A nova arenga de Dilma Rousseff – intitulada “‘A Falha de S.Paulo’ ataca outra vez?” – parece escrita para leitores atacados por uma profunda amnésia. Não é a primeira vez, mas a senhora Rousseff sempre se supera na auto-ilusão de que é possível iludir alguém – fora, evidentemente, os que gostam de manter-se nesse estado, por preguiça ou por embaçado interesse.
Não é impressionante, leitor, que ela não se iniba de chamar o seu impeachment de “golpe”, apesar do processo ter sido presidido por um apoiador seu (o ministro Ricardo Lewandowski), e de até aliados seus e do PT – antes e depois do impeachment, como o senador Renan Calheiros (MDB-AL) – terem votado pela sua remoção da Presidência da República?
É interessante que o alvo atual da bile de Dilma Rousseff, o jornal “Folha de S. Paulo”, seja um caso semelhante a Lewandowski e Renan, em relação ao seu impeachment.
Jamais houve, naquela época, órgão de imprensa menos entusiasmado pelo impeachment de Dilma – exceto aqueles que eram abertamente dilmistas – do que a “Folha de S. Paulo”.
Daí, o fato, citado pela ex-presidenta, de ter pedido a sua renúncia. Basicamente, o editorial da “Folha” que pedia que renunciasse, se rendia à constatação de que era impossível mantê-la na Presidência, sobretudo depois que Gilmar Mendes impediu que Lula fosse nomeado ministro da Casa Civil (o mesmo Gilmar Mendes que o PT descobriu, depois, que era um grande jurista, por sua campanha contra a Operação Lava Jato…).
Dilma conta essa história à sua maneira habitual.
Primeiro, omite que o editorial da “Folha” pedia a renúncia dela e de Temer.
Aliás, este é o título do editorial: Nem Dilma nem Temer (cf. FSP, ed. 02/04/2016).
Segundo, ela omite a própria motivação do editorial da “Folha”:
“A presidente Dilma Rousseff (PT) perdeu as condições de governar o país.
“É com pesar que este jornal chega a essa conclusão. Nunca é desejável interromper, ainda que por meios legais, um mandato presidencial obtido em eleição democrática.
“Depois de seu partido protagonizar os maiores escândalos de corrupção de que se tem notícia; depois de se reeleger à custa de clamoroso estelionato eleitoral; depois de seu governo provocar a pior recessão da história, Dilma colhe o que merece.
“Formou-se imensa maioria favorável a seu impeachment.
(…)
“A administração foi posta a serviço de dois propósitos: barrar o impedimento, mediante desbragada compra de apoio parlamentar, e proteger o ex-presidente Lula e companheiros às voltas com problemas na Justiça”.
Não é possível, honestamente, negar nada disso. Nem o que vem a seguir:
“Enquanto Dilma Rousseff permanecer no cargo, a nação seguirá crispada, paralisada. É forçoso reconhecer que a presidente constitui hoje o obstáculo à recuperação do país.”
Ou:
“A mesma consciência deveria ter Michel Temer (PMDB), que tampouco dispõe de suficiente apoio na sociedade. Dada a gravidade excepcional desta crise, seria uma bênção que o poder retornasse logo ao povo a fim de que ele investisse alguém da legitimidade requerida para promover reformas estruturais e tirar o país da estagnação.
(…)
“Dilma Rousseff deve renunciar já, para poupar o país do trauma do impeachment e superar tanto o impasse que o mantém atolado como a calamidade sem precedentes do atual governo.”
Porém, nem mesmo nesse editorial, a “Folha” deixa de manifestar sua contrariedade com o impeachment de Dilma (“Embora existam motivos para o impedimento, (…) nenhum deles é irrefutável. Não que faltem indícios de má conduta; falta, até agora, comprovação cabal. Pedaladas fiscais são razão questionável numa cultura orçamentária ainda permissiva”).
Daí, o pedido de que ela e Temer renunciem.
Portanto, Dilma deveria ser grata à “Folha de S. Paulo”. Qual foi o órgão de comunicação – fora os blogs dilmistas – tão oposto, tão contrário ao seu impeachment?
Mas a senhora Rousseff não é uma pessoa que leve em conta a gratidão, talvez porque não leve em consideração a realidade.
Tanto é assim que, depois de sete parágrafos com despejos de raiva contra a “Folha” – onde o conteúdo, mesmo quando verdadeiro, é inteiramente obnubilado pela histeria desqualificatória -, diz a ex-presidenta que, em seu editorial do último sábado (22/08), intitulado “Jair Rousseff”, o jornal “força uma simetria que não existe e, por isto, ninguém tem direito de fazer, entre uma presidenta democrática e desenvolvimentista e um governante autoritário, de índole neofascista, sustentado pelos neoliberais”.
Aqui, estamos no terreno da mentira, mera e vulgar.
O que pode surpreender alguns – talvez – é que Dilma acusa a “Folha” do que ela mesmo faz (e fez).
Como presidenta, ela impôs ao país o mais desastroso “ajuste fiscal” da sua história, até então – ou seja, um ajuste fiscal neoliberal que jogou o país na recessão.
Que moral tem Dilma, então, para usar a palavra neoliberal como se fosse um xingamento, em relação à “Folha de S. Paulo”?
Ela deveria ser a última pessoa a reclamar desse caráter – o caráter neoliberal – do editorial publicado pela “Folha”.
Pois o ajuste fiscal de Dilma não foi apenas “sustentado pelos neoliberais”. Ela própria nomeou para ministro da Fazenda um dos neoliberais mais obtusos, mais entranhados, mais insensíveis ao país e aos sofrimentos do povo, e mais inimigo do desenvolvimento, o notório Joaquim Levy – um chicago-boy, ex-funcionário do FMI, que estava encostado no Bradesco.
O mesmo Joaquim Levy que, depois, seria nomeado por Bolsonaro para a presidência do BNDES, por indicação de Paulo Guedes.
Por isso, a afirmação de Dilma, de que, em seu governo, o Brasil era “um país que, em 2014, registrou o índice de desemprego de apenas 4,8%” é irremediavelmente mentirosa.
Aliás, é um escárnio, pois é impossível esconder o seguinte resultado de sua política:
- 4º trimestre/2014: 6 milhões e 452 mil trabalhadores desempregados;
- 1º trimestre/2015: 7 milhões e 934 mil trabalhadores desempregados;
- 2º trimestre/2015: 8 milhões e 354 mil trabalhadores desempregados;
- 3º trimestre/2015: 8 milhões e 979 mil trabalhadores desempregados;
- 4º trimestre/2015: 9 milhões e 87 mil trabalhadores desempregados;
- 1º trimestre/2016: 11 milhões e 89 mil trabalhadores desempregados.
(Fonte: PNAD Contínua/IBGE)
O número de desempregados aumentou, portanto, em 4 milhões e 637 mil trabalhadores entre o 4º trimestre de 2014 e o 1º trimestre de 2016.
Aumentou de 6,452 milhões desempregados para 11,089 milhões desempregados.
Um aumento de +71,87% no desemprego em apenas cinco trimestres – ou pouco mais de um ano, 15 meses, para ser exato – devido exclusivamente à política neoliberal, recessiva, destruidora das forças produtivas nacionais, de Dilma Rousseff.
Sem contar os subempregados e os que foram declarados “fora da força de trabalho”, na mesma época.
E isto foi no segundo mandato.
No primeiro, Dilma fez a mesma coisa, porém, de modo mais envergonhado. Sem conseguir se pendurar mais – como fez Lula – no boom das commodities, que tornou o país dependente das exportações, a preços especulativos, de minério de ferro e soja para a China, o governo Dilma teve o seguinte crescimento da economia (isto é, do Produto Interno Bruto):
- 2010 (Lula): 7,5%;
- 2011: 4%;
- 2012: 1,9%;
- 2013: 3%;
- 2014: 0,5%;
- 2015: -3,5% (fonte: IBGE).
Vejamos as médias anuais de crescimento:
- Governo Fernando Henrique: 2,31%;
- Governo Lula: 4,06%;
- Governo Dilma: 0,64%.
Perto da média anual de crescimento de Dilma, o governo neoliberal de Fernando Henrique até parece o governo Getúlio ou o governo Juscelino.
Pois o crescimento do Brasil, de 2011 a 2015, sob Dilma, foi menos de um terço do crescimento anual do Brasil de 1995 a 2002, sob Fernando Henrique.
Essa é a presidenta que se gaba de ser “desenvolvimentista”.
Quanto a ser uma presidenta “democrática”, talvez bastasse dizer que ela até hoje não aceitou sua destituição pelo Congresso que ela mesmo elegeu – a maior parte dos deputados e senadores apoiaram Dilma Rousseff, quando de sua reeleição.
O impeachment foi votado, exatamente, por seus apoiadores. A oposição ao governo – basicamente, o PSDB e o DEM – não tinham votos para removê-la do governo.
Mas esse foi o resultado do estelionato eleitoral e da política neoliberal de Dilma, no seu segundo mandato. Não conseguiu ficar nem dois anos mais no governo.
Além disso, se existe algo já sabido, é que nenhuma política neoliberal é democrática. Impor ao povo a pilhagem de seus recursos, dos recursos do país, para aumentar a parte do produto que é apropriada pelo parasitário setor financeiro, sempre desemboca no autoritarismo, no limite, na ditadura.
Não é um acaso que, antes de ser tirada da Presidência, Dilma já enveredara pelo corte de direitos trabalhistas e previdenciários, aqueles que, durante a campanha eleitoral, prometera que jamais cortaria, “nem que a vaca tussa” (v. HP 28/01/2015, Dilma montou corte de direitos do trabalhador antes da eleição).
No passado, em meio à polêmica aberta pelo livro de Paulo Brossard sobre a doutrina brasileira do impeachment, um jurista observou que a nossa lei parece feita para que o impeachment jamais ocorra. Na época, o único caso conhecido – o de Café Filho, por cumplicidade na tentativa de golpe de Estado, abortada, em 11 de novembro de 1955, pelo então general Lott – servia como exemplo de como era difícil aprovar o impedimento do presidente. Naquele caso, fora necessária a mobilização de quase todo o Exército, a favor da democracia, para que o presidente fosse “impeachmado” pelo Congresso.
Realmente, não é fácil aprovar o impeachment de um presidente. Se Dilma Rousseff conseguiu, foi devido à sua incrível incapacidade política – o que inclui sua capacidade de dizer uma coisa e fazer a oposta.
Por exemplo, ela apresenta, no atual artigo contra a “Folha de S. Paulo”, como prova de sua inocência, o fato de que as despesas primárias (ou seja, as despesas com o atendimento ao povo, as despesas não financeiras) em seu governo cresceram menos que no governo Fernando Henrique (literalmente: “Entre 2011 e 2014, as despesas primárias cresceram 3,7% ao ano, menos do que no segundo mandato de FHC (4,1% ao ano)”).
O que deveria ser uma sentença de condenação é usado, por ela, como a prova da sua inocência. Em suma, sua defesa, diante do que diz a “Folha”, é dizer que foi mais neoliberal do que acredita o jornal de São Paulo.
Nem por isso – por ter praticado o neoliberalismo em um dos seus pontos nevrálgicos – ela se acha neoliberal.
Entretanto, realmente, Dilma gastou menos com o povo e mais com os juros para os bancos. O que é inteiramente neoliberal. Se ela queria provar que foi mais neoliberal do que Fernando Henrique, talvez, por esse critério, tenha conseguido. Vejamos a média anual de gastos com juros, corrigida a preços de agosto de 2020:
- Governo FHC: R$ 284,010 bilhões;
- Governo Lula: R$ 357,865 bilhões;
- Governo Dilma: R$ 437,152 bilhões (fonte: BC).
A média anual das despesas com juros – ou seja, com as transferências de dinheiro público aos bancos, em valores corrigidos pela inflação (IPCA) – foi, no governo Dilma, uma vez e meia maior que no governo Fernando Henrique.
E não é porque o governo Fernando Henrique gastou pouco com juros…
É verdade que, com exceção dos juros, Dilma não “gastou” muito. Pelo contrário, estrangulou os investimentos e o custeio logo a partir do primeiro mandato (v. um texto preliminar, que se confirmou inteiramente: HP 27/11/2013, Sobre as causas do insucesso econômico do governo Dilma).
Porém, há mais.
Dilma, no final de seu texto, emenda outra diatribe:
“Logo ao tomar o poder ilegalmente, os golpistas aproveitaram-se de sua maioria no Congresso e do apoio da mídia e do mercado para aprovar a emenda do Teto de Gastos, um dos maiores atentados já cometidos contra o povo brasileiro e a democracia em nossa história, pois, por 20 anos, tirou o povo do Orçamento e também do processo de decisão sobre os gastos públicos. Criou uma ‘camisa de força’ para a economia, barrando o investimento em infraestrutura e os gastos sociais, e ‘constitucionalizando’ o austericídio. O Teto de Gastos bloqueia o Brasil, impede o País de sair da crise gerada pela perversão neoliberal que tomou o poder com o golpe de 2016 e a prisão do ex-presidente Lula. E, a partir da pandemia, tornará ainda mais inviável qualquer saída para o crescimento do emprego, da renda e do desenvolvimento”.
Tudo muito justo, exceto que a emenda do “teto de gastos” foi elaborada pelo seu governo – mais exatamente, por Nelson Barbosa, ministro da Fazenda de Dilma, que substituiu Joaquim Levy.
Nelson Barbosa defendeu algo mais radical (?) ainda que o teto de gastos por 20 anos, de Meirelles, no governo Temer. Em fevereiro de 2016, defendeu um “teto de gastos” permanente – e sem que a presidenta o desaprovasse, muito pelo contrário (v. HP 17/02/2016, Nelson Barbosa defende o limite permanente dos gastos públicos).
Aliás, em matéria de “austericídio”, Dilma poderia dar aulas para muito neoliberal – até porque boa parte desses últimos tem hoje posição mais progressista do que Dilma Rousseff (ver, por exemplo, a posição de Monica de Bolle sobre o investimento público).
Porém, se o leitor quer uma prova mais irretorquível ainda, veja-se o último parágrafo do artigo de Dilma contra a “Folha”:
“Se a intenção da Folha é tutelar e pressionar Bolsonaro para que ele entregue a devastação neoliberal, que tenha pelo menos a dignidade de não falsificar a história recente” (grifo nosso).
Em suma, a “Folha” é pior do que o fascista Bolsonaro, e pior do que Guedes, aquele neoliberal pinochetista.
Pois, segundo Dilma, Bolsonaro ainda não promoveu uma “devastação neoliberal”. Pelo contrário, Bolsonaro (e Guedes) está resistindo, na opinião ex-presidencial, à devastação neoliberal.
Tanto assim que a “Folha” quer “tutelar e pressionar Bolsonaro”, exatamente para que ele “entregue a devastação neoliberal”.
Não poderia, em se tratando de Dilma, haver confissão mais clara de seu descompromisso com a luta em defesa da democracia: chega ao ponto de retocar as figuras de Bolsonaro e Guedes, de apresentá-los melhor (muito melhor) do que são, apenas para descarregar sua gana em cima da “Folha de S. Paulo”, o que tem um componente quase ensandecido: a recusa a qualquer autocrítica.
Sempre, tudo é problema dos outros. Ela, bem, ela agiu completamente certo, corretamente, sem uma jaça que seja em seu comportamento. Se caiu da Presidência foi porque o Temer – que ela mesma escolheu, duas vezes, para a vice-presidência – a traiu; ou porque a “Folha” pediu a sua renúncia; ou, talvez, porque o povo que votou nela, não a apoiou em sua política de aumentar o desemprego e cortar os seus direitos…
Quanto à falsificar a história – não apenas a “recente”, mas a presente – Dilma deve achar que este é um privilégio que deveria ser, exclusivamente, seu.
CARLOS LOPES
Excelente artigo. Esta “senhoura” com sua política econômica neoliberal, ajudou a destruir o sistema Petrobras.