LETICIA VALOTA
WALTER NEVES
Núcleo de Pesquisa e Divulgação em Evolução Humana
Instituto de Estudos Avançados da USP
Muito se discute, atualmente, acerca da origem da nossa espécie. Quase todos os anos são encontradas novas evidências que afetam essa discussão. Teria a nossa espécie tido uma origem única ou múltipla? Se única, essa origem ocorreu em que local do continente africano? Qual fóssil descoberto pode ser considerado o primeiro representante da nossa espécie?
São questões difíceis de serem respondidas considerando a incompletude do registro fóssil e a grande variabilidade morfológica da nossa espécie, em especial no seu estado basal. Existem traços morfológicos comuns que podem ser apontados, como crânio volumoso, globular e alto, face retraída e encaixada embaixo do neurocrânio (parte do crânio que envolve o encéfalo), e dentição reduzida, associados a um corpo relativamente esbelto. Apesar disso, como já pontuado, a presença de variabilidade dificulta a classificação de certos fósseis, que poderiam ser a chave para a origem da nossa espécie.
Começamos pelos fósseis de Homo sapiens encontrado em Herto, na Etiópia, em 1997. Correspondem a três crânios, um infantil e dois adultos, e foram datados em aproximadamente 160 mil anos. Esses espécimes apresentam tanto similaridades quanto diferenças com relação aos humanos modernos: o volumoso crânio, apesar de globular, retém um osso occipital (na parte posterior do neurocrânio) e uma arcada supraciliar protuberantes, características comum a hominínios pré-sapiens.
O crânio de Herto, então, possui uma morfologia considerada intermediária entre espécies da nossa linhagem mais arcaicas e humanos anatomicamente modernos, como nós. Filogeneticamente, ele foi descrito como uma subespécie de Homo sapiens denominada por Tim White e equipe em 2003 de Homo sapiens idaltu, sendo possivelmente o ancestral imediato da nossa espécie.
Outro possível representante mais antigo da nossa espécie consiste em fósseis encontrados em Omo Kibish, também na Etiópia, em 1967. A expedição liderada por Richard Leakey encontrou um esqueleto parcial, Omo 1, e um neurocrânio, Omo 2, ambos adultos. A idade absoluta dos espécimes foi difícil de se obter, sendo que muitas formas de datação foram utilizadas e resultados diferentes foram encontrados.
Enquanto Omo 2 apresenta traços arcaicos, Omo 1 possui uma morfologia bem consistente com a da nossa espécie, em especial com um neurocrânio globular, sem occipital ou arcada supraciliar angulosos. Recentemente, uma nova datação para Omo 1 de 230 mil anos foi obtida, sendo, então, considerado por muitos pesquisadores como o representante mais antigo da nossa espécie atualmente.
O último e mais polêmico fóssil presente na discussão corresponde ao crânio de Jebel Irhoud, encontrado em 1961, no Marrocos, junto a uma mandíbula, a um neurocrânio e outros ossos e dentes. Após uma série de redatações, atualmente sua idade absoluta é estimada em 310 mil anos.
Inicialmente, o espécime foi considerado por alguns cientistas como um neandertal, visto que suas características morfológicas apresentam similaridades com a espécie em questão, como um neurocrânio alongado e um occipital e uma arcada supraciliar protuberantes. Porém, analisando-se o registro fóssil de Jebel Irhoud como um todo, é possível verificar traços comuns à espécie humana moderna, como face e dentição reduzidas. Essa combinação de neurocrânio arcaico com face e dentição modernas levanta grandes debates acerca de sua classificação.
Além disso, outro debate surgiu com esse fóssil: até então, acreditava-se que nossa espécie teria evoluído no leste africano, na região da Etiópia. Com os achados em Jebel Irhoud, surge a possibilidade de que nossa espécie tenha evoluído, também, no norte da África. A partir disso, sugere-se que a nossa espécie teria tido uma origem Pan-Africana, ou seja, que ela teria surgido em pontos distintos do continente africano e evoluído contemporaneamente e independentemente nesses locais, o que muita gente contesta do ponto de vista conceitual.
Infelizmente, o DNA fóssil somente contribui para essa discussão no que diz respeito a uma possível origem obtida da nossa espécie há cerca de 250 mil anos. Com relação aos fósseis abordados, não foi possível retirar DNA de nenhum deles, o que dificulta ainda mais o consenso dos pesquisadores com relação aos fósseis debatidos.
Assim, apesar das questões citadas no início não terem sido respondidas, o que se ressalta é a importância de que continuem estudando os fósseis, atualizando suas datações e, principalmente, buscando por novas evidências da nossa origem, sendo ela única ou múltipla, há 300 ou 200 mil anos. Uma coisa é certa: ela ocorreu na África!