CECILIA VUYK*
O governo do Paraguai, há poucos dias de terem assumido as novas autoridades legislativas e a poucos dias de assumirem as executivas, aprovou as Notas Reversas que revisam o Anexo C do Tratado de Yacyretá, concretizando uma nova entrega da soberania, com governos do mesmo sinal político e baseados nos mesmos interesses latifundiários e financeiros que vêm desde a Guerra Grande (1865-1870), passando pela ditadura cívico-militar stroesnista (1954-1989) até nossos dias.
Na última segunda-feira, após a convocação dos centros acadêmicos das universidades, milhares de paraguaios e paraguaias se concentraram em Assunção e nas capitais dos departamentos para repudiar a corrupção e a entrega de Yacyretá. A força da mobilização do povo paraguaio é a única garantia de freio ao entreguismo, e de recuperação da soberania e da independência para o desenvolvimento nacional.
Em 27 de março de 2014 se cumpriram 40 anos da entrada em vigor do Tratado de Yacyretá e, com isso, se abriu a revisão de seu Anexo C que estabelece as bases financeiras e de prestação dos serviços de eletricidade, que culminou na assinatura do Acordo conhecido como Macri-Cartes.
Os governos paraguaio e argentino, encabeçados por Horacio Cartes e Mauricio Macri, assinaram em 4 de maio de 2017 a Ata de Entendimento que encerrou três anos de negociações. O conteúdo do acordo foi tornado público logo após a sua assinatura, abrindo uma intensa luta que, na atualidade, tem ganhado força e se instalado como causa nacional, já que este acordo mantém, com ajustes ainda mais benéficos à burguesía argentina e internacional, o mesmo esquema de dominação e dependência paraguaia da Argentina e do capital financeiro em Yacyretá.
A Ata de Entendimento foi aprovada pelo Senado em final de mandato em sua última sessão de junho deste ano, sem debates nem argumentações, uma vez conquistada a maioria com votos do oficialista Partido Colorado – Associação Nacional Republicana – e o setor alinhado ao Partido Colorado do Partido Liberal Radical Autêntico. Da mesma forma, no começo de agosto, a Câmara dos Deputados, cujos novos integrantes assumiram em primeiro de julho, aprovou as Notas Reversas que validam o Acordo, gerando um amplo repúdio da população paraguaia.
Representantes do governo que assumirá no próximo dia 15 – como o futuro presidente da ANDE (Administração Nacional de Eletricidade), engenheiro Pedro Ferreira, e o futuro ministro da Fazenda, Benigno López, passaram a argumentar a favor deste acordo que entrega novamente a soberania paraguaia.
O que dizem as Notas Reversas do acordo Cartes-Macri?
São três os principais pontos lesivos aos interesses paraguaios.
O primeiro é o reconhecimento da dívida da entidade binacional pelo valor de US$ 4,084 bilhões. O governo argumentava que a dívida era de US$ 17 bilhões e que conseguiu baixá-la. No entanto, a dívida na atualidade deveria ser zero, e a mesma se mantém elevada unicamente por causa da corrupção imperante na entidade. Até a presente data, e tendo a fachada da binacionalidade como pretexto, não foi realizada nem uma única auditoria da dívida, sendo esta, consequentemente, uma dívida considerada espúria e ilegal. A dívida será paga ao longo de 30 anos, em partes iguais (50% Argentina e 50% Paraguai), em que pese o fato do Paraguai ter utilizado unicamente 5,8% da energia total.
O segundo elemento é o adiamento do pagamento da indenização pelo território inundado do Paraguai. Para a construção da represa de Yacyretá se inundou uma parte de ambos países, sendo 80% do território inundado paraguaio, e 20% argentino. Se contemplava um pagamento em caráter de compensação, o qual segue sendo devido desde 1994. Longe de propor o pagamento devido pela entidade ao Estado paraguaio em função da compensação não cobrada até a data, Cartes e Macri acertaram iniciar este pagamento somente em 2023.
O terceiro elemento, chave, é a manutenção da cessão de energia, quer dizer, da impossibilidade do Paraguai dispor livremente da parte da sua energia que não consuma. De 1994 a 2014 a hidrelétrica gerou um total de 277.147.769 MWh, dos quais 94,2% foram utilizados pela Argentina: o total de 50% correspondente à mesma, e 44,2% dos 50% correspondentes ao Paraguai, que foi entregue a título de cessão de energia. Com a Ata, a energia não utilizada pelo Paraguai deve seguir sendo obrigatoriamente cedida à Argentina por um montante irrisório, que passou de 8,7 US$/MWh para 10,457 US$/MWh, enquanto os preços de mercado na região estão entre 120 e 150 US$/MWh.
Ao mesmo tempo em que é uma nova entrega da burguesia paraguaia à Argentina e, através desta aos capitais internacionais credores da dívida de Yaciretá e beneficiários da energia paraguaia cedida, a aprovação das Notas Reversas representa um nefasto antecedente para a revisão do Anexo C do Tratado de Itaipú, prevista para 2023, estabelecendo como linha do atual governo continuar com a dependência e o atraso baseados na entrega de nossos recursos naturais aos países vizinhos e endividando-nos para subsidiar o lucro do capital financeiro. Não poderia ser de outra forma, vindo de um governo produto da ditadura cívico-militar stronista e do golpe de Estado de 2012, aliado ao capital estrangeiro e que busca manter intocados seus privilégios.
Este fato, assim como a projeção de Itaipú, colocam elementos chaves da luta pela soberania na agenda: o preço justo e a livre disponibilidade de nossa energia produzida em Yaciretá e Itaipú, o fim do pagamento das dívidas ilegais, a auditoria das mesmas, e a anulação de ambos Tratados antinacionais, que causaram graves prejuízos ao povo paraguaio e que são possíveis de ser anulados conforme a Convenção de Viena.
A garantia da recuperação de nossa soberania se encontra na unidade e mobilização de todo o povo paraguaio. A mobilização desta segunda-feira, assim como os posicionamentos emitidos pelas diversas associações e organizações, apontam este caminho. Com força, seguimos em frente, pela soberania e o desenvolvimento nacional independente.
* Cecilia Vuyk é professora, politicóloga e investigadora social