospitais (inclusive filantrópicos) e clínicas. Também poderão atuar em ações e pesquisas de planejamento familiar, e serviços de saúde exclusivos para atendimento de funcionários de empresas. Atualmente, a presença do capital externo já existe em outras áreas da saúde, a exemplo dos planos e seguros de saúde, e de farmácias. A MP altera a Lei Orgânica da Saúde (8.080/90), que originalmente proíbe os investimentos estrangeiros no setor, e fere também a Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº 199.
Imediatamente após essa aprovação, várias entidades vinculadas ao Movimento da Reforma Sanitária (MRS) redigiram um manifesto solicitando o veto presidencial ao artigo 142 do texto da MP. Porém, o veto da presidenta Dilma não ocorreu e, em 19 de janeiro de 2015, foi editada a Lei nº 13.097, publicada no Diário Oficial da União de 20/01, desrespeitando o texto constitucional.
O governo federal tem insistido no argumento de que a primeira “brecha” para a entrada de capital estrangeiro no mercado de saúde brasileiro ocorreu em 1998, com a lei que regulamenta Planos de Saúde e, sendo assim, a Lei n.º 13.097 não constitui uma novidade nesse campo.
A partir da Lei de 1998, operadoras de saúde de capital internacional, sob a liderança do capital financeiro, foram autorizadas a comprar planos no Brasil. Sabe-se que desde então, a empresa United Health adquiriu a Amil e o grupo americano Bain Capital – fundo de private equity e venture capital – comprou a Intermédica.
Contudo, os arautos dessa argumentação esquecem-se de dizer a respeito da resistência por parte de várias entidades vinculadas ao SUS quando da aprovação dessa Lei e, principalmente, os problemas que essa decisão foi prejudicando a defesa do direito universal à saúde. Sem dúvida, a Lei n.º 13.097 veio para agravar ainda mais a possibilidade de ampliarmos a conquista desse direito pela sociedade brasileira.
PEC 138
É importante que se recorde que a PEC 358/2013 foi priorizada no Congresso Nacional, desde maio de 2014, com a sua aprovação em primeiro turno e, finalmente aprovada, em segundo turno, em 10 de fevereiro de 2015.
Nessa PEC, que institui o “Orçamento Impositivo” (obrigatoriedade de execução total das emendas parlamentares no orçamento), foi incluída uma nova base de aplicação do governo federal na saúde (arts 2º e 3º), alterando a base de cálculo de Receita Corrente Bruta para Receita Corrente Líquida (RCL), inclusive sendo executada de forma escalonada em cinco anos, isto é, 13,7% dessa RCL, para o primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação dessa PEC, até alcançar 15% da mesma, no quinto exercício financeiro, respectivamente.
Já há vários cálculos realizados que indicam uma redução dos recursos do SUS. Há quem aponte uma perda de cerca de R$ 8,6 bilhões para as ações e serviços públicos de saúde já no primeiro ano de implantação da PEC, em 2016.
Além disso, a PEC 358 aprovada trará dois graves problemas:
a) o recurso referente ao Pré-Sal deixará de ser um excedente para a saúde, como estava previsto na Lei 12.858/2013, passando a incorporar a nova base de cálculo determinada pela PEC e, consequentemente com perdas de alguns bilhões de reais;
b) um aumento das emendas parlamentares para um teto de 1,2% da Receita Corrente Líquida, sendo que 0,6% seriam retiradas do orçamento da saúde. Dessa forma, a situação de restrições ao financiamento do SUS será ainda maior.
Essa PEC 358 ainda incluiu o aumento do quórum [no Congresso] para novas mudanças do financiamento da saúde federal. Isso porque, somente poderão ser feitas modificações no financiamento por meio de emenda constitucional e não mais por lei complementar, tornando mais difícil aumentar os recursos para a saúde, pois serão necessários maioria de 3/5 dos votos.
* Professor Doutor Livre-Docente de Economia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP.
A PEC 451 em colisão com o direito à saúde e os princípios basilares do SUS
LENIR SANTOS*
Quando pensamos que contra o SUS já vimos tudo, concluímos que muito poderemos ver ainda. Não bastou o seu subfinanciamento originário e crônico; a sua não priorização pelos Governos desde 1990; a sua dificuldade de se organizar conforme determina a Constituição (27 anos); o centralismo federal; o descumprimento das normas dos critérios de rateio dos recursos entre os entes federativos; a judicialização, pêndulo que se movimenta mais em desfavor do SUS do que em seu favor, dentre outros problemas crônicos. Neste final de 2014 e inicio de 2015 tivemos duas derrotas que serão sentidas na garantia do direito à saúde em curto espaço de tempo.
A primeira, a PEC 368, hoje EC 86, de 2015, a qual dispõe sobre o orçamento impositivo e o percentual de recursos da União vinculado à saúde, o qual deveria ter como valor mínimo, o equivalente a 10% de suas receitas correntes brutas e que ficou constitucionalizado em 15% das receitas correntes líquidas (em cinco anos), com grandes perdas para o orçamento da saúde. E a sua constitucionalização será um novo problema, uma vez que antes estava a cargo de lei complementar.
A segunda, a Lei 13019, de 2014, que abriu a assistência à saúde ao capital estrangeiro, numa afronta à vedação constitucional inserta no art. 199, § 3º, que proíbe tal participação, ainda que crie algumas exceções. Este artigo 141 da lei está sendo arguido de inconstitucionalidade pelas entidades de defesa do SUS.
Surge agora no cenário legislativo da Câmara Federal, a PEC 451, de 2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha, alterando o art. 7º da Constituição, inserindo novo inciso, o XXXV, o qual obriga todos os empregadores brasileiros a garantirem aos seus empregados serviços de assistência à saúde, excetuados os trabalhadores domésticos. E não devemos nos esquecer de que para propor uma PEC há que se ter assinatura de 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. Não foram poucos os que a endossaram…
Sua justificativa é a de que o art. 196 da CF (garantia do direito à saúde) como norma programática que é, ou seja, de eficácia limitada, a qual dependeria de regulamentação que disponha sobre seus limites, poderá postergar esse direito ao trabalhador urbano e rural, ao qual deve ser garantido serviço de assistência médica como direito fundamental do trabalhador previdenciário. Apenas para lembrar, o STF já decidiu que a norma do art. 196 não é de eficácia limitada, mas sim imediata, assim como a maioria dos constitucionalistas neste país; esse lema de eficácia limitada já passou. Mais uma página virada. Já temos 27 anos de Constituição e o SUS é uma realidade jurídica, política e social.
Tal proposta de alteração à Constituição gera uma antinomia jurídica por romper com o princípio consagrado no art. 196, que estatui ser a saúde um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que reduzam o risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. De repente a saúde integral da Constituição se segmenta de forma absurda na PEC, tanto quanto ao seu usuário e quanto ao seu conceito.
Garantir planos de assistência médica ao trabalhador urbano e rural (nem se faz mais esta distinção) é revisitar o INAMPS em sua pior forma: um grande INAMPS privado, de operadoras e seguradoras de planos de saúde que garantiriam aos trabalhadores filiados ao regime geral da previdência social, assistência privada médica.
As aberrações políticas, jurídicas e sanitárias são tantas que se torna difícil expô-las de modo resumido, que é o nosso propósito neste texto. A primeira afronta é ao art. 196 da CF que garante o direito à saúde em seus mais abrangentes termos: qualidade de vida (fatores determinantes e condicionantes da saúde) e ações e serviços de proteção e recuperação da saúde. O primeiro mandamento refere-se às políticas sociais e econômicas que evitem o agravo à saúde, ou seja, que se permita que a saúde floresça sempre; o segundo, ações e serviços públicos de acesso universal e igualitário (a todo cidadão, sem distinção) que proteja a sua saúde e a recupere quando agravada.
Garantir como direito fundamental do trabalhador previdenciário plano de saúde privado de assistência médica é voltar à velha luta de reduzir saúde à assistência médica, além de ferir o princípio da igualdade: saúde para todos, direito fundamental de acesso universal! É criar distinção entre cidadãos: trabalhador com vínculo de emprego; sem vínculo; não trabalhador, aposentado e assim por diante.
Essa discussão foi superada pela Constituição de 88, e teve como protagonistas dos debates, durante os anos 70-80, o movimento da Reforma Sanitária e os movimentos sociais que lutaram por um estado de bem estar social que garantisse saúde a todos! De forma universal e igualitária; saúde sem dicotomia entre o preventivo e o curativo centrado apenas no médico.
Se tal medida prevalecer haverá um SUS definitivamente segmentado, atrasado e arrasado, uma vez que quanto mais o segmentam por categoria de pessoas e modelo assistencial, mais pobre e precário ele resultará.
Além do mais há questões jurídicas relevantes a ser consideradas, como a da antinomia jurídica mencionada acima; a da inconstitucionalidade da proposta por ferir o disposto no art. 196 da CF que traz concepção de direito social e individual de acesso universal e igualitário de responsabilidade estatal; concepção de saúde que retoma o conceito do anterior Sistema Nacional de Saúde, da lei 6229, de 1975, revogado pela lei 8080, de 1990. Essa PEC é um retrocesso aos avanços sociais neste país, à diminuição das desigualdades. Trata-se sem dúvida de uma proposta constitucional inconstitucional.
É mais uma tentativa de transformar o SUS num sistema complementar aos planos privados de saúde; um sistema pobre para pobre, o qual cria categoria de cidadão e aprofunda as nossas já aberrantes desigualdades sociais. Mais uma?
A quem interessa tal mudança drástica na nossa Constituição e no nosso SUS? Não podemos nos esquecer do grave duo legislativo no apagar das luzes de 2014: baixo financiamento e abertura da assistência à saúde ao mercado nacional e internacional. Teremos a tríade: baixo financiamento, capital estrangeiro na assistência de planos de saúde, obrigatoriedade de todos os empregadores garantirem um plano de saúde para seus trabalhadores.
Com as emendas impositivas vamos retirar um percentual do orçamento da saúde – que já estava lá, não é novo – o qual deveria estar vinculado ao planejamento e plano de saúde, com metas, e ser transferidos aos entes federativos. Esse mesmo recurso que já pertencia aos entes federativos para financiar a sua saúde sai para retornar pelas mãos dos parlamentares aos seus donos originários, mediante escolhas e negociação e não mais pelos interesses de saúde da população consagrados nos planos de saúde.
E ainda os recursos do Pré-sal, que seriam um adicional, estarão incorporado aos valores mínimos da União, que nunca passam do mínimo, ainda que por piso não se possa compreender teto. Piso é base e teto é fim.
Na verdade, estão a solapar a maior política pública de justiça social do país: o SUS, universal e igualitário. A maior política inclusiva brasileira que chegou tarde e cedo querem retalhá-la.
* Advogada, especialista em direito sanitário pela SP, procuradora aposentada da Unicamp.