Nesta página, publicamos a segunda parte do texto que o economista, e professor da Universidade Federal da Bahia, Luiz Filgueiras, em 2015, elaborou, com o título “Notas para a análise de conjuntura” (v. Texto para Discussão nº 015/2015, do Instituto de Economia da UFRJ).
Esta parte, bem além do que era específico daquela conjuntura, expõe algumas questões de natureza mais estrutural – ou, até mesmo, estratégicas – que são válidas (e como são!) para hoje.
É, portanto, um subsídio importante ao debate de hoje, quando o retrocesso bolsonarista demanda clareza para enxergar os caminhos de superá-lo.
Quanto àquela conjuntura, após o estelionato eleitoral do PT e durante a terra arrasada que Dilma e seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy, provocaram no país, escreve o professor Filgueiras: “O Partido dos Trabalhadores, suas Direções e o Lulismo são os responsáveis fundamentais, principais, pela recente ofensiva política da direita e a ampliação e difusão de sua ideologia e dos seus valores na sociedade brasileira”.
Ainda que essa colocação possa ser observada por vários aspectos, tomemos, aqui, uma dessas questões – uma questão ideológica, de valores na sociedade brasileira.
Já mencionamos, outras vezes, como a “ideologia da nova classe média”, além de ser uma fraude, revelava, também, uma alergia, tão escandalosa quanto ridícula, aos trabalhadores.
O que revelam trechos de arengas do tipo “o Brasil virou um país de classe média” (Dilma, 03/06/2013); “queremos continuar a ser um país de classe média” (Dilma, 18/08/2014); ou, do próprio Lula: “levamos mais de 40 milhões para a classe média” (Le Monde, 17/05/2018); ou, mais recente ainda, “há 10 anos classe média virava maioria no país” (Instituto Lula, 01/08/2018)?
Revelam que, para essa gente, ser trabalhador é uma maldição. Ou uma vergonha – ou os dois. Usar o nome “trabalhadores” é, portanto, proclamar que o ideal de vida do trabalhador é deixar de ser trabalhador – para ser, pelo menos, classe média. Ou talvez mais – porém, deixaremos para outra oportunidade a discussão desse “mais”.
Alguns amigos, que conhecem Lula e Dilma mais de perto, diriam que isso revela apenas (ou também) que eles são capazes de dizer qualquer coisa, contanto que achem que lhes favorece. Mas também não discutiremos, aqui, essa questão.
Estamos apenas apontando o reacionarismo de tal concepção – aliás, adotada do sr. Marcelo Neri, a quem ninguém até hoje negou suas credenciais de reacionário de quatro costados (até contra o salário mínimo o sujeito é; por exemplo: “existem evidências preliminares, para o caso brasileiro, de que aumentos do salário-mínimo provocam não só reduções de emprego como queda de qualidade dos postos de trabalho”).
Apesar disso, ou por causa disso, Neri foi nomeado por Dilma para presidente do IPEA e para ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (neste último cargo, tanto no primeiro, quanto no segundo mandato).
Examinando esse tipo de questão, escreve Luiz Filgueiras:
“O transformismo político, individual e/ou de grupos, se caracteriza pela incorporação, pelas forças contra hegemônicas, do ideário político da ordem – passando a defendê-lo e a operacionalizá-lo na prática, mas mantendo um discurso e uma retórica que lembram ainda a sua atuação passada, mas já fora de lugar. Mas o transformismo político é acompanhado, necessariamente, pelo transformismo ideológico, ético e operacional.”
Onde mais é clara essa questão é, exatamente, quando se analisam os governos de Lula e Dilma (CL).
LUIZ FILGUEIRAS*
No Brasil, as políticas e reformas neoliberais iniciadas a partir do Governo Collor acabaram por constituir um padrão de desenvolvimento capitalista que pode ser denominado como sendo Liberal-Periférico. Esse padrão se aprofundou durante os Governos de FHC e se consolidou durante os Governos Lula e Dilma.
As características estruturais fundamentais desse padrão, que o diferencia do padrão anterior – o conhecido Modelo de Substituição de Importações -, podem ser resumidas em cinco pontos:
1. A relação capital/trabalho teve a sua assimetria aumentada a favor do primeiro, em razão da reestruturação produtiva e da abertura comercial – que implicaram o crescimento do desemprego estrutural, do trabalho informal, da terceirização e da precarização do trabalho em todas as suas dimensões. Como consequência, a capacidade de organização, mobilização e negociação dos sindicatos se reduziu dramaticamente.
2. As relações intercapitalistas, em razão da abertura comercial e financeira e das privatizações, foram redefinidas, alterando-se a posição e a importância relativa das distintas frações do capital no processo de acumulação e na dinâmica macroeconômica: o capital financeiro (nacional e internacional) passou a ocupar posição dominante, deslocando a antiga hegemonia do capital industrial; o capital estatal perdeu relevância em favor do capital estrangeiro; e fortaleceram-se grandes grupos econômicos nacionais produtores/exportadores de commodities e o agronegócio.
3. A inserção internacional do país na nova divisão internacional do trabalho se alterou para pior, aumentando a sua vulnerabilidade externa. De um lado, a pauta de exportação do país se reprimarizou e se aprofundou o processo de desindustrialização iniciado ainda na década de 1980. De outro, cresceu dramaticamente a sua dependência financeira, fragilizando o Estado e reduzindo fortemente a sua capacidade de fazer política macroeconômica. Tudo isso decorreu da abertura comercial e financeira que também alimentou a desindustrialização do país e o crescimento da dívida pública.
4. O papel e a importância do Estado, no processo de acumulação e na dinâmica macroeconômica, se alteraram – em virtude do processo de privatização e da abertura financeira. O Estado fragilizou-se financeiramente e perdeu capacidade de regular a economia e de implementar políticas macroeconômicas e de apoio à produção.
5. Por fim, em razão de todas essas mudanças, e ao mesmo tempo alimentando-as, constituiu-se um novo bloco no poder, sob a hegemonia do capital financeiro, que passou a ditar as políticas fundamentais do Estado.
Em suma, o padrão é liberal porque foi constituído a partir da abertura comercial e financeira, das privatizações e da desregulação da economia, com a clara hegemonia do capital financeiro – frente às demais frações do capital. E é periférico porque o neoliberalismo assume características específicas nos países capitalistas dependentes, que o torna mais regressivo ainda quando comparado à sua agenda e implementação nos países capitalistas centrais.
Do ponto de vista da dinâmica macroeconômica, a característica fundamental desse padrão de desenvolvimento capitalista, que aprofundou ainda mais a dependência tecnológica e financeira do país, se expressa na sua extrema instabilidade e em uma grande vulnerabilidade externa estrutural – que acompanham de perto as alterações cíclicas da economia internacional. Esse padrão de desenvolvimento, com as características estruturais aqui mencionadas, iguala todos os governos brasileiros que se sucederam a partir de 1990.
No entanto, esse padrão de desenvolvimento, desde a sua constituição, e a depender da conjuntura econômica internacional, passou por distintos regimes de política macroeconômica: a âncora cambial do Plano Real no primeiro Governo FHC, o tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante) rígido no segundo Governo FHC e em parte do primeiro Governo Lula e, por fim, esse mesmo tripé flexibilizado no segundo Governo Lula e no primeiro Governo Dilma. Mais recentemente, a partir do segundo Governo Dilma retornou-se à aplicação rígida desse tripé.
Esses distintos regimes, cujas vigências dependem decisivamente da conjuntura internacional e que refletem prioridades e vantagens diferentes no que se refere às distintas frações do capital, sempre implicam em alguma acomodação do bloco no poder. Portanto, são esses regimes de política macroeconômica que diferenciam os dois Governos de FHC, de um lado, e os dois Governos de Lula e o primeiro de Dilma de outro – apesar de todos eles se assemelharem, ao aceitarem e promoverem o Padrão de Desenvolvimento Capitalista Liberal-Periférico.
O “boom” econômico internacional nos anos 2000, só interrompido pela crise mundial deflagrada em 2008, permitiu, em razão da redução da vulnerabilidade externa conjuntural do país, a flexibilização (relaxamento) do tripé macroeconômico. Essa flexibilização, associada a outras políticas adotadas principalmente a partir do final do primeiro Governo Lula – Bolsa Família, aumento real do salário mínimo e um programa de habitação popular -, teve como consequência a elevação das taxas de crescimento do país e a redução das taxas de desemprego, assim como a diminuição da pobreza absoluta e uma pequena redução da concentração de renda no interior dos rendimentos do trabalho.
A melhora desses e de outros indicadores veio acompanhada de uma inflexão do bloco no poder, na qual o capital financeiro sofreu um deslocamento em sua hegemonia absoluta, tendo que admitir o crescimento da influência de outras frações do capital na condução do Estado: o agronegócio, o capital produtor e exportador de commodities, as grandes empreiteiras e os grandes grupos do comércio varejista; em suma a chamada burguesia interna, que passou a ser objeto prioritário das políticas do Estado, em especial através do BNDES, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e da Petrobrás. E tudo isso, apoiado em um maior protagonismo do Estado, pôde ser feito sem atingir os interesses fundamentais do capital financeiro.
Esse momento conjuntural específico do Padrão de Desenvolvimento Liberal Periférico – produto de uma conjuntura internacional favorável e caracterizado por um regime de política macroeconômica que flexibilizou o chamado “tripé”, reacomodou as distintas frações do capital no interior do bloco no poder e permitiu incorporar, via mercado e de forma passiva, determinadas demandas populares -, foi “vendido” politicamente pelo PT e o Governo Lula como sendo um novo padrão desenvolvimento, denominado por eles de Neodesenvolvimentismo (desenvolvimento com distribuição de renda e inclusão social) – que teria superado o Padrão Liberal Periférico característico dos Governos Collor e FHC.
No entanto, a crise mundial do capitalismo deflagrada em 2008, com a consequente piora da conjuntura internacional, desmentiu categoricamente essa ilusão. Ela inicialmente dificultou e, depois, acabou por inviabilizar a continuação da flexibilização do tripé macroeconômico e a compatibilização dos interesses divergentes das distintas frações do capital e dos distintos setores populares. Com isso, a fragilidade e reversibilidade dos pequenos benefícios conjunturais concedidos à classe trabalhadora vieram à tona, com o retorno do tripé macroeconômico em sua versão rígida e a ameaça de novas reformas neoliberais e aprofundamento das já efetivadas. Não há como desconhecer: sem as reformas estruturais democráticas, abandonadas pelo PT no seu processo de transformismo, não pode haver mudanças essenciais na situação da classe trabalhadora.
Desse modo, não se pode ter qualquer ilusão a respeito da capacidade do Padrão de Desenvolvimento Capitalista Liberal Periférico de resolver os problemas e atender as necessidades da classe trabalhadora; nem tampouco ter dúvidas da natureza apassivadora dos Governos Lula e Dilma – que despolitizam a classe trabalhadora e incorporam, via mercado, sem qualquer mudança estrutural e muito parcialmente, algumas de suas demandas.
(*) Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA; Doutor em Economia pela Unicamp.