CARLOS LOPES
Benjamin Constant, desde 1882, saíra da Sociedade Positivista, e desde 1885 rompera completamente qualquer relação com os positivistas.
Quem disse isso foi Teixeira Mendes, o segundo dirigente do Apostolado Positivista (o primeiro era Miguel Lemos), em seu livro sobre Benjamin Constant:
“… divergências essenciais, no modo de apreciar a conduta que Augusto Comte impõe atualmente a seus discípulos, haviam determinado afinal entre o Apostolado Positivista do Brasil e o ilustre morto [Benjamin Constant] um rompimento completo de relações, que durou até a insurreição republicana” (cf. R. Teixeira Mendes, “Benjamin Constant – Esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do Fundador da República Brazileira”, 2ª ed., Apostolado Positivista do Brasil, 1913, p. IX).
O livro de Teixeira Mendes procura mostrar que Benjamin Constant rompeu com a Sociedade, depois Apostolado Positivista, porque seu conhecimento da “doutrina do Mestre”, isto é, Comte, era superficial.
É uma obra irritante de se ler – mas não tanto por isso. Imagine o leitor um livro que, em vez de usar o calendário normal, usa o “calendário positivista”, elaborado por Comte, uma doidice com 13 meses, denominados Moisés, Homero, Aristóteles, Arquimedes, Júlio César, São Paulo, Carlos Magno, Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico e Bichat.
Nem o próprio Teixeira Mendes parece convencido dessa genial invenção do “Mestre”, tanto assim que, ao lado da data positivista, coloca a data do calendário gregoriano. Por exemplo:
“Na carta em que se desligou do nosso apostolado dizia o futuro organizador da revolução de 11 de Frederico (15 de Novembro)…” (cf. op. cit., p. 245).
Mesmo assim, isso torna irritante a leitura do livro, pois as datas aparecem assim a todo momento – ou em todo lugar.
Sobre a influência do positivismo – isto é, dos sacerdotes do positivismo – na revolução republicana, Teixeira Mendes é claro:
“Nós estávamos alheios a tudo quanto se tramara. Não aconselhamos e nem aconselharíamos a revolta, porque seria infringir os preceitos de nosso Mestre” (cf. op. cit., p. 359).
Uma declaração que corresponde ao que escreveu Luiz Gama sobre os positivistas de São Paulo (v. a parte anterior deste trabalho: A República e a formação do caráter nacional (9)).
Entretanto, isso não quer dizer que Comte e suas obras deixassem de ter influência, não apenas sobre Benjamin Constant, mas sobre outros republicanos. Inclusive sobre aqueles, como Silva Jardim e Júlio de Castilhos, que, quanto à revolução, estavam muito longe dos “preceitos de nosso Mestre”.
É necessário, então, perceber por que o positivismo teve tanta influência no Brasil.
Trata-se de um fenômeno semelhante ao de Hegel, na Alemanha: em um meio que parecia estagnado, parado, inamovível, os jovens brasileiros receberam as obras de Comte como a descoberta de que o mundo – e a sociedade brasileira, portanto – era mutável, podia mudar, devia mudar e estava mudando.
Comte não era um Hegel – mas era o que havia por aqui, em uma sociedade onde a segunda língua da elite era o francês. Havia poucos cultivadores do alemão, e esses, como é o caso de Tobias Barreto, não entusiasmavam muita gente (v., de Tobias, os seus “Estudos Allemães”, Typ. Central, Recife, 1883; nesse aspecto, o julgamento de Agripino Grieco sobre a chamada “escola do Recife” parece justo; a única exceção à mediocridade foi o inventor do termo “escola do Recife” – Sílvio Romero).
A posterior transformação do positivismo em uma religião, onde a letra escrita de Comte era dogma, artigo de fé, não podia deixar de ter repercussão sobre esses homens.
Como diz o próprio vice-sumo sacerdote da seita:
“… o procedimento do Sr. Laffitte combinava-se com a marcha que espontaneamente seguira Benjamin Constant na adaptação do Positivismo ao Presente. A supremacia dada ao ponto de vista intelectual por aquele que usurpara o título de sucessor do primeiro Pontífice da Humanidade, coincidia com as preocupações pedagógicas de Benjamin Constant” (Teixeira Mendes, op. cit., p. 261, grifo nosso).
Pierre Laffitte foi o principal dos 13 testamenteiros de Auguste Comte, falecido em 1857. As modificações que propôs na doutrina positivista, rejeitadas pela ala dita “ortodoxa”, provocaram a fragmentação dos positivistas. Daí, o Apostolado, no Brasil, considerar Laffitte um “usurpador” – relacionando Benjamin Constant como um seguidor, ainda que espontâneo, do apóstata francês.
Em relação a Benjamin Constant, o importante, no trecho do ortodoxo Teixeira Mendes, é que ele considera como divergência “a supremacia dada” por Benjamin “ao ponto de vista intelectual”, isto é, a supremacia da razão, algo impossível de manter em uma religião.
No caso, uma religião bastante sectária. Por exemplo:
“… viemos a saber da leviandade com que um discípulo de Benjamin Constant, na presença deste, e por ocasião de um concurso, ousara, como examinador, taxar de errônea uma opinião matemática de Augusto Comte, acrescentando que fora o suposto erro corrigido pelo distinto professor. Na tarde mesmo desse dia procuramos Benjamin Constant, que nos recebeu com a cordialidade de outros tempos, e patenteou-se-nos vivamente contrariado com o que se dera. Disse-nos quanto não ficara desapontado ao ouvir as palavras do seu discípulo, e teve a delicadeza de expor-nos com a sua habitual singeleza as suas dúvidas sobre a questão de que se tratava” (Teixeira Mendes, op. cit., p. 262).
O resultado dessa sinceridade de Benjamin Constant foi um panfleto dos positivistas do Apostolado contra ele, pelo pecado de duvidar de algo dito pelo “primeiro Pontífice da Humanidade” (v. A propósito de um pretendido erro de Augusto Comte, Carta ao Sr. Dr. B. C. Botelho de Magalhães, Rio 97, isto é, 1885).
Mas é importante, apesar disso, ressaltar que a influência do positivismo no Brasil se deu pelo contato de uma geração de brasileiros com uma filosofia que, com todas as suas limitações, justificava a mudança.
O caminho posterior – o de fundar uma religião – era, em verdade, a negação do anterior, a negação da mudança, diante de um mundo em que outras filosofias assumiam o papel que, no Brasil, fora antes do positivismo – e de maneira muito mais radical e científica.
Um exemplo tardio dessa transição filosófica é a obra de Leônidas de Resende, pretendendo conciliar o pensamento de Comte com o pensamento de Marx (v. a reedição que o Senado, em 2011, fez de sua principal obra, “A Formação do Capital e seu Desenvolvimento”, de 1932).
***
Todos esses debates e polêmicas, no entanto, passavam ao largo da monarquia – e, inevitavelmente, na medida em que se tornou um obstáculo, voltaram-se contra ela.
A decadência da monarquia teve uma faceta intelectual, mais propriamente, anti-intelectual: a deprimente e retilínea mediocridade. À medida que o tempo corria, os meios políticos – e econômicos – cada vez mais se assemelhavam à sua figura central. A correspondência de Pedro II com um charlatão racista como o conde de Gobineau – para quem não somente os negros, mas os latinos, eram inferiores e “degenerados” em relação aos “arianos germânicos” – mostra a ideia que ele tinha de ciência. A rigor, nenhuma: apenas fazia uso do imenso prestígio que a ciência conquistara no século XIX. Algo que, hoje em dia, seria chamado “marketing”.
Em sua agonia, não há mais, na monarquia, um Euzébio de Queirós, um visconde do Rio Branco ou um Caxias – que se recolheu à sua propriedade, na província do Rio de Janeiro, na estação de Desengano, hoje no município de Valença.
Almeida Nogueira – que foi várias vezes deputado pelo Partido Conservador, e, na República, foi constituinte – em um dos volumes (são, ao todo, nove!) da sua coleção de fatos pitorescos sobre a Faculdade de Direito de São Paulo, conta uma história de Martim Francisco Ribeiro de Andrada (não o irmão, mas o neto de José Bonifácio):
“Ainda quando moribundo, observou a um dos filhos: — Vives a estudar, e isso na política do Brasil é prejudicial. Olha como o Saraiva continua feliz na vida política, e como o Chico Sodré e o Moura têm sempre escapado de ser presos por crime de imbecilidade!” (cf. Almeida Nogueira, “A Academia de S. Paulo – Tradições e Reminiscências”, 2ª série, 1907, p. 133).
É a “Teoria do Medalhão”, que Machado de Assis publicou em 1881, nas palavras de um homem que foi deputado, várias vezes, ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro da Justiça durante a monarquia – e não era medíocre.
Notemos que Martim Francisco está se referindo a uma das supostas glórias do seu próprio partido – o conselheiro Saraiva. Os outros (Francisco Sodré e João de Moura), que foram ministros no Império, também.
Entre o fim do último Gabinete Caxias (janeiro de 1878) e a Proclamação da República (novembro de 1889) houve 10 Gabinetes imperiais.
Inclusive aquele chefiado por Martinho Campos, que se dizia “escravocrata da gema, sempre, com muito orgulho. É dever meu sê-lo… hei de saber cumpri-lo”.
Martinho Campos, cujo programa era apenas manter a escravidão, não era conservador.
Era um dos principais deputados – líder da bancada, presidente da Câmara – depois senador, do Partido Liberal.
O “escravocrata da gema” sucedera a Saraiva em janeiro de 1882.
Quanto a este, que, depois, voltaria à presidência do Conselho de Ministros – substituindo a exceção nessa fieira de mediocridades, o senador Dantas -, era o expoente da política do “não cogito”, em relação ao fim da escravatura.
Saraiva, aliás, pretendia que “não cogitar” da Abolição não era contraditório com ser abolicionista. Pelo contrário, mantendo a escravidão, ele queria que se reconhecesse nele um “emancipador” dos escravos – e, até mesmo, queria cassar o direito de outros a colocar em dúvida tal condição.
Na Câmara, respondendo ao então deputado Joaquim Nabuco:
Sr. SARAIVA (presidente do Conselho de Ministros): “Desde o princípio da sessão o nobre deputado por Pernambuco anuncia o seu propósito, desde o princípio da sessão declarei que não cogitaria desta questão. (Apoiados.) E não cogitaria desta questão por um motivo que mais de uma vez declarei à Câmara. O nobre deputado interpretou essa declaração do governo de um modo que eu não esperava.
“Quando o atual presidente do Conselho [ele mesmo, Saraiva], que foi quem aconselhou ao ilustre pai do nobre deputado que inserisse no programa liberal a emancipação do elemento servil, vem declarar que não cogita agora dessa questão, necessariamente há de ser porque tem a convicção perfeita e bem fundada de que é inoportuno tratar do assunto. (Apoiados.)
(…)
“… o que o nobre deputado não tem direito de articular é que deixam de ser emancipadores os que, falando como eu, dizem: — não queremos tratar agora desta questão. (Apoiados.)
“Ora, toda a argumentação do nobre deputado funda-se nesse pressuposto, evidentemente falso, de que deve ser considerado escravocrata qualquer deputado ou ministro que venha dizer no Parlamento: – Não cogito atualmente desta questão.
“E sabe a Câmara por que não cogito dessa questão? A razão é simples: é porque o meu papel não é o do nobre deputado. S.Ex. é um membro do Parlamento, sem a responsabilidade do governo: pode aventar as questões que lhe pareçam; pode arriscar perante a Câmara as ideias que julgue boas ou úteis; mas o ministro que dirige a política do Império não tem o direito de enunciar um pensamento que não se ache de harmonia com o pensamento da Nação” (cf. Annaes do Parlamento Brazileiro – Camara dos Srs. Deputados, 1880, Volume IV, p. 501, sessão em 2 de setembro de 1880, grifo nosso).
Com o país, àquela altura dos acontecimentos, quase conflagrado contra a escravidão – tanto que ele mesmo, senhor de escravos do engenho de Pojuca, na Bahia, tenta se passar por “emancipador” -, Saraiva diz que entrar em “harmonia com o pensamento da Nação” é manter a escravatura.
De onde se pode concluir que a Nação, o Brasil, para ele, era composto pelos donos de escravos.
Sua posição é exatamente a mesma em 1885, quando Pedro II trocou o senador Dantas por ele, na presidência do Conselho – daí, a Lei Saraiva-Cotegipe (a indecente “lei dos sexagenários”).
Entretanto, Saraiva, como Martinho Campos, também não era um conservador.
Era um dos principais dirigentes do Partido Liberal desde 1850.
***
A monarquia e a escravidão se apoiam, cada vez mais, à medida que se aproximam do fim, no Partido Liberal.
Por isso, os liberais – e sua traição ao programa de 1869, escrito pelo pai de Joaquim Nabuco (emancipação dos escravos; fim do recrutamento forçado; fim da Guarda Nacional; reforma judiciária; e reforma eleitoral) – tornam-se os alvos principais da denúncia dos republicanos. Aqui, é justo ressaltar, nessa época, o papel de Campos Sales.
Ao mesmo tempo, monarquistas tão convictos quanto Rui Barbosa, se tornam republicanos. Ainda em maio de 1889, Rui é monarquista, embora, como escreveu em resposta ao senador Dantas, que lhe censurara a dureza de seus artigos sobre a monarquia, “da República disto apenas uma linha”. Esta carta, aliás, é um documento político essencial para se compreender a remoção das últimas resistências à revolução republicana.
Nessa época, Rui dirigia, no Rio de Janeiro, o Diário de Notícias. No dia 2 de maio de 1889, recebeu a carta de Dantas – e respondeu imediatamente, fazendo a resposta ser entregue no mesmo dia:
“Meu caro amigo Exmo. Senador Dantas
“Li com muito pesar a carta de V. Exª de hoje, pela qual vejo que V. Exª acha no meu artigo desta data asperezas e retaliações inconvenientes, assim como inconveniente lhe parece a rudeza da alternativa que eu estabeleço em relação à monarquia.
“É possível que V. Exª tenha razão; mas, nesse caso, o defeito é de tudo quanto tenho escrito, desde que tomei a redação do Diário. O editorial de hoje é absolutamente conforme ao diapasão que estabeleci, e do qual não poderei destoar um instante, sem perder num momento as simpatias, que constituem a força do Diário. Desde que me falte, por pouco que seja, a liberdade de escrever com essa franqueza, prefiro tornar a fazer o que fiz com o País.
“V. Exª bem sabe que eu não pretendo nada do partido liberal. E, se pouco, ou nada eu esperava dele, ainda menos ilusões tenho de ontem para cá. Depois do artigo da Tribuna [Tribuna Liberal, órgão oficial do Partido Liberal] de ontem eu não teria pisado no congresso [Congresso do Partido Liberal], se o não tivesse prometido a V. Exª. Depois de ver essa reunião presidida pelo Sinimbu [o visconde de Sinimbu, na época, com 79 anos] e de ouvir o raquítico questionário, que nos foi submetido, eu não teria aceitado lugar na comissão, se não soubesse que devia a V. Exª a honra dessa indicação. Foi magnífico o discurso de V. Exª; encheu-me as medidas; mas tudo o mais destoou dele. Entretanto, fiz o sacrifício de calar o meu pensamento a esse respeito. Já era muito. Mais não podia eu fazer.
“Não sou, nem posso ser, órgão do partido liberal. Da república disto apenas uma linha. Já disse a V. Exª que só a sua amizade me tem detido. Mas não posso prescindir, enquanto estiver na imprensa, da faculdade mais completa de referir-me a esse partido e aos seus chefes, exprimindo toda a minha opinião, que é a que eu acho em toda a gente, em roda de mim, faltando apenas quem tenha a isenção de dizê-la. Acredito mesmo que deste modo serei mais útil ao partido liberal do que o seu órgão oficial, com o qual aliás está em divergência uma soma imensa de correligionários nossos.
“Não há chefe político, que goze, neste país, as simpatias de que V. Exª goza. Mas elas não bastarão para neutralizar as antipatias que pesam sobre outros, que, subindo por preconização de V. Exª envolverão a sua responsabilidade, e nem por isso arrastarão o apoio de amigos, com quem V. Exª conta para si, porque inspira uma confiança, que eles nunca me inspirarão.
“O programa do Diário é dizer o que penso, sem rebuço, nem tática. Para mim ele não valerá mais nada, no dia em que poupar a coroa, ou qualquer partido, antes que ela ou ele se reabilitem na opinião pública.
“Releve-me V. Exª esta franqueza. Quero cumprir, sem reservas nem condescendências, tudo o que tenho prometido. Estou certo de que V. Exª acabará por dar-me razão, ainda que não me dê hoje.
“Sempre de V. Exª
“amigo do coração obrigadíssimo e dedicado
“Rui” (cf. Correspondência do conselheiro Manuel P. de Souza Dantas, Casa de Rui Barbosa, 1962, pp. 77-78).
Dantas fora líder de Rui, no Partido Liberal – e na Bahia -, durante 20 anos. Tornara-se praticamente um membro da família Dantas. Seu melhor e inseparável amigo era Rodolfo Dantas, filho do senador.
Seis meses antes da Proclamação, Rui, ainda que por gratidão a Dantas, fora ao Congresso do Partido Liberal e aceitara entrar na comissão eleita.
O que não alterou nem um pouco a sua posição – ou sua evolução, em direção à república.
Lembrou o próprio Rui em 1921, quando prefaciou a segunda edição de “Queda do Império”, que o seu projeto político inicial, ao aceitar a direção do Diário de Notícias, era sanear – ou, mais precisamente, ajudar a sanear – a monarquia.
Literalmente, escreve Rui, mais de 30 anos após a Proclamação da República, estava “trabalhando pela salubridade, pela cura e, conseguintemente, pela prolongação dos dias” da monarquia.
A leitura de seus artigos dessa época demonstra que essa lembrança era exata (esses escritos, que foram publicados com o título “Queda do Império”, estão reunidos no Volume XVI das Obras Completas de Rui, tomos 1 a 8).
Porém, ele não conseguiu:
“Mas onde o Hércules, que varresse de podridões imemoriais os estábulos da corrupção?”
E, de repente (ou nem tanto), o monarquista Rui Barbosa descobriu que era o principal agitador da República. Mas isso não lhe parece estranho. O que lhe parece estranho é continuar monarquista.
No dia 9 de novembro de 1889, quem lhe aparece na redação do “Diário de Notícias” é o tenente-coronel Benjamin Constant, para lhe dizer: “O seu artigo de hoje — Plano contra a Pátria — fez a República e nos convenceu da necessidade imediata da Revolução” (v. o prefácio de Hermes Lima ao volume XVI das Obras Completas de Rui).
No mesmo dia, à noite, Benjamin Constant reuniria os oficiais do Exército no Clube Militar.
Também no mesmo dia, a monarquia promoveria o escandaloso baile da ilha Fiscal.
Dois dias depois, chamado por Benjamin Constant, Rui Barbosa participaria da reunião, na casa de Deodoro, em que foi decidida a Proclamação, após a intervenção do marechal:
“… que leve a breca a monarquia. Não há mais o que esperar dela. Façamos a República, Benjamin e eu cuidaremos da ação militar. O sr. Quintino e seus amigos organizam o resto.”
Estavam presentes, além de Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant, Rui Barbosa e Quintino Bocaiuva, o chefe de esquadra Eduardo Wandenkolk, Aristides Lobo e o capitão de mar e guerra Frederico de Lorena.
Que um homem tão legalista quanto Rui Barbosa não tenha rejeitado – nem ao menos estranhado – a ideia de uma revolução, mostra como estava apodrecida a monarquia. A síntese de Deodoro é quase perfeita: dela nada havia mais a esperar. Restaria acrescentar: senão corrupção, atraso e ditadura.
***
Havia a necessidade de uma revolução, como disse Benjamin Constant a Rui Barbosa, para remover a monarquia. As ideias de que a República pudesse ser uma “evolução” da monarquia – como sustentou Quintino Bocaiuva, já em maio de 1889, no congresso nacional dos republicanos, contra Silva Jardim – ou a possibilidade da monarquia se “republicanizar” sem deixar de ser monarquia, sustentada por Rui Barbosa ainda no início de 1889, ao fim, foram abandonadas por seus próprios defensores.
Já nos referimos ao motivo: “… não temos senão um poder absoluto, uma autocracia de tamancos, mascarada por um arremedo burlesco de liberdade caricata”.
A frase acima não é de um republicano. Pelo contrário, é do principal jornal do Partido Conservador no Rio de Janeiro, em agosto de 1888 (cit. por Rui, O.C., vol. XVI, t. I, p. 60).
Sobre isso, argumentou-se que os ex-escravagistas, após a Lei Áurea, tornaram-se republicanos, para se vingar da generosa e abolicionista família imperial. Esse é, aliás, um dos ataques recorrentes contra a República, procurando atingir a sua legitimidade. Não é uma campanha sem efeitos. Até mesmo um homem da estatura de José do Patrocínio ficou algo confuso com esse ataque – embora, somente por alguns meses (v. O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores).
Há muito, Silva Jardim, homem de credenciais republicanas e abolicionistas impecáveis, respondeu a essa questão – e de maneira demolidora – no plano político:
“Chegam a ter graça, realmente, os nossos antagonistas! Antigamente acusavam a alguns dos nossos correligionários porque possuíam escravos, e declaravam-se republicanos. O fato de ter escravos impedia, segundo eles, que um cidadão pudesse fazer parte dos nossos arraiais. Eis que, abolida a escravidão, os lavradores, por isso mesmo que não tinham mais escravos, declararam-se republicanos; nova censura! Acusados por, tendo escravos, serem republicanos; acusados por serem republicanos, depois que não têm escravos!”
A outra questão é histórica, mas essa nós já desenvolvemos neste texto: a monarquia era a condição política da escravatura. O que inclui a candidata a imperatriz em um terceiro reinado.
É possível que o “marketing” da “Redentora” tenha sido o mais bem sucedido da história do nosso país.
Um historiador italiano comentou sobre a correspondência do czar Nicolau com sua esposa, a czarina Alexandra, que, de tão alienados da realidade, parecia a correspondência entre dois débeis mentais (a tradução aqui é por nossa conta, mas o significado é esse).
É mais ou menos a sensação que se tem ao ler a correspondência da princesa Isabel com seu marido, Gastão de Orleans, conde d’Eu.
Trata-se de algo pior que o fanatismo religioso de Isabel – tão agudamente apontado por Silva Jardim –, embora, é clara a relação entre um e outro.
José do Patrocínio, três meses antes da Abolição, tocou na questão:
“Quem lê os jornaizinhos dos príncipes, tão puros e tão patrióticos, com uns períodos louros como os cabelos de Suas Altezas, jornaizinhos mansos como pombas, que não sabem senão arrulhar, mesmo quando feridas, e compara à política essa expansão d’almas brancas, perfumosas, almas de arminho guardadas em estufa de violeta, sente dentro de si um sentimento espontâneo de revolta contra a Regente” (cf. José do Patrocínio, “A Campanha Abolicionista”, BN, p. 120, artigo de 27/02/1888).
O que Patrocínio não sabia (ou, talvez, soubesse) é que os “jornaizinhos” atribuídos aos príncipes, com o nome “Correio Imperial”, eram, na verdade, feitos pela mãe deles – a própria Regente, a princesa Isabel (cf. Mary del Priore, “O Castelo de Papel”, Rocco, 2013).
Nesse dia, o que revoltara Patrocínio foram os seguintes trechos do “Correio Imperial”:
“Para coroar esta bela obra (a emancipação dos escravos em Petrópolis) falta somente que os senhores de escravos, inspirando-se em sentimentos generosos, facilitem por seu lado a emancipação diminuindo, ao menos, o valor dos libertandos desta cidade.
“Que muito que façam um pequeno sacrifício, quando todos nós pagamos mais ou menos, diretamente, o tributo imposto pela resolução do magno problema?
“Penso que não apelaremos em vão para a alma generosa dos senhores de escravos, e que o próprio município não tardará muito em seguir a trilha luminosa.”
Isso foi em fevereiro de 1888.
A República e a formação do caráter nacional (11)
(continua)
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