O ataque de grupos paramilitares a manifestantes que se somaram à “Marcha das Flores”, convocada em memória dos mais de 300 mortos pelo governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo, deixou ao menos dois mortos, inúmeros feridos e duas dezenas de presos no último domingo em Manágua. Esta foi a segunda vez em menos de 24 horas que um protesto cívico enfrenta elementos armados na capital nicaraguense.
À tarde, dezenas de pessoas se concentraram diante da penitenciária El Chipote denunciando a detenção ilegal de amigos e familiares por paramilitares em várias cidades do país, como Tipitapa, Sébaco e Nagarote. Conforme Marcos Carmona, diretor da Comissão Permanente de Direitos Humanos (CPDH), o governo “está executando uma verdadeira caça às bruxas” contra opositores. Ele acrescentou que os paramilitares têm uma lista de manifestantes, que são procurados em suas casas e entregues à polícia.
Para Gonzalo Carrión, diretor jurídico do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh), só na cidade de Sébaco (ao norte) foi confirmada a detenção de 19 pessoas. Carrión confirmou a morte de um jovem de 23 anos, vendedor de bandeiras, logo ao final da Marcha das Flores, e de um estudante de 20 anos, após o ataque à Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua.
Maria Mercedes Salgado, integrante do Coletivo de Nicaraguenses no Brasil pela Nicarágua
Integrantes do Coletivo estiveram no domingo na Avenida Paulista para denunciar a agressão orteguista. Entre os presentes ao ato estava Maria Mercedes Salgado, que destacou que a palavra de ordem da Marcha das Flores foi “desarmar as forças paramilitares”.
Em declarações à Hora do Povo, Mercedes esclareceu o processo de deterioração de Ortega e seu grupo:
“O primeiro momento visível foi em 1995 quando começou a ganhar corpo dentro da Frente Sandinista a visão de que valia abrir mão de algumas questões de princípio para atingir a institucionalidade, ou seja, chegar de novo ao governo. Neste período houve o afastamento do ex-vice-presidente, Sergio Ramirez, e a comandante guerrilheira Dora Maria Tellez.
“Esse processo se aprofundou em 1998 quando foi feito um acordo com Alemán, antigo somozista, direitista, pelo qual foram divididos os cargos de governo. Nesta fase se afasta outra comandante, Mónica Baltodano e, dos 8 comandantes, somente três (incluindo Borge e Arce) permanecem nessa nova estrutura, alguns se afastaram da atividade política e outros passaram a atuar, entre outros, no Movimento de Restauração Sandinista (MRS).
“A partir desse pacto aprofundou-se a deterioração. Surge uma política clientelista e de terceirização de atividades. Chegou-se até à terceirização da força militar e policial através de paramilitares contratados por 500 córdobas ao dia (cerca de 60 reais). Estes paramilitares são os que massacram a população.
“O clientelismo arrebanha apoios em troca de bens de extrema necessidade. As pessoas vão a atos de apoio ao governo em troca de telhados de zinco.
“Houve um processo de desmobilização popular a partir deste pacto.
“Quanto à ‘explicação’ de setores da esquerda ainda confusos com relação a Ortega, de que o levante que agora acontece na Nicarágua foi articulado pelos Estados Unidos, isso não corresponde à realidade. Desde a rebelião quando uma reserva ecológica, a Indio-Maíz, pegou fogo e isso foi tratado com descaso, até a rebeldia estudantil, depois a dos idosos, quando se atacaram as leis de aposentadoria, todas foram manifestações espontâneas.
“Os EUA não incomodaram o governo de Daniel Ortega em nada. Já nas primeiras manifestações houve um massacre, mais de 20 mortes nos primeiros dias. A repressão não parou até hoje”.
Morticínio orteguista
O mais recente informe da Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos (Anpdh), datado de 2 de julho, aponta que a repressão do governo de Daniel Ortega e Rosário Murillo tirou a vida de mais 24 pessoas nos últimos dias, totalizando 309 mortos desde 19 de abril. O levantamento também contabiliza mais de 1.500 feridos, 46 apresentando lesões permanentes.
De acordo com a entidade de direitos humanos, 297 mortos são civis e 12 policiais, 292 homens e 17 mulheres. Dos 309 assassinados, 25 são menores de 17 anos e em 198 das mortes as vítimas receberam um disparo. Ainda segundo o informe, do total, 253 foram vítimas de armas de fogo, sendo que 70 delas receberam um balaço na cabeça, o que evidencia o uso de franco-atiradores nos protestos.
Humberto Meza
Meza, que mora no Brasil há dez anos, fez doutorado em Ciências Políticas na Unicamp e é pesquisador da UFRJ e também integra o grupo Coletivo de Nicaraguenses no Brasil pela Nicarágua, também foi entrevistado pela Hora do Povo.
“Estamos aqui na Paulista para chamar a atenção para esta crise política que a Nicarágua já vive há mais de dois meses. Nicaraguenses que estão vivendo fora do país, muitos na Espanha, no Chile, e nós aqui no Brasil, estamos criando redes para denunciar e criar uma pressão internacional para que a repressão pare e apoiar as forças na Nicarágua que buscam a instalação de processos para que se julgue com justiça os perpetradores desta agressão, pois muitas famílias perderam entes queridos.
“Infelizmente, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que foi um movimento muito importante, um exemplo de luta que estimulou muito as lutas por mudanças em toda a América Latina, começou a viver um processo de deterioração que ficou mais evidente a partir de 1994. Começaram a propor uma reforma partidária que permitia uma condução autoritária e cada vez menos popular da política.
“Neste processo, que foi se aprofundando, o então deputado Daniel Ortega realizou um pacto que entrou em vigor a partir de 1998 até o ano 2000 e que promoveu dentro do parlamento uma aliança deste setor deteriorado do sandinismo com uma direita nicaraguense elitista e corrupta, conectada muito mais a interesses de determinados setores empresariais do que à promoção dos interesses populares.
“O pacto aconteceu com Ortega de um lado e o antigo braço direito do somozismo, Alemán, por outro, e aconteceu também em meio a um processo que Ortega enfrentava à época em que era acusado de estupro de sua enteada. Os sandinistas iniciavam no Congresso, contra Aleman, um processo em que o direitista era acusado de corrupção. Com o pacto os dois processos seriam abafados e, ao mesmo tempo, foi feita a repartição dos espaços no Estado nicaraguense.
“Foi um revés para o movimento popular na Nicarágua. Ortega abriu mão de muitos princípios para realizar este pacto com Alemán.
“A mulher de Ortega, Rosário Murillo, começa a exercer um papel negativo dentro do movimento sandinista. Ela não era uma liderança destacada antes desse processo contra Ortega e durante o abafa ela exigiu e lhe foi concedido cada vez mais espaço dentro da FSLN.
“Junto a este processo de deterioração, muitas lideranças históricas da FSLN se afastam e, ao mesmo tempo, Ortega e Murillo chegam ao poder, ele como presidente da Nicarágua e ela como vice. A memória da Revolução, os ideais, os princípios, nesta última década foram substituídos por um poder familiar. As bases sindicais do movimento foram alijadas. As mobilizações de trabalhadores, característica do poder popular nos governos sandinistas após a Revolução, deixaram de existir.
“Ortega e mesmo todo o país foi tomado agora de surpresa com o tamanho da mobilização que está acontecendo na Nicarágua. O que se dizia, antes desse momento, era de que a sociedade estava anestesiada, passiva, desmobilizada. E, com o ataque à Previdência Pública e também em defesa do meio-ambiente na Nicarágua, muitos estudantes foram para as ruas.
“Essa mobilização inicial dos estudantes foi reprimida com extrema violência. Só que, para surpresa do orteguismo, a repressão, ao invés de tolher as manifestações em seu nascedouro, gerou um repúdio e uma mobilização maior ainda.
“Várias universidades públicas amanheceram ocupadas. Quatro, a de Engenharia, a Centro-Americana, a Universidade Politécnica e a Agrária amanheceram ocupadas. O governo ao invés de iniciar um processo de debate com esse movimento, reponde com maior repressão ainda.
“A partir do dia 19 de abril, quando começou a mobilização, teve início um morticínio que tirou a vida de mais de três centenas de jovens. Vivemos agora um momento de uma espiral de mobilização com repressão que foi aumentando.
“Tudo o que está acontecendo agora revela o total afastamento de Ortega do movimento popular e também um medo de que ele tenha que vir a pagar pelos seus crimes. Ele se aferra ao poder para escapar. Mas o processo não deve acabar de imediato como Ortega quer, inclusive por que as parcerias que ele montou para exercer o poder isolado do povo já o estão abandonando. Ele sabe que, saindo do poder, o risco de ter que enfrentar um processo ou mesmo de ir preso é muito alto. Em toda a América Latina, houve situações similares o que significa que ele não encontrará asilo tão facilmente”.
NATHANIEL BRAIA