Há momentos na vida dos povos em que o país tem de ser anunciado, promovido e profetizado, já nos ensinava Nelson Rodrigues, para quem a língua portuguesa era a sua pátria.
Afinal, foi por ela que exprimiu seu talento literário e pela qual foi possível entender um pouco mais do Brasil, seu caráter único, indelével.
O escritor era um brasileiro feroz, ferozmente apaixonado pelo país e pelo que ele considerava “ser brasileiro”.
Poucos, como ele, conseguiram interpretar em palavras a essência da brasilidade e o seu significado, explorado magistralmente numa das maiores obras antropológicas do século 20, O Povo Brasileiro, a Formação e o Sentido do Brasil, de Darcy Ribeiro.
Ainda que sob um dos períodos mais tenebrosos de nossa história contemporânea, lembro-me do fervor que tomou conta do país quando a seleção canarinho entrou em campo no estádio Azteca, no México, naquele 21 de junho de 1970, contra a Itália.
Os ditadores de plantão não conseguiram tirar o brilho da pátria de chuteiras, como dizia Rodrigues – das chuteiras de Pelé, Jairzinho, Tostão, Gerson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto e tantos outros que encantaram o mundo com a arte inigualável do futebol brasileiro.
Foi uma data, verdadeiramente, emocionante, contagiante.
Nesta semana, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou uma outra pátria, a de máscaras, para enfrentar o coronavírus que já tirou de nossa convivência mais de 300 mil brasileiros, numa onda absolutamente irrefreável diante do negacionismo doentio que o governo que ele passou a integrar insiste em pregar.
A paródia à expressão de Nelson Rodrigues, contudo, não colou.
Ficou reduzida a um jargão, ainda que movido por uma boa intenção. Mas, como diziam nossos avós, de boas intenções o inferno está cheio e, trazendo para os tempos atuais, a depender do chefe da nação, a pátria continuará sem máscaras, sem vacinas e sem apoio para enfrentar o vírus mais letal dos últimos cem anos, reduzida que foi à condição de pátria da cloroquina.
A realidade, triste, é uma só: teremos que perseverar na superação da atual crise sem o concurso do presidente da República, cujo comportamento continuará sendo um estorvo nessa luta insana entre a vida e a morte, a civilização e a barbárie.
Persistindo a falta de uma solução política para sua nociva permanência à frente do país, os esforços, inelutavelmente, terão que ser cada vez mais redobrados, desdobrados, multiplicados. De governadores, prefeitos, da Justiça, do Parlamento, entre outras instituições, enfim, de toda sociedade, obrigada a confrontar com o terraplanismo sanitário impregnado no poder central e em parcela ruidosa e estridente da sociedade, embora cada vez mais minoritária.
Testemunhamos na última semana dois fatos que podem alterar a atual correlação de forças no país.
O eloquente manifesto da elite financeira e o aviso-prévio do presidente da Câmara dos Deputados – dois importantes e essenciais sustentáculos do governo, na economia e na política. Uma unanimidade entre eles: as três prioridades do país são a vacina, a vacina e a vacina!
O silêncio de Bolsonaro e de seu ministro da Economia diante desses dois episódios foi ensurdecedor. O governo sentiu o golpe e encontra-se nas cordas como nunca esteve nesses mais de dois anos de tragédia, sendo um agravado pela Covid-19.
A pressão, no momento, concentra-se na saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja conduta agravou exponencialmente o quadro da pandemia, especialmente pelas ações hostis a países estratégicos para o Brasil na solução do imbróglio sanitário e no desenvolvimento econômico, como a China.
Todavia, como todos sabem, Araújo não agiu sozinho. Teve, ao longo de todo esse tempo, a retaguarda e o respaldo, implícito e explicito, do chefe maior e de seu entorno fundamentalista.
Bolsonaro resiste e, certamente, continuará resistindo em demitir o ministro, por uma razão muito simples: será como arrancar uma parte de seu corpo, um dos braços, por exemplo.
Com Weintraub já foi difícil a operação de descarte, imagine agora.
Araújo faz parte da engrenagem do sistema protofascista inaugurado pelo atual presidente e cevado pelo obscurantismo olavista que lhe dá sustentação.
Ceder às pressões do centrão e entregar a sua cabeça terá, inexoravelmente, forte repercussão na bolha que segue, histérica, em sua cruzada contra a vida e as vacinas.
Bolsonaro, literalmente, está entre a cruz e a caldeirinha! – numa encruzilhada, e o preço político de qualquer uma das decisões – manter ou exonerar Araújo – será alto.
Neste final de semana, propagou-se a notícia de que a pandemia rejuvenesceu no Brasil. Se, antes, eram os idosos, agora são os jovens brasileiros os mais suscetíveis ao contágio e às mortes.
O vírus passou a ser letal para todas as faixas etárias e classes sociais, provocando o grito no andar de cima e acendendo a luz amarela na casa da política – sinais de que a tardia pátria de máscaras do ministro, em honra aos que feneceram nessa batalha, terá, forçosamente, que resgatar uma pátria muito mais indispensável nesse momento e pela qual já fomos reconhecidos mundialmente em tempos luminosos – a das vacinas!
Elas são, nesta hora, o sinal da vida que o bolsonarismo teima em negar e odiar, pela sua condição de classe, e contra a qual continuará conspirando, dissimuladamente ou não.
Portanto, tudo e todos pelas vacinas!
MAC