CARLOS LOPES
Os acontecimentos de quarta-feira (19/12), após a concessão de liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello para soltar todos os condenados pela segunda instância da Justiça – Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados -, merecem algumas considerações adicionais.
Em março deste ano, publicamos uma síntese sobre essa questão (v. Por que a prisão após a segunda condenação é legal, justa e necessária).
Agora, é necessário acrescentar algumas coisas e reiterar outras.
Disse a nota do PT que a liminar de Marco Aurélio Mello “restabeleceu o princípio constitucional da presunção de inocência”.
Então, vejamos qual é a presunção de Lula.
A MARCA DA IMPUNIDADE
Para começo de conversa, como disse o falecido ministro Teori Zavascky, “o Supremo Tribunal Federal somente está autorizado a conhecer daqueles recursos que tratem de questões constitucionais que transcendam o interesse subjetivo da parte, sendo irrelevante, para esse efeito, as circunstâncias do caso concreto” (cf. STF, HC 126.292, voto do relator, 17/02/2016).
O que é óbvio, pois o STF não é tribunal criminal (nem cível) ou juizado de pequenas causas. Sua função é interpretar a Constituição – e não a de julgar tal ou qual caso. Quando julga algum caso, não é sob a ótica do caso em si, mas pela aplicação da Constituição em geral – e para todos.
Por isso, é uma monstruosidade, tanto moral quanto jurídica, tentar mudar o entendimento (a “jurisprudência”) do STF sobre o momento da prisão após a condenação de um réu, para beneficiar um preso – Lula – ou alguns presos, basicamente, os corruptos que estão na cadeia devido à Operação Lava Jato.
Segundo: quantos ladrões do dinheiro público, do dinheiro do povo, estavam na cadeia, cumprindo pena, antes que o STF, em fevereiro de 2016, mudasse seu entendimento para permitir a prisão após a condenação pela segunda instância da Justiça?
Admitida a ideia de que alguém somente poderá ir para a cadeia depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias (“trânsito em julgado”), somente os pobres irão para a cadeia.
E os corruptos não são pobres – pelo contrário, poderiam usar o dinheiro que roubaram do povo para escapar da lei e da Justiça.
O problema moral implícito é evidente: o sistema de recursos, nas leis brasileiras, é tão extenso, que bastaria ter dinheiro para adiar indefinidamente, ou quase isso, o cumprimento da pena.
Daí a frase do ministro Luís Roberto Barroso, em 2013: “Para ir preso no Brasil, é preciso ser muito pobre e muito mal defendido”.
“O sistema é seletivo, é um sistema de classe. Quase um sistema de castas”, disse Barroso, acrescentando: “Eu nem sou um defensor entusiasmado da prisão. Até pelo contrário. Mas a desigualdade, também em matéria penal, é uma marca lastimável do país”.
Assim, os pobres vão para a cadeia – milhares sem nem ao menos o julgamento pela primeira instância (as Varas federais e estaduais) – enquanto os criminosos ricos podiam se beneficiar indefinidamente da postergação da pena.
A jurisprudência anterior do STF, que teve vigência de 2009 a 2016, era elitista a um ponto extremo.
Segundo o próprio STF, “entre os anos de 2008 e 2011, foram conhecidos pelo Supremo, ressalte-se: conhecidos, apenas seis recursos extraordinários em matéria criminal interpostos pelas Defensorias Públicas dos Estados e da União. Desnecessário dizer que as Defensorias Públicas são os órgãos que possuem atribuição constitucional para defender os representantes das ‘classes subalternas’” (cf. Fernando Brandini Barbagalo, Presunção de Inocência e Recursos Criminais Excepcionais, TJDFT, Brasília, 2015, p. 125).
[NOTA: “Recurso extraordinário” é o nome técnico do recurso ao STF, assim como “recurso especial” é o nome técnico do recurso ao STJ, que é a autoridade máxima para interpretar as leis ordinárias, ou seja, todas, exceto a Constituição.]
O juiz Barbagalo cita, a respeito de recursos ao STJ e STF, um trecho das memórias de Saulo Ramos, grande advogado e ministro da Justiça no governo Sarney:
“Aqui já se misturam dois tipos de recurso: o extraordinário e o mais extraordinário ainda, que é o recurso financeiro. Sem este, aquele não anda. Mas o pobre, que sofre lesão igual, não tem como se defender. Terá seu direito negado por falta de um recurso processual infraconstitucional” (cf. Saulo Ramos, Código da Vida, Planeta, 8ª reimpressão, 2007).
Que Lula queira se beneficiar de algo tão injusto, somente demonstra o grau de deterioração, vale dizer, de corrupção, a que chegou.
A ideia de que um condenado somente poderá ir para a cadeia após o “trânsito em julgado” (após esgotados todos os recursos em todas as instâncias) mereceu do então ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), um comentário amargo: “No Brasil, as ações nunca transitam em julgado, nunca transitam, nunca…”.
Ou, nas palavras da atual procuradora geral da República, Raquel Dodge, em parecer enviado ao STF, sobre um das dezenas de recursos de Lula:
“No desenho processual penal vigente no Brasil, o trânsito em julgado da condenação, na prática, só ocorre quando a defesa deixa de recorrer. Exigir que o início do cumprimento da pena de prisão dependa do trânsito em julgado conduz, inevitavelmente, a um sistema penal que ou pune tardiamente ou simplesmente não pune” (cf. HC 152.752, parecer da PGR).
Devido a esse sistema infernal, apenas em dois anos da antiga jurisprudência do STF, prescreveram (ou seja, caducaram) 2.918 processos de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, deixando os réus inteiramente livres (cf. Conselho Nacional de Justiça, Justiça condena 205 por corrupção, lavagem e improbidade em 2012).
PRIMEIRO CASO
Pode ser que tais questões – sobretudo considerando a areia levantada por Lula e sua defesa – pareçam ao leitor algo difíceis de entender. E, realmente, elas são.
Porém, questões jurídicas não podem ser apenas para os especialistas na matéria – até porque todos estão sujeitos às mesmas leis e ao mesmo aparato judicial.
Neste artigo, começaremos por alguns exemplos práticos. Não é importante, para a compreensão do problema, que o leitor não saiba o que são “recurso especial”, “recurso extraordinário”, “agravo de instrumento”, “embargo de declaração” ou “embargo de divergência”.
Esses termos técnicos, naturais em textos jurídicos, podem ser entendidos como recursos contra decisões da Justiça. Nesse caso, recursos meramente protelatórios, com a intenção de evitar que um condenado cumpra a sua pena.
Vejamos o primeiro caso:
“Exemplo recente desse ‘veio protelatório do final das demandas’, a garantir verdadeira impunidade em casos graves, é o processo do jogador de futebol Edmundo Alves de Souza Neto.
“O esportista famoso, que atuou por diversos clubes tradicionais do futebol brasileiro, e era chamado de ‘Animal’ pela torcida, em razão de sua personalidade explosiva envolveu-se num acidente na Zona Sul do Rio em dezembro de 1995. No acidente, morreram três pessoas, uma delas uma jovem de dezesseis anos, e outras três pessoas sofreram lesões corporais.
“Pelo acidente, Edmundo foi condenado em primeira instância no dia 5 de março de 1999, quando o juiz da 17ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, baseando-se nos depoimentos das vítimas sobreviventes, na perícia técnica e nas demais provas, entendeu demonstrada a culpa exclusiva do jogador pelo trágico evento e proferiu sentença, condenando-o por homicídio culposo e lesões corporais culposas. A pena privativa de liberdade estipulada foi de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime semiaberto.
“Apresentada apelação, a Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou, por unanimidade, a condenação, determinando a expedição de mandado de prisão em 5 de outubro de 1999, data da sessão de julgamento, pois, afinal, o entendimento que prevalecia então, era pela execução imediata [da pena].
“No dia 7 de outubro de 1999, foi impetrado um habeas corpus em favor do jogador para ‘aguardar em liberdade’ o julgamento dos recursos (especial e extraordinário) que pretendia aviar. A liminar no habeas corpus foi concedida no mesmo dia pelo Superior Tribunal de Justiça. A ordem, poucos meses depois.
“O acórdão condenatório do TJRJ [Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro] foi publicado no dia 26 de outubro de 1999, e a defesa interpôs conjuntamente, como determina a lei n. 8.038/90, recurso especial e recurso extraordinário contra a decisão no dia 6 de dezembro de 1999. Os recursos foram rejeitados em 29 de maio de 2000. Diante disso, a defesa de Edmundo interpôs agravos de instrumento para o Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.
“Inicialmente, o processo foi remetido ao Superior Tribunal de Justiça, quando foi deferido o agravo de instrumento para subida dos autos, os quais chegaram ao Superior Tribunal de Justiça no dia 2 de fevereiro de 2001.
“Após apresentação de voto e pedido de vista por alguns dos Ministros, entendeu-se que o recurso especial do jogador não merecia sequer ser conhecido. O acórdão com a decisão foi publicado no Diário da Justiça de 19 de dezembro de 2003.
“Irresignada, a defesa de Edmundo apresentou embargos de declaração, os quais foram rejeitados em sessão realizada no dia 1º de junho de 2004. Contudo o acórdão sobre tal decisão foi publicado depois de um ano, no dia 8 de agosto de 2005, quando, ainda inconformada, a defesa de Edmundo apresentou recurso de embargos de divergência, este também negado.
“Em seguida, vieram novos embargos de declaração em relação à decisão negativa dos embargos de divergência e, finalmente, agravo regimental nos embargos de declaração.
“Em sessão do dia 25 de novembro de 2009, foi negado este (então) último recurso, sendo o acórdão publicado no dia 17 de dezembro de 2009. Não houve interposição de nenhum outro recurso e, finalmente, ocorreu o trânsito em julgado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
“Isso ocorreu, no dia 17 de fevereiro de 2010.
“Devolvido o processo ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, havia ainda o agravo de instrumento referente à negativa do recurso extraordinário, sendo o agravo remetido para análise no Excelso Supremo, em 24 de março de 2010.
“Os autos foram encaminhados “conclusos” para o relator escolhido, Min. Joaquim Barbosa, no dia 26 de abril de 2010.
“O mesmo ministro, no dia 9 de agosto de 2011, declarou a prescrição da pretensão punitiva, na modalidade intercorrente, julgando prejudicado o recurso apresentado” (cf. Fernando Brandini Barbagalo, Presunção de Inocência e Recursos Criminais Excepcionais, TJDFT, Brasília, 2015, pp. 103-104).
Ou seja, o processo caducou, depois de 16 anos de recurso atrás de recurso, sem que o condenado tenha cumprido um só dia de sua pena.
O comentário do juiz Fernando Brandini Barbagalo, autor do livro de onde extraímos o texto acima, também é importante:
“Em resumo, o sistema recursal brasileiro (Constituição, Código de Processo Penal, Leis, Regimentos) e o Poder Judiciário permitiram que um recurso em que se discutia apenas a aplicação da pena e a possibilidade de eventual suspensão do processo, tramitasse durante quase dez anos no ‘Tribunal da Cidadania’ para decidir se esse recurso (especial) deveria, ou não, ser conhecido. Ao final dessa verdadeira via crucis processual, o recurso sequer foi conhecido. Seria irônico, se não fosse trágico!
“Não há como deixar de notar, igualmente, a profusão de recursos (todos indeferidos ou rejeitados) para combater uma mesma decisão. Para ficar apenas nesse caso, foram interpostos pela defesa do jogador embargos de declaração, na sequência embargos de divergência, outros embargos de declaração e finalmente agravo regimental. Quando da interposição deste último recurso, já restava inútil, pois prescrita, a condenação e a pena aplicada na sentença proferida no final da década anterior, como decidido (até o momento) pelo STF” (cf. idem, p. 104-105).
SEGUNDO CASO
O segundo caso é, exatamente, aquele que motivou o ministro Eros Grau, em 2009, contrariando toda a tradição jurídica brasileira, a propor no STF – e com sucesso – o entendimento de que um condenado somente poderia ser preso após o esgotamento de todos os recursos, em todas as instâncias.
“… Omar Coelho Vitor foi julgado pelo Tribunal do Júri da cidade de Passos/MG por tentativa de homicídio qualificado, sendo que o primeiro júri foi anulado e, realizado novo júri, foi condenado à pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de reclusão com regime de cumprimento fechado.
“O Tribunal de Minas Gerais manteve a condenação e o réu interpôs Recurso Especial [recurso ao STJ].
“Com a expedição de mandado de prisão, o réu interpôs habeas corpus no STJ, sem sucesso e outro no STF, quando obteve a ordem.
“Movido pela curiosidade, verifiquei no sítio do Superior Tribunal de Justiça a quantas andava a tramitação do recurso especial do Sr. Omar.
“Em resumo, o recurso especial não foi recebido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo impetrado agravo para o STJ, quando o recurso especial foi, então, rejeitado monocraticamente pela ministra Maria Thereza de Assis.
“Como previsto, foi interposto agravo regimental, o qual, negado, foi combatido por embargos de declaração, o qual, conhecido, mas improvido.
“Então, fora interposto novo recurso de embargos dedeclaração, este rejeitado in limine.
“Contra essa decisão, agora vieram embargos de divergência que, como os outros recursos anteriores, foi indeferido.
“Nova decisão e novo recurso. Desta feita, um agravo regimental, o qual teve o mesmo desfecho dos demais recursos: a rejeição.
“Irresignada, a combativa defesa apresentou mais um recurso de embargos de declaração e contra essa última decisão, que também foi de rejeição, foi interposto outro recurso (embargos de declaração).
“Contudo, antes que fosse julgado este que seria o oitavo recurso da defesa, foi apresentada petição à presidente da terceira Seção. Cuidava-se de pedido da defesa para – surpresa – reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva.
“No dia 24 de fevereiro de 2014, o eminente Ministro Moura Ribeiro, proferiu decisão, cujo dispositivo foi o seguinte: ‘Ante o exposto, declaro de ofício a extinção da punibilidade do condenado, em virtude da prescrição da pretensão punitiva da sanção a ele imposta, e julgo prejudicado os embargos de declaração e o agravo regimental”.
O caso é um modelo de impunidade. Durante 23 anos o condenado evitou a prisão – e acabou se livrando dela.
A história do caso tem interesse para o nosso tema.
Em 1991, o fazendeiro Omar Coelho Vitor, em meio a uma exposição agropecuária, atirou, mirando na cabeça, em um garçom, Dirceu Moreira Brandão Filho, porque achou que este “cantara” a sua mulher.
Acertou dois dos cinco tiros que desferiu, mas o garçom sobreviveu, tendo que se submeter a várias cirurgias.
Segundo o Ministério Público, o criminoso era um “influente e temido fazendeiro da região”.
Apesar disso, foi condenado três vezes – duas vezes pelo Tribunal do Júri e uma vez pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais por “tentativa de homicídio qualificado com motivo torpe e sem chance de defesa à vítima”, a sete anos e seis meses de cadeia.
O fazendeiro manteve-se fora da cadeia através de um recurso atrás do outro. Mas, em 2001, nada menos do que 10 anos após o crime, teve sua prisão decretada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, diante dos indícios de que se preparava para fugir do Brasil.
O fazendeiro recorreu ao STJ – que rejeitou o recurso. Recorreu, então, ao STF, que, numa decisão monocrática (individual) do então ministro Nelson Jobim, também recusou o recurso. Depois, Jobim voltou atrás e concedeu a liminar para que o condenado permanecesse solto.
Quando a questão foi levada ao plenário do STF, em 2009, o ministro Eros Grau propôs uma nova jurisprudência: a de que o condenado somente poderia ser preso após o “trânsito em julgado”, ou seja, após esgotados todos os recursos em todas as instâncias.
Assim, o fazendeiro continuou solto definitivamente.
O entendimento proposto por Eros Grau nunca existira na História do Brasil – e predominou apenas durante sete anos, até que, em fevereiro de 2016, por iniciativa do ministro Teori Zavascky, a jurisprudência anterior foi retomada.
Em 2009, votaram contra a jurisprudência da impunidade as ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie, os ministros Joaquim Barbosa e Carlos Alberto Menezes Direito.
Votaram a favor: Eros Grau, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso, Carlos Britto e Celso de Mello.
MAIS CASOS
Vejamos, agora, três casos que “transitaram em julgado” – não porque os recursos tenham se esgotado, mas porque a opinião pública obrigou a que se desse alguma satisfação à sociedade.
“No conhecido caso Pimenta Neves [que matou a jornalista Sandra Gomide, com um tiro pelas costas e outro no ouvido, porque esta não queria continuar o namoro com ele] referente a crime de homicídio qualificado ocorrido em 20.08.2000, o trânsito em julgado somente ocorreu em 17.11.2011, mais de 11 anos após a prática do fato” (cf. STF, HC 126.292, voto do ministro Luís Roberto Barroso, 17/02/2016).
Pimenta Neves somente foi preso porque o STF passou por cima de sua própria jurisprudência da época, considerando que seus recursos eram procrastinatórios, ou seja, destinados apenas a evitar o cumprimento da pena. Nessa decisão influiu, evidentemente, o escândalo, refletido na mídia, que era a sua impunidade por um crime bárbaro.
“Já no caso Natan Donadon, por fatos ocorridos entre 1995 e 1998, o ex-deputado federal foi condenado por formação de quadrilha e peculato a 13 anos, 4 meses e 10 dias de reclusão. Porém, a condenação somente transitou em julgado em 21.10.2014, ou seja, mais de 19 anos depois.
“Em caso igualmente grave, envolvendo o superfaturamento da obra do Fórum Trabalhista de São Paulo, o ex-senador Luiz Estêvão foi condenado em 2006 a 31 anos de reclusão, por crime ocorrido em 1992. Diante da interposição de 34 recursos, a execução da sanção só veio a ocorrer agora em 2016, às vésperas da prescrição, quando já transcorridos mais de 23 anos da data dos fatos” (cf. STF, HC 126.292, voto do ministro Luís Roberto Barroso, 17/02/2016).
O ministro acrescenta, no mesmo voto, outro caso, este jamais encerrado:
“Infelizmente, porém, esses casos não constituem exceção, mas a regra. Tome-se, aleatoriamente, um outro caso incluído na pauta do mesmo dia do presente julgamento.
“Refiro-me ao AI 394.065-AgR-ED-EDED-Edv-AgR-AgR-AgR-ED [a designação do processo é devida aos recursos sobre recursos, sacados pelo criminoso], relativo a crime de homicídio qualificado cometido em 1991.
“Proferida a sentença de pronúncia, houve recurso em todos os graus de jurisdição até a sua confirmação definitiva.
“Posteriormente, deu-se a condenação pelo Tribunal do Júri e foi interposto recurso de apelação.
“Mantida a decisão condenatória, foram apresentados embargos de declaração (Eds).
“Ainda inconformada, a defesa interpôs recurso especial [recurso ao STJ].
“Decidido desfavoravelmente o recurso especial, foram manejados novos Eds.
“Mantida a decisão embargada, foi ajuizado recurso extraordinário [recurso ao STF], inadmitido pelo eminente Ministro Ilmar Galvão.
“Contra esta decisão monocrática, foi interposto agravo regimental (AgR).
“O AgR foi desprovido pela Primeira Turma, e, então, foram apresentados Eds, igualmente desprovidos.
“Desta decisão, foram oferecidos novos Eds, redistribuídos ao Ministro Ayres Britto.
“Rejeitados os embargos de declaração, foram interpostos embargos de divergência, distribuídos ao Ministro Gilmar Mendes.
“Da decisão do Ministro Gilmar Mendes, que inadmitiu os EDiv, foi ajuizado AgR, julgado pela Ministra Ellen Gracie.
“Da decisão da Ministra, foram apresentados EDs, conhecidos como AgR, a que a Segunda Turma negou provimento.
“Não obstante isso, foram manejados novos EDs, pendentes de julgamento pelo Plenário do STF.
“Portanto, utilizando-se de mais de uma dúzia de recursos, depois de quase 25 anos, a sentença de homicídio cometido em 1991 não transitou em julgado” (cf. STF, HC 126.292, voto do ministro Luís Roberto Barroso, 17/02/2016).
AS PRESUNÇÕES
Os casos acima têm importância, também, de outro ponto de vista.
Em geral, os defensores da prisão apenas depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias, ligam sua posição ao “princípio da presunção de inocência”, como se não prender fosse uma garantia deste princípio.
Em seu relatório de 2009, a favor da prisão somente depois do “trânsito em julgado”, Eros Grau chegou ao cume com uma citação do grande Evandro Lins e Silva: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.
Citada desse modo, trata-se de uma falsificação. Evandro estava argumentando contra o desprezo pelas questões sociais – a la Bolsonaro – e não contra a punição dos delinquentes:
“… essa criminalidade que aumenta, que é motivo de revolta, de indignação pública, é resultado de quê? Do desemprego, da fome, da miséria. Na medida em que isso aumenta, aumenta a criminalidade. Não se pense que a criminalidade vai acabar se se introduzir a pena de morte, a pena mais grave. Absolutamente! Isso é uma ilusão, é uma fantasia, é uma falácia! Ainda ontem estive lendo um livro recente, chamado Le désir de punir, de um autor francês de cujo nome não me lembro agora. Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente” (cf. Evandro Lins e Silva, O Salão dos Passos Perdidos: depoimento ao CPDOC, Nova Fronteira/FGV, 1997, p. 215).
Se a impunidade é uma tragédia em qualquer caso, pior ainda quando se trata de corrupção por atacado – e de um país profundamente afetado por essa infâmia.
Mas, continuemos.
Que “presunção de inocência” existia no caso Edmundo? Alguém tinha dúvida de que ele era culpado?
Que “presunção de inocência” havia no caso do fazendeiro que, movido por uma ciumeira truculenta, disparou cinco tiros contra um garçom, em público, no meio de um evento agropecuário?
Ou, no caso Pimenta Neves, como é possível falar de “presunção de inocência”?
Não se trata apenas do raciocínio de um leigo em matéria jurídica, como é o nosso caso (se bem que, se os raciocínios dos leigos não forem contemplados pela lei e pela Justiça, voltaríamos, dentro em breve, aos galhos das árvores).
Mas, não. Não são apenas os leigos que percebem o absurdo de se falar em “presunção de inocência” quando existem provas, provas incontestáveis dos crimes de um réu.
Disse o ministro Luiz Fux:
“… ninguém consegue entender a seguinte equação: o cidadão tem a denúncia recebida, ele é condenado em primeiro grau, é condenado no juízo da apelação, condenado no STJ e ingressa presumidamente inocente no Supremo Tribunal Federal. Isso efetivamente não corresponde à expectativa da sociedade em relação ao que seja uma presunção de inocência” (cf. STF, HC 126.292, voto do ministro Luiz Fux, 17/02/2016).
E, mais adiante:
“… a presunção de inocência cessa a partir do momento em que se comprova a culpabilidade do agente, máxime, em segundo grau de jurisdição, encerrando um julgamento impossível de ser modificado pelos Tribunais Superiores.”
Ou, ainda mais especificamente:
“a presunção de inocência protege (…) o processado de sofrer restrições desnecessárias a seus direitos antes de ser provada a sua responsabilidade criminal, ou seja, antes de ser julgado e sem ingressar aqui na questão da necessidade de este julgamento ser definitivo ou não.”
Portanto, não se trata de um raciocínio de leigo. A formulação mais técnica dessa questão foi elaborada pelo falecido ministro Teori Zavascky:
“… tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado.”
Em outras palavras, a presunção de inocência é válida até que o réu, em julgamento justo, seja condenado.
Ou, formulado de outra maneira:
“O cumprimento da pena de prisão aplicada por tribunal, com observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (inclusive as regras de prova e de tratamento decorrentes da presunção de inocência) no exame dos fatos e provas não fere a presunção de inocência. Muito pelo contrário, ocorre após o esgotamento das únicas instâncias judiciais que, no sistema processual brasileiro, podem examinar fatos e provas” (cf. Raquel Dodge, parecer, HC 152.752)
O DUPLO GRAU
No sistema brasileiro, além do primeiro julgamento, o réu tem direito a apelar para uma segunda instância.
Por isso se diz que, no Brasil, há “duplo grau de jurisdição”.
Não é um sistema universal – não existe, por exemplo, nos EUA, onde Caryl Chessman lutou 12 anos por um segundo julgamento, sem sucesso, até sua execução na câmara de gás, em 1960, sob protestos do mundo todo, inclusive de um de nossos maiores juristas, Nelson Hungria, também ministro do STF.
Porém, no Brasil, se considera que o condenado em primeira instância tem direito a um segundo julgamento por um órgão colegiado – isto é, com mais de um juiz, como são os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça dos Estados.
Mas, evidentemente, não existe “quádrupla jurisdição” – o réu não tem direito a julgamento também no STJ e no STF, ou seja, em quatro instâncias, somente podendo ser preso após a quarta condenação pela quarta instância.
Isto significaria a impunidade geral.
Disse a ministra Ellen Gracie que “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”.
Ou, nas palavras da atual procuradora geral da República:
“O princípio da presunção de inocência é uma garantia pessoal importante em todos os países. No entanto, apenas no Brasil o Judiciário entendia que só se pode executar uma sentença após quatro instâncias judiciais confirmarem a condenação. Este exagero revisional aniquila o sistema de justiça, porque a justiça tarda e, por isso, falha.”
A rigor, o julgamento de um réu é encerrado, como disse o ministro Teori Zavascky (v. acima), na segunda instância. O STJ e o STF apenas examinam se as normas processuais foram respeitadas.
Por fim, independente da opinião que tenhamos sobre o entendimento de 2009, do STF, é uma ideia absurda a de que uma determinada interpretação da lei seja imutável.
É verdade que, quanto mais as leis forem explícitas, melhor para o povo.
Por exemplo, há, no momento, um projeto de lei (PLS 402/2015), elaborado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), e assinado pelos senadores Roberto Requião (MDB-PR), Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), Álvaro Dias (PV-PR) e Ricardo Ferraço (PMDB-ES), para reformar o Código de Processo Penal (CPP), deixando explícita a prisão após a condenação pela segunda instância.
Porém, mesmo sem a aprovação desse projeto, é evidente que a interpretação das leis é um imperativo da realidade.
Como disse a falecida jurista Ada Pellegrini Grinover, sobre a retomada, em 2016, da jurisprudência do STF :
“A lei deve ser aplicada de acordo com as mudanças da realidade. No momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada, ela precisava ser libertária, garantista (…). A situação era outra quando se interpretou como presunção de inocência a não possibilidade de prisão depois da sentença. (…). Mas voltando à decisão do STF sobre a execução da pena, trata-se de uma interpretação evolutiva. (…) O relator [ministro Teori Zavascki] fundamenta a decisão sobretudo no Direito Comparado, porque isso não existe em legislação nenhuma, e no princípio da proporcionalidade de um bem em relação a outro. (…) a norma não diz que é proibido prender até o trânsito em julgado. Diz que há presunção de inocência até o trânsito em julgado” (v. “Com Executivo e Legislativo em crise, o Judiciário tomou conta de tudo”, Conjur, 12/07/2016).
Até mesmo essa última questão – a da “presunção de inocência até o trânsito em julgado” – é, no mínimo, discutível, quando se tem um caso em que as provas, se examinadas com boa fé, retiram a possibilidade de dúvida.
Mas, vá lá. No mínimo teríamos aqui uma espécie de “espectro de inocência” ou “espectro de culpa”, em que a presunção de inocência ou de culpa variariam de intensidade até o “trânsito em julgado”. O que, evidentemente, não poderia fundamentar a liberdade de quem já foi condenado duas vezes, sem que houvesse contestação das provas.
O CASO LULA
Então, se é assim, vamos resumir a questão em forma de pergunta:
É possível dizer que exista sobre alguém condenado em dois julgamentos públicos, por quatro juízes diferentes (o juiz singular da Vara criminal e os três desembargadores do Tribunal de segunda instância), a mesma presunção de inocência do que sobre alguém que não foi condenado ou não foi sequer acusado ou investigado – ou, mais ainda, sobre quem não há suspeição de crime algum?
É óbvio que não.
A “presunção de inocência”, como dizem os juristas, é uma presunção “juris tantum”, ou seja, até prova em contrário, portanto, relativa.
Quando aparecem as provas, não é possível falar mais em “presunção de inocência” da mesma forma que antes de aparecerem as provas.
Muito menos quando essas provas foram examinadas por duas instâncias da Justiça – e a defesa do acusado nem ao menos tentou contestá-las, limitando-se a um comportamento procrastinatório.
No caso de Lula, aliás, esse comportamento não foi apenas procrastinatório, na crença de que seria possível chegar às eleições para obter “foro privilegiado”.
Além disso, ou pior do que isso, a defesa seguiu a “narrativa” lulo-petista de uma suposta perseguição política, como se as propinas, os sobrepreços, os superfaturamentos contra a Petrobrás, os rombos em cima dos fundos de pensão das estatais, não tivessem existido. Ou como se a roubalheira (“nunca foi tão fácil ser ladrão nesse país”, disse Lula à juíza Gabriela Hardt) nada tivesse a ver com quem, por propina, acoitou o roubo.
Temos, algumas vezes, resumido as provas dos processos derivados da Operação Lava Jato (v., p. ex., Uma pequena compilação das provas contra Lula (só no caso do triplex) e “O triplex não é meu” ou as provas que Lula garante que não existem; além disso, para o conjunto do esquema, v. nosso livro, Carlos Lopes, Os Crimes do Cartel do Bilhão contra o Brasil: o esquema que assaltou a Petrobras, Fundação Instituto Cláudio Campos, 2016).
Essas provas não foram inventadas pela Polícia Federal, nem pelo Ministério Público Federal nem pelos juízes Moro, Bretas, Vallisney, Hardt, etc.
Tanto assim que Lula e sua defesa jamais fizeram essa denúncia.
Apenas, dizem que as provas não existem.
O que é o principal motivo do repúdio ao PT, cada vez maior.
As pessoas – o povo – não gostam de ser roubadas.
Mas existe algo que as pessoas, compreensivelmente, gostam menos ainda – é ter a sua inteligência desrespeitada, negada ou anulada.
Porque isso equivale a desrespeitar, a negar, a anular a sua humanidade.
Sobretudo quando isso se faz através de uma narrativa idiota para cobrir os malfeitos – a rigor, os crimes contra o povo – que apenas demonstra que seus autores acham que os outros são idiotas.
O resultado está hoje à vista, com a eleição de Bolsonaro, com ministros que acham que Copérnico era marxista (ou coisa que o valha) – ou que dizem que viram Jesus Cristo em cima de uma goiabeira.
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Não existe presunção de inocência. O que existe é presunção de não culpabilidade, que conduz a regra de tratamento e ônus da prova. Esse status vai cedendo conforme se robustece o acervo probatório. Em alguns países, como a França, essa presunção de não culpabilidade, em muitos casos, já cede em 1º grau.
Esse caso do fazendeiro é muito esclarecedor e revoltante. Ótimo texto!
Excelente texto.