[O texto abaixo foi a base para a intervenção do autor no Seminário A reconstrução econômica e industrial de Minas Gerais, desenvolvimento científico, tecnológico e inovação, promovido pela Fundação Maurício Grabois – MG. A primeira mesa, intitulada Mineração e seus impactos na economia e recursos hídricos – Da criação da VALE à espoliação mineral e destruição ambiental em curso, da qual fez parte a palestra abaixo, ocorreu no dia 21 de junho de 2021.]
CARLOS LOPES
Expresso a minha satisfação por estar aqui com vocês – e agradeço o convite do meu velho amigo e colega Francisco Panadés Rubió, presidente da Fundação Maurício Grabois de Minas Gerais, para participar.
Cumprimento o Paulo Rodrigues, admirado por sua brilhante intervenção, que me ensinou muito sobre a questão de que estamos tratando.
À nossa debatedora, Jô Moraes, combativa figura da terra de meu pai, que, como tantos, enriqueceu o patrimônio revolucionário do berço dos inconfidentes, o meu abraço virtual, assim como ao nosso mediador, dr. Pedro Luiz Teixeira de Camargo.
Quando recebi o convite para participar deste seminário, fiquei surpreso. Um seminário sobre mineração? Não me lembrava mais do meu interesse sobre o assunto. Ou, melhor, não me lembrava mais de ter expresso publicamente meu interesse sobre mineração, além de meu gosto pelos poemas de Drummond.
Mas isso são coisas que acontecem a quem está escrevendo, há décadas, sobre os mais variados, os mais diversos temas. Você acaba esquecendo, mais ainda com a idade, de coisas que foram feitas há tempos, às vezes há não muito tempo.
Foi somente quando li o “card” do seminário, onde, após o meu nome, estava escrito “autor do artigo ‘A espoliação mineral do Brasil’”, que me lembrei desse texto, publicado em 2016 no suplemento América do Sol, editado pelo meu amigo Mário Drummond (v. A espoliação mineral do Brasil, ASOL nº 1).
Hoje, gostaria de me concentrar em duas questões, ambas relacionadas diretamente à devastação dos nossos recursos naturais – e, portanto, à barbárie ambiental.
O maior poeta brasileiro do século XX, que acabo de citar, o mineiro Carlos Drummond de Andrade, escreveu em “Lira itabirana”:
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Algum desavisado poderia achar que Drummond não via diferença entre a Vale como empresa pública, estatal, e as multinacionais. Como sabemos pelos artigos que o grande poeta publicou, isso não é verdade. O que revoltava Drummond era o uso que a ditadura fez da Vale, ainda quando estatal.
Embora, mesmo essa distorção, não era tão escandalosa quanto ao que se chegou após à privatização da Vale.
Quanto ao domínio estrangeiro sobre a mineração brasileira, bastaria citar os versos de Drummond quando o primeiro governo da ditadura, sob a égide de Castello Branco e Roberto Campos, devolveu às multinacionais as jazidas que João Goulart havia nacionalizado. Escreveu Drummond:
O pico de Itabirito
Será moído e exportado
Mas ficará no infinito
Seu fantasma desolado.
Então, a primeira questão que eu queria abordar é a seguinte: a mineração, tal como se está praticando hoje no país, é um esgotamento de recursos não-renováveis. Sobretudo quando exportados para outros países. Trata-se de uma pilhagem sobre nossas riquezas naturais.
No meu artigo, que citei acima, era apontado que “entre 1996 – último ano antes da privatização da Companhia Vale do Rio Doce – e 2015, a exportação de minerais metálicos do Brasil aumentou 182,28%. Não por acaso, esse aumento corresponde, quase exatamente, ao aumento da exportação de minério de ferro, que foi de 129.007.533 t (1996) para 366.183.757 t (2015) – um aumento de 183,85%”.
Se algum de vocês quiser números mais atualizados, basta consultar o site da entidade que congrega as mineradoras, o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM). Verão que os números de 2021 não são muito diferentes daqueles de 2015.
O diferente é que esses números de 2021 significam mais toneladas de ferro, milhões de toneladas de ferro e outros minerais a mais, subtraídos do Brasil, em relação a 2015.
Reparemos que nós estamos exportando 80% a 90% do que extraímos. Somente 10% a 20% (quando muito) ficam no país. Trata-se de uma exploração predatória, com características coloniais.
Os mineiros, historicamente, sabem o que é o esgotamento de recursos. Afinal, foi o esgotamento do ouro, no século XVIII, causado pela exploração predatória da metrópole, que desdobrou o pano de fundo da Inconfidência Mineira.
Esta é a primeira questão que gostaria de abordar: estamos esgotando os nossos recursos – e, depois da privatização da Vale, a uma velocidade muito maior do que antes.
Aqui, cabe uma observação: a Constituição de 1988, por uma iniciativa do deputado paraense Gabriel Guerreiro, único geólogo da Constituinte, nacionalizou a exploração de recursos minerais no Brasil; mas a emenda constitucional nº 6/1995, no governo Fernando Henrique, desnacionalizou outra vez essa exploração (v. Matheus Amorim de Oliveira Andrade e Daniel Francisco Nagao Menezes, A emenda constitucional nº 6 de 1995 e o processo de desnacionalização dos recursos minerais no Brasil, Revista Direito em Debate, Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí, Ano XXIX – n. 53 – jan./jun. 2020).
A outra questão a que eu queria me ater é a de que os recursos minerais extraídos do nosso subsolo, em processo de destruição ambiental, são recursos a serviço do desenvolvimento de outros países.
Esta questão foi desenvolvida por Álvaro Vieira Pinto no segundo volume de seu monumental clássico, Consciência e Realidade Nacional, de 1960.
A chave desse ângulo é que não temos soberania sobre esses recursos. Como eles vão ser utilizados, é uma questão para outros resolverem.
Por isso, não podemos colocá-los a serviço de um projeto que contemple o nosso povo, o nosso país.
Além do atraso geral do país e da miséria do povo, isso tem como consequência, também, uma dupla exploração.
Vejamos um exemplo que pareceria quase caricato, se não fosse uma tragédia, do ponto de vista humano.
Exportamos, a preços de 2008, uma tonelada de ferro por US$ 136, e importamos uma tonelada de trilhos de aço por US$ 850. Uma diferença de US$ 714 (ou 625%) por tonelada contra nós (v. Agnaldo Brito, País vende ferro à China e importa trilho, FSP 21/07/2008).
Qual a dificuldade, para um país como o Brasil, de fabricar trilhos de aço?
Quase responderíamos: nenhuma, até porque já estivemos entre os maiores fabricantes de trilhos do mundo.
Entretanto, exportamos a matéria-prima e importamos o produto acabado com uma diferença de +625% no preço.
Este segundo aspecto da questão diz respeito, portanto, e diretamente, à impossibilidade de um projeto nacional de desenvolvimento, se não temos controle das nossas próprias riquezas naturais.
É verdade que o outro aspecto – o esgotamento – também. Mas o que eu gostaria de enfatizar aqui é a falta de controle próprio que a exploração estrangeira, ou a serviço de países ou empresas estrangeiras, impõe ao Brasil, impossibilitando um programa estratégico de independência econômica.
Resta-me, agora, alguns traços gerais históricos.
Devido ao tempo que me cabe, vou mencionar apenas de passagem os que lutaram, na República Velha, pela soberania sobre nossos recursos minerais, em especial três políticos mineiros daquela época, João Pinheiro, Afonso Pena e Artur Bernardes. Detalhei essa questão em “A espoliação mineral do Brasil” – e gostaria de fazê-lo mais extensamente, mas não é possível.
Queria apenas mencionar que após o Congresso de Estocolmo, em 1910, onde as potências imperialistas mapearam os recursos minerais do mundo, no Brasil aconteceu o seguinte:
1) Um grupo norte-americano formou a Brazilian Steel, Co., que comprou, por 150 contos de réis, as jazidas de Alegria e Cota, na Serra do Caraça – com reservas, na época, estimadas em 10 milhões de toneladas de ferro.
2) Outro grupo norte-americano organizou a The Brazilian Iron and Steel, que adquiriu as jazidas de Morro Agudo (estimativa da época: 40 milhões de toneladas de ferro), Cauê e Sant’Ana (na época, com reservas estimadas em 282 milhões de toneladas de ferro) por 380 contos de réis.
3) Um grupo alemão, o Deutsche Luxemburgische Bergsweks Aktiengesellschaft comprou as jazidas de Córrego do Meio (8 milhões de toneladas) e Córrego do Feijão (10 milhões de toneladas), ambas em Congonhas, por 550 contos de réis.
4) Grupos franceses (ou franco-belgas), sob quatro denominações – Société Franco Brésilienne, Bernard Goudechax & Cia., Bracuhy Fall Co. e Société Civile des Mines de Fer de Jangada – adquiriram as jazidas de Candonga (10 milhões de toneladas de ferro), Serra do Mascate (29 milhões de toneladas), Serra da Jangada (15 milhões de toneladas) e Nhotin (25 milhões de toneladas), todas em Paraopeba, Minas Gerais, por 380 contos de réis.
5) Um grupo belga – Aciéries Reunies de Burbacheshc-Dudelange (ARBED), que 10 anos depois instalaria em Minas a Companhia Siderúrgica Belgo-mineira – comprou a jazida de Gaia, na Serra do Curral (233 milhões de toneladas de ferro), por um preço que, até hoje, não é conhecido.
6) Um grupo inglês, formado pelos banqueiros Rothschild, Ernest Cassel (proprietário das jazidas de minério de ferro da Suécia), Baring Brothers e pelo explorador da África, Cecil Rhodes, formou a ltabira Iron Ore Company Limited e adquiriu a jazida Conceição (estimada em 396 milhões de toneladas de ferro), na serra do Esmeril, em Itabira, por 400 contos de réis.
Esta última foi a empresa que, em 1919, foi adquirida pelo notório Percival Farquhar.
Os abusos de Farquhar e da ltabira Iron extrapolaram a mineração, invadindo outras áreas, embora, no caso, correlatas, como o monopólio ferroviário.
Após a Revolução de 30, em maio de 1931, o presidente Getúlio Vargas multaria a Itabira Iron, que monopolizava e parasitava as principais jazidas de Minas Gerais.
Em sua viagem a Belo Horizonte, nesse mesmo ano de 1931, Getúlio diria, em discurso:
“Creio poder, portanto, afirmar que a grandeza futura do Brasil depende, principalmente, da exploração das suas jazidas de ferro. E o ferro é Minas Gerais.”
Getúlio não estava pensando na exportação de minério de ferro, mas na industrialização do país, como mostra a continuação do seu discurso:
“Muito teremos feito dentro de breve tempo se conseguirmos libertar-nos da importação de artefatos de ferro, produzindo o indispensável ao abastecimento do país. Nacionalizando a indústria siderúrgica, daremos grande passo na escalada ao alto destino que nos aguarda.
“Completando, finalmente, o meu pensamento, no tocante à solução do magno problema, julgo oportuno insistir, ainda, em um ponto: a necessidade de ser nacionalizada a exploração das riquezas naturais do país, sobretudo a do ferro.
“… quando se trata da indústria do ferro, com o qual havemos de forjar toda a aparelhagem dos nossos transportes e da nossa defesa; do aproveitamento das quedas d’água, transformadas na energia que nos ilumina e alimenta as indústrias de paz e de guerra; das redes ferroviárias de comunicação interna, por onde se escoa a produção e se movimentam, em casos extremos, os nossos exércitos; quando se trata – repito – da exploração de serviços de tal natureza, de maneira tão íntima ligados ao amplo e complexo problema da defesa nacional, não podemos aliená-los, concedendo-os a estranhos, e cumpre-nos, previamente, manter sobre eles o direito de propriedade e de domínio.”
Essa luta desembocou nos Acordos de Washington, a 3 de março de 1942, durante a II Guerra Mundial, pelos quais a Inglaterra transferiu ao Brasil as jazidas da Itabira Iron, comprometendo-se a indenizar Farquahr, em troca do fornecimento de minério para a indústria de guerra.
A consequência foi a fundação de uma companhia estatal brasileira, a Vale do Rio Doce (Decreto-Lei nº 4.352, de 1º de junho de 1942).
Transcrevo aqui, para finalizar, as considerações que fiz sobre a Vale e sua privatização naquele meu texto de 2016:
“A Vale do Rio Doce foi o instrumento que a Nação tinha para controlar e explorar suas riquezas minerais – exceto o petróleo e o gás natural, afeitos à Petrobras – em benefício do país.
“Era, além disso, a base da indústria siderúrgica, que permaneceu nacional até o governo Collor e a privatização da Usiminas, entregue à Nippon Steel.
“A privatização da Companhia Vale do Rio Doce, com todas as suas jazidas e reservas, por R$ 3.338.178.240,00 – menos que a receita líquida do ano seguinte ou que o lucro líquido dos quatro anos posteriores à privatização (respectivamente, 3,553 bilhões de dólares e 3,483 bilhões de dólares, cf. “Relatório Anual da CVRD à Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio dos Estados Unidos 2001”, p. 11) – foi um crime inominável contra o país.
“Mesmo privatizada, a Vale manteve todas as jazidas a título de concessão federal por tempo indeterminado.
“Quais as consequências?
“Em vez de ser um esteio do nosso crescimento, a Vale tornou-se um instrumento de especulação – de várias formas.
“Quanto mais baixo é o preço do minério por tonelada, mais volume da nossa riqueza é exportada. Em 2015, o país exportou 366.183.757 toneladas de minério de ferro. Em 2011, com preços, em média, 70% maiores, o país exportou 330.829.000 de toneladas de minério de ferro. Ou seja, exportamos mais 35.354.757 toneladas em 2015, por um preço muito menor.
“Exatamente ao contrário de outros países – por exemplo, a Indonésia – que restringiram as exportações de minério depois da derrubada no preço das commodities, preferindo concentrar-se nos produtos industrializados a partir desses minérios, a queda no preço levou os controladores da Vale a vender mais riqueza nacional a preço mesquinho.
“Mencionamos bastante o minério de ferro porque ele constitui de 80% a 90% das exportações de minério do país. Mas o que é válido para o minério de ferro também o é para os outros minérios ou produtos primários minerais.”
E nem estou entrando, aqui, na devastação ambiental, inclusive contaminação de aquíferos, mencionada pelo Paulo ainda há pouco.
Não existe outra maneira de enfrentar esses problemas gravíssimos senão através do controle público – o que significa, no mínimo, a reestatização da Vale. Sem isso, me parece uma fantasia falar de um controle social, nacional, sobre a mineração.
Obrigado aos amigos pela atenção.