CARLOS LOPES
Como o leitor, provavelmente, já observou, até agora não tocamos nos incidentes que passaram à História com o nome de “questão religiosa”.
O “ultramontanismo” dos dois bispos – D. Vital Gonçalves de Oliveira e D. Antônio de Macedo Costa – que foram condenados pela Justiça porque queriam, em 1872, excomungar os católicos que fossem, também, maçons, engendra, quase automaticamente, a tentação de, depois de tanto tempo após as suas mortes, abandoná-los à própria sorte.
Pois o “ultramontanismo” foi o movimento mais reacionário surgido, até hoje, na Igreja Católica, com a pretensão de retroagir o mundo – a começar pela vida dos católicos – à Idade Média. Um dos últimos ultramontanos brasileiros, Gustavo Corção, chamou, a esse período da história, “esplendor medieval”; um esplendor que estaria em ser uma época “estacionária”, em que nada mudava; mas, esclarece Corção, não é de qualquer Idade Média que está falando, e sim daquela anterior ao século XIII (cf. Gustavo Corção, “O Século do Nada”, Record, 1973, p. 117).
O ultramontanismo era algo mais retrógrado que a Inquisição, que não pretendia retroagir, mas manter o que era, do mesmo jeito que era.
Hoje, restam ainda alguns vestígios do ultramontanismo (o mais saliente é o dogma da infalibilidade papal, estabelecido em 1870). Mas é evidente que, desde o papa João XXIII e o Concílio Vaticano II, ele foi essencialmente superado.
Não era o caso em 1872. Oito anos antes, o papa ultramontano, Pio IX, publicara o “Syllabus”, uma lista de 80 heresias “modernas”, entre elas o racionalismo, condenado duas vezes: em sua forma “absoluta” e em sua forma “moderada”.
No Brasil, até o caso dos bispos, era possível ignorar tais questões, porque as decisões do papa somente eram válidas com o beneplácito (“placet”) do imperador.
Em um país onde uma parte grande dos políticos era maçom – inclusive o pai do imperador – era pouco provável que os decretos anti-maçons do Vaticano fossem retirados de alguma gaveta, para serem endossados por Pedro II.
Aliás, não somente entre os monarquistas havia muitos maçons. Uma grande parte dos abolicionistas e republicanos também era maçom (por exemplo, em São Paulo: Luiz Gama – que foi “Venerável” da Loja Maçônica América -, Américo Brasiliense, Prudente de Moraes, Campos Sales, o jovem estudante Rui Barbosa, etc.).
A ameaça de D. Vital era tão fora da realidade que o motivo do caso foi um recurso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da igreja matriz da cidade do Recife, que se recusou a excluir os católicos maçons – e, por isso, foi interditada pelo bispo.
Em suma, a principal irmandade da diocese de D. Vital não aceitou a decisão do bispo, e, por isso, foi fechada ou suspensa.
Apesar de tudo isso ser verdade, é necessário ser justo inclusive com aqueles dos quais discordamos.
O regime do “padroado”, em que a monarquia submetia a Igreja – indicando seus bispos e até decidindo sobre a aceitação de noviços – em troca do catolicismo ser a única religião oficial do país, a única autoridade para realizar casamentos, e, inclusive, a única autoridade para enterrar os mortos, era uma aberração herdada dos tempos coloniais.
Talvez seja por isso que Tristão de Athayde – que entendia muito mais de Igreja Católica do que nós – tenha visto um elemento de nacionalismo na desobediência dos bispos ultramontanos à monarquia.
O “padroado”, por sinal, terminou apenas depois da Proclamação da República (decreto do presidente Deodoro da Fonseca de 7 de janeiro de 1890).
Quando os bispos ultramontanos ameaçaram os maçons de excomunhão – sob um governo que tinha um maçom como presidente do Conselho de Ministros, o visconde do Rio Branco, que era, também, o próprio grão-mestre do Grande Oriente do Brasil –, e foram condenados a quatro anos de trabalhos forçados, a solução de Pedro II foi outra.
A de implorar a Caxias que saísse do seu recolhimento em “Desengano” (v. Caxias e a guerra do Paraguai: retrato do homem no outono de sua vida).
O marechal, pela última vez, salvou Pedro II de uma situação difícil, com a anistia aos bispos. Caxias também era maçom, mas os bispos não rejeitaram a anistia.
Ao fim desta contenda, a monarquia perdera, como já se disse, uma de suas muletas, a Igreja. A outra, o Exército, estava em exponencial descontentamento, cada vez mais público após o falecimento de Caxias, em maio de 1880.
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Entretanto, não é verdade que o clero brasileiro fosse todo – nem principalmente – “ultramontano”.
Aliás, o fato inicial da crise foi um discurso do padre Almeida Martins em homenagem ao visconde do Rio Branco, por ter aprovado a Lei do Ventre Livre, no Grande Oriente do Brasil, ou seja, na maçonaria.
A crise, em sua aparência, era algo inteiramente importado. Não havia, no Brasil, a contradição entre a Igreja e a maçonaria que era própria da Europa. Ainda que existissem anticlericais entre os maçons, havia também, entre eles, sacerdotes católicos e proeminentes membros de irmandades da Igreja (cf. João Dornas Filho, “O Padroado e a Igreja Brasileira”, CEN, 1938, p. 108).
A contradição, portanto, era entre a Igreja e o “padroado” – vale dizer, a monarquia.
Desde a Revolução Pernambucana de 1817 (cognominada “a revolução dos padres”), a maior parte dos sacerdotes, no Brasil, mantinha, em grau maior ou menor, sua identificação com o país e com o seu povo.
Isso era verdade também às vésperas da República. Um dos documentos mais decisivos – e, pode-se dizer, mais espetaculares – da época, é de autoria de um padre.
Célebre em seu tempo, este documento quase desapareceu posteriormente, ao jogo das marés ideológicas, que tentavam, como ainda tentam, classificar a Proclamação da República como um “golpe”.
Portanto, é necessário expô-lo, neste trabalho.
No dia 11 de junho de 1889, o novo gabinete da monarquia, presidido por Afonso Celso (pai), visconde de Ouro Preto, apresentou-se na Câmara dos Deputados para exibir o seu programa, que era, fundamentalmente, aquele que os liberais jamais realizaram desde 1869, quando Nabuco de Araújo o escreveu.
Tomou a palavra o padre João Manuel de Carvalho, deputado pelo Partido Conservador, do Rio Grande do Norte:
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Sr. Presidente, os últimos acontecimentos políticos que todos nós temos testemunhado, se por um lado devem causar no espírito público as mais sérias apreensões e produzir a mais viva impressão no ânimo dos brasileiros, por outro lado deve enchê-los do maior júbilo, despertando-lhes ao mesmo tempo as mais gratas esperanças pelos futuros destinos de nossa Pátria.
“Tudo está indicando evidentemente que este país fadado por Deus aos mais gloriosos destinos, em breve passará por transformações profundas e radicais, e que as velhas instituições, que nos têm humilhado, tendem a desaparecer deste solo abençoado, onde não puderam consolidar-se nem produzir frutos benéficos. (Sensação.)
“Tudo é confusão e anarquia: confusão na ordem social, anarquia na ordem política. Mas tenho fé em Deus que deste caos medonho, em que se debatem inanes, se estorcem agonizantes, os restos de uma monarquia moribunda (apoiados e aplausos), há de surgir a luz, essa luz suave e esplêndida da liberdade e da democracia, que há de incendiar todas as inteligências, iluminar todos os espíritos, inflamar todos os corações, caindo no seio da Pátria como gotas de orvalho divino, vivificando-a, fecundando-a como vivificam as flores os raios de um sol de estio.
“Senhores, os aparelhos deste velho sistema de governo estão gastos e imprestáveis. Os antigos partidos acham-se divididos, esfacelados…
UM DEPUTADO: – Descobriu isto agora.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Só tenho que dar satisfação à Nação, que nos julgará.
“… esfacelados pelo ódio, anulados pela fraqueza, apodrecidos pela corrupção, estragados pelos vermes da dissidência que os têm corroído e dilacerado.
“O Senado e o Conselho de Estado, onde se deveria imperar a razão e a calma, a reflexão, a prudência, e a sabedoria, têm perdido a sua seriedade (apoiados e não apoiados), desmentindo suas honrosas tradições. Traindo o seu papel, desvirtuando a sua missão, pervertendo os fins para que foram criados, tornando-se facciosos e revolucionários.
“O poder irresponsável, cercado do prestígio da realeza, investido das maiores e das mais largas atribuições que se podem depositar nas mãos de um homem, abusando escandalosamente das augustas prerrogativas que tão de boa fé lhe foram conferidas pelo legislador constituinte, e que tão generosamente foram reconhecidas e aceitas pela Nação, esse poder vós todos o sabeis e sentis, tornou-se o poder único, supremo e absoluto, tudo avassalando à sua vontade, tudo amesquinhando, tudo abatendo, tudo mistificando, tudo corrompendo, invadindo, absorvendo e suprimindo todos os outros poderes constituintes.
“Diante desta dissolução dos partidos, que se estragaram e se perderam, diante da anarquia e desmoralização em que se acham as instituições com que os nossos Pais procuraram felicitar-nos, não há espírito, por mais indiferente, que não se entristeça contemplando os males, as ruínas e as misérias da Pátria, que é a única sacrificada aos erros, às ambições, aos caprichos e vaidades daqueles a quem têm sido confiado os seus destinos.
“Se a história política de nosso país não fosse fecunda em fatos que mostram e confirmam esta verdade, bastaria a organização do atual gabinete para desvendar-nos os olhos, denunciando, ao mesmo tempo, o segredo das intrigas e das conspirações palacianas.
“O Ministério de 7 de junho [o Gabinete do visconde de Ouro Preto, que estava se apresentando] é uma verdadeira monstruosidade (muitos apoiados da bancada): nada representa e nada significa de grande, de nobre, de confessável; não é um governo da nação, porque vem atentar contra o sentimento nacional; não é um governo nem ao menos partidário, porque nasceu divorciado do seu partido: é um governo ameaçador, que traz em seu bojo um pensamento sinistro, porque, digamos a verdade, ele é simplesmente um produto da vontade imperial.
“O que estamos nós vendo agora de admirável e de surpreendente?
“Dissolve-se a situação conservadora, pujante de força, representada nesta casa por 90 deputados, e chama-se ao poder o partido liberal, que apenas pode contar aqui com uma pequena minoria.
“A quem se deve imputar ou atribuir a responsabilidade deste fato, que é a negação de todos os princípios do sistema parlamentar representativo…
DEPUTADO JOAQUIM PEDRO: – Aos seus chefes.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “… que é a inversão completa da ordem natural das coisas?
“Como se poderá decentemente explicar esse fenômeno estranho de entregar-se o poder ao partido que se acha em minoria na Câmara dos Deputados, em cujo seio reside expressa a vontade nacional?
“Sr. Presidente, tudo estava escrito, a sentença era irrevogável!
“A exposição de motivos feita pelo nobre ex-ministro do Império relativamente à crise política que se operou e cuja solução deu em resultado a queda do Gabinete de 10 de março e a ascensão do Partido Liberal ao poder, é de máxima importância e gravidade, e derrama ao mesmo tempo muita luz sobre os acontecimentos que se deram.
“Tenho o dever imperioso de falar ao País com a maior franqueza e lealdade, dizendo tudo o que penso, tudo o que sinto. Não é a hora das recriminações pessoais; pelo contrário, é a hora solene da coragem cívica e da verdade.
“Senhores, vós ouvistes ler aquele documento importantíssimo. A Coroa ficou patente, denunciou-se escandalosamente desta vez. Negando a demissão do gabinete, cujo chefe lha pedira por seis vezes, a Coroa só teve um pensamento: acentuar cada vez mais a cisão do Partido Conservador.
“Era preciso fazer crer a este pobre país, sempre iludido, que o Conselheiro João Alfredo, aquela grande alma e aquele elevado caráter, não passava de um ambicioso vulgar, que agarrado ao poder como a ostra ao rochedo, solicitava insistentemente a dissolução da Câmara, para poder esmagar nas urnas a dissidência conservadora.
“Entrava sem dúvida nos cálculos imperiais cavar mais fundo ainda o valo que separava os chefes conservadores, tornando-os irreconciliáveis e impossíveis pela intriga, pelo ódio e pelas paixões, de que se deixassem dominar.
“Pois, senhores, não foi uma crueldade, uma crueldade revoltante, conservar esse gabinete longo tempo exposto aos ataques mais violentos, e atado ao posto da calúnia e da difamação, que fazia parte de um plano perversamente preconcebido e subterraneamente concertado?
“Mas em tudo isso, senhores, houve uma completa mistificação para castigo de todos que figuraram nesta comédia: foram todos mistificados.
DEPUTADO FELIPE FIGUEIROA: – Apoiado.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Mistificado, sinto dizê-lo, foi o nobre ex-presidente do Conselho, que chegou a acreditar na sinceridade da coroa negando-lhe a demissão coletiva do Gabinete, quando ele devia conhecer de há muito o grande artista com quem lidava. (risos.)
“Mistificado foi o Sr. Conselheiro Paulino, chefe da dissidência…
UM DEPUTADO: – Esse não foi ouvido.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “… que cometeu gravíssimo erro de aliar-se aos seus adversários naturais para combater um governo composto de membros do seu partido (protestos), acreditando, sem dúvida, que o poder lhe iria parar às mãos para realizar o programa de indenização [dos senhores de escravos]. (protestos.)
“Mistificado foi o Conselheiro Corrêa…
DEPUTADO ALFREDO CHAVES: – O regimento é que está agora mistificado.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “… que recuou vendo-se entre a espada e a parede ou naufragou, indo de encontro ao penedo da sua preliminar.
DEPUTADO PEDRO LUIZ: – Peço a palavra.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Mistificado foi o nobre Visconde do Cruzeiro, que ainda deu-se ao incômodo de alegar motivo de moléstia para não organizar gabinete.
“Mistificado foi o nobre Visconde Vieira da Silva, que quis fazer das fraquezas forças, pondo em contribuição o seu espírito elevadíssimo e o seu patriotismo, supondo poder formar um gabinete, quando o seu partido ainda não estava unido.
“Mistificado foi o Sr. Conselheiro Saraiva, que acreditou submeter a Coroa ao seu vasto programa de reformas, que levariam o País às fronteiras da República, e que a Coroa aceitou sem restrições, dispensando-o ao mesmo tempo por cautela da incumbência honrosa que lhe fora confiada, à primeira escusa apresentada.
“Mistificado foi ainda o nobre presidente do Conselho, Visconde de Ouro Preto, que acreditou galgar ao poder com um gabinete formado de acordo com seus amigos, quando teve de submeter-se à vontade da Coroa, que lhe impôs companheiros com quem não contava.
VISCONDE DE OURO PRETO (Presidente do Conselho): – Não é exato.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Mistificado foi o Partido Liberal, que sempre acreditou inaugurar a situação com o gabinete genuíno, quando teve a dolorosa decepção de encontrar-se com o ministério composto por áulicos.
“Todos foram mistificados, até a própria coroa que acreditou ter achado o seu homem capaz de matar a República, que surge ameaçadora, quando S. Exª não tem força para dar conta da obra que lhe foi encomendada.
CÂNDIDO DE OLIVEIRA (ministro da Justiça): – Tanto melhor para V. Exª.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “O nobre Presidente do Conselho sente-se satisfeito…
VISCONDE DE OURO PRETO (presidente do Conselho): – Não, senhor.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “… por ver a sua ambição realizada; e S. Exª apresenta-se ao Parlamento muito lampeiro, muito ancho e cheio de si (risos), radiante de júbilo e de felicidade…
VISCONDE DE OURO PRETO (presidente do Conselho): – Não, engana-se.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “… supondo-se sem dúvida um triunfador.
VISCONDE DE OURO PRETO (presidente do Conselho): – Suponho-me uma vítima.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Como se engana Sua Exª! A sua vitória é uma verdadeira vitória de Pirro. (risos.)
“S. Exª preparou a seu jeito uma escada para subir, mas por esses mesmos degraus escorregadios há de rolar, caindo na praça pública execrado e coberto de maldições (sensação), porque nutre e afaga o pensamento sinistro de atentar contra as liberdades públicas e a soberania nacional. (Oh! Oh!)
“Pouco importa que S. Exª apareça armado em guerra, procurando intimidar com a carranca das duas pastas militares (hilaridade prolongada); senhores, vós compreendeis perfeitamente que não tenho interesse em ofender a ninguém, mas considero irrisório de se pretender fazer do nobre ministro da Guerra um espantalho para assustar a República, quando S. Exª não passa de um bom homem, um cidadão pacato e um militar inofensivo. (Oh! Oh! Risos.)
“A carranca do nobre ministro da Marinha, sim (hilaridade), sim, esta é mais formidável e mais temerosa, porque S. Exª é homem de luta e de ação.
“Mas eu faço justiça à nobreza do seu caráter.
“Não creio que o nobre Barão do Ladário queira renunciar ao seu passado de glória, macular o seu nome honrado, prestando a se servir de terror, sem pesar a grave responsabilidade do papel que lhe designaram.
UM DEPUTADO: – Está refutando tudo quanto disse. (Há outros apartes.)
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Estou falando para o País (risos). Acredito mesmo que o nobre Barão, atordoado pela surpresa da escolha, não porque não a merecesse, mas porque não a esperava, não tivesse tempo para refletir, e, obedecendo somente aos impulsos do seu patriotismo, aceitasse o posto que ocupa no gabinete; no momento, porém, em que S. Ex. se convencer de que está servindo de instrumento inconfessável para massacrar, para vitimar os seus compatriotas…
UM DEPUTADO: – Não creia que o Sr. Barão do Ladário seja capaz disto.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “… estou certo de que S. Exª saberá assumir a atitude que lhe impõem o seu brio militar, o seu patriotismo e a sua dignidade pessoal.
“O nobre ministro do Império [barão de Loreto] não é uma carranca (risos), é simplesmente uma careta. (Hilaridade prolongada.)
PRESIDENTE: – Atenção! Cumpre-me dizer ao nobre Deputado que esta expressão não é parlamentar. (Apoiados.)
DEPUTADO BEZAMAT: – O que admira é que V. Exa. tivesse ouvido impassível, sem reclamar, o que se tem dito contra o imperador.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “S. Exª representa no Ministério o elemento puramente áulico.
DEPUTADO AFONSO CELSO JÚNIOR: – Pode dizer o que quiser; não ofende. (Há outros apartes.)
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Há uma grande diferença a atender, uns vêm para aqui e renegam; eu venho para aqui e professo.
DEPUTADO JOAQUIM PEDRO: – Isso não edifica nada.
DEPUTADO PADRE JOÃO MANUEL: – “Já se acham aí em jogo interesses do 3º Reinado; é preciso destacar alguém para os arraiais do Partido Liberal, a fim de observar de bem perto o movimento dessas reformas, que se anunciam e se prometem, para impedi-las caso tenham de ser realizadas.
“S. Exª, portanto, representa no Ministério o olho áulico, esse olho providencial que tudo espreita e tudo vê para salvaguardar os interesses da Monarquia.
“No posto em que se acha, S. Exª representa um papel que lhe é próprio, uma função que lhe é pessoal e que só ele pode preencher e desempenhar. Entretanto, não se pode dizer que S. Exª seja um ilustre desconhecido, porque já por mais de uma só vez se tem feito notável, pelas vitórias conquistadas nas batalhas de flores. S. Exª representa ainda a imprensa, porque é o redator chefe do Correio Imperial.
“Fique certo, porém, o nobre Presidente do Conselho de que o povo brasileiro não tem medo de carrancas e muito menos de caretas.
“S. Exª aventurou-se a uma empresa arriscada, temerária, muito superior às suas forças.
“Fez-se crer nas regiões olímpicas que a permanência do Partido Conservador no poder aumentava o número de adeptos da República. Chegou-se mesmo a dizer que só o Partido Liberal podia salvar a monarquia do naufrágio a que estava exposta, e de todos os seus chefes foi escolhido o nobre presidente do Conselho, como o mais capaz de, usando das próprias palavras que lhe são atribuídas, esmagar a cabeça da hidra republicana, afogando a ideia nova em vilipêndios e em sangue.
“O nobre Presidente do Conselho está muito enganado. S. Exª não tem força para conter este movimento que se levanta possante, para abafar essa onda da opinião que cresce temerosa, que se avoluma, que sobe impávida e que há de assoberbar e envolver a todos aqueles que ousarem opor-lhes barreiras.
“O seu orgulho e a sua ambição hão de ser castigados, porque S. Exª será esmagado debaixo da pedra que rolará da montanha, impelida pelas lufadas impetuosas do vento da liberdade.
“Não nos iludamos, a República está feita.
“Só lhe falta a consagração nacional. Ela existe de fato em todos os espíritos, em todos os corações brasileiros.
“Seja arrojada temeridade ou rematada loucura pretender impedir essa torrente caudalosa da ideia nova, que invade todos os espíritos e se derrama pujante em todo o solo da Pátria.
“O aparato belicoso, com que o governo procura aterrar o espírito nacional, é desnecessário, porque a República não quer brigar.
“A revolução é outra: a revolução pacífica, operada pela centelha do patriotismo, incendiando todos os espíritos e abrasando todos os corações brasileiros; revolução que terá o mesmo resultado benéfico que teve o da abolição do elemento servil.
“O emprego da força, da violência e da compressão só poderão fazer vítimas, aumentando consideravelmente o número de agitadores.
“Cada brasileiro se imporá como dever sagrado defender a sua ideia, agitando a opinião pública, falando à alma nacional, despertando-lhe todos os sentimentos, excitando-lhe todos os estímulos, movendo-lhe todas as fibras patrióticas, concorrendo para a grandeza e felicidade deste país, que há de elevar-se como um gigante, impondo-se à admiração e respeito das nações mais civilizadas, bafejado pelas auras puras da democracia.
“Não se iluda o nobre Presidente do Conselho.
“Abolida a escravidão, que nos envergonhava, é preciso abolir-se o poder que nos oprime e esmaga, esterilizando todas as fontes de riquezas e estancando todas as forças vivas da nação. Uma coisa é consequência natural de outra.
“Não tardará muito que os brasileiros, jubilosos, saúdem com entusiasmo o alvorecer da aurora brilhante da regeneração política e social.
“Não tardará muito que neste vastíssimo território, no meio das instituições que se desmoronam, se faça ouvir uma voz nascida espontânea do coração do povo brasileiro, repercutindo em todos os ângulos deste grande país, penetrando mesmo no seio das florestas virgens, bradando enérgica, patriótica e unanimemente: abaixo a Monarquia e viva a República!” (Muito bem, muito bem. Apoiados e não apoiados. Aplausos prolongados nas galerias e no recinto).
VOZES: – Ordem! Ordem!
PRESIDENTE: – Advirto às galerias que não podem dar manifestações. (cf. Pe. João Manuel de Carvalho, “Reminiscências sobre Vultos e Fatos do Império e da República”, Typ. do Correio Amparense, Amparo, 1894, pp. VIII a XV).
Como, às vezes, é difícil acompanhar a sucessão dos acontecimentos, frisamos que isso se deu em 11 de junho de 1889, cinco meses antes da Proclamação da República.
Quanto à maioria da Câmara, até então esmagadoramente do Partido Conservador, Pedro II, através do “poder moderador”, iria dissolvê-la, para que o visconde de Ouro Preto e o Partido Liberal fizessem outra Câmara, que por pouco não foi unânime (130 deputados liberais, 7 conservadores e 2 republicanos).
***
O advogado Silva Jardim, casado com Ana Margarida, filha de Martim Francisco de Andrada (o neto de José Bonifácio), morava em Santos quando a Câmara Municipal de São Borja, Rio Grande do Sul, aprovou uma moção favorável a um plebiscito para que “fosse consultado o país sobre a oportunidade de se pronunciar desde logo relativamente à destituição da monarquia pela morte de Pedro II, visto a herdeira do trono ser uma princesa fanática, casada com um príncipe estrangeiro”.
A moção, do vereador Aparício Mariense da Silva, foi aprovada em 13 de janeiro de 1888 – e logo o movimento espalhou-se pelas câmaras municipais do país.
A resposta da monarquia foi cassar o mandato dos vereadores de São Borja.
A 28 de janeiro, Silva Jardim falou, em protesto, no Teatro Guarany, em Santos – e iniciou sua trajetória de propagandista da República.
Muito se escreveu sobre o papel que a triste perspectiva de um terceiro reinado, com Isabel por imperatriz e Gastão de Orleans por consorte, teve no crescimento dos sentimentos republicanos.
Esse problema, evidentemente existia. Mas a principal questão era o reinado de Pedro II. Como disse Silva Jardim:
“… pergunto eu, quem não vê que o principal vitimado será o povo, o proletário, o operário preto, ao qual sem dúvida faltará muita vez mesmo o que comer? O operário, o ex-escravizado, o liberto, – eis a principal vítima da monarquia, eis o explorado no reinado de Isabel, como explorado no reinado de Pedro!” (grifo nosso).
Silva Jardim era, como em outras coisas, um pioneiro na defesa da nossa miscigenação:
“Ah! Senhores! Sejamos brancos, e sejamos pretos… Tenhamos as boas qualidades da raça branca e da raça preta, por uma sincera confraternização; sejamos brancos, e sejamos pretos…”
Como outros republicanos, ele tinha uma ideia do Brasil após a remoção da monarquia:
“… perante o atual estado do país, quando tudo brada pela reforma, quando a república seria o bem estar dos brancos, e principalmente dos pretos, porque a república é o governo do proletariado, e em nossa pátria o proletariado, na sua maioria agrícola, é quase todo composto de descendentes da raça preta, – não é má fé, não é maldade, não é desumanidade, explorar contra os republicanos a gratidão dos pretos, os sentimentos de expansão de liberdade de uma raça tão boa, tão infelicitada, para sustentar um trono, que é o mais formidável representante da oligarquia?”
A origem dessa situação, do ponto de vista da base econômica do país, não lhe passa despercebida:
“… somos um povo sem indústria fabril e manufatureira quase, exportamos pouco, tudo importamos do estrangeiro; e são-nos desprotegidos os poucos germens de vida industrial.”
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“Não nos iludamos, a República está feita. Só lhe falta a consagração nacional. Ela existe de fato em todos os espíritos, em todos os corações brasileiros.”
Quando Deodoro, de sua deportação em Mato Grosso, resolve voltar ao Rio, sem pedir autorização ao governo, a República não somente está feita, como disse o padre João Manuel, como sua consagração nacional – isto é, a Proclamação – é questão de algumas semanas.
Embora isso esteja em alguns bons livros escolares, não é dispensável enfatizar que a chamada “questão militar” é, na verdade, a questão da escravatura, isto é, se o Exército seria usado contra o povo brasileiro para manter escrava uma parte dele – ou não.
As outras questões – o conflito do coronel Frias Vilar com o ministro da Guerra, Carlos Afonso, irmão do futuro visconde de Ouro Preto; a execução do difamador Apulcro de Castro por alguns oficiais do 1º Regimento de Cavalaria; e, inclusive, a questão das aposentadorias dos militares – foram não apenas secundárias. Simplesmente, foram sem importância do ponto de vista da República, até porque a posição da monarquia (isto é, de Pedro II) foi a favor dos militares, inclusive na primeira, em que o ataque de Carlos Afonso foi após a sua saída do Ministério.
Com o que a monarquia não conseguiu conviver foi a recepção, na Escola de Tiro, comandada pelo tenente-coronel Sena Madureira, ao Dragão do Mar, o líder dos jangadeiros cearenses que se recusaram a embarcar escravos, comprados no Ceará para as plantações de São Paulo, Rio e Minas Gerais.
O Dragão do Mar era um homem do povo, mulato, Francisco José do Nascimento, conhecido no Ceará como “Chico da Matilde” (cf. Raimundo Girão, “A Abolição no Ceará”, 3ª ed., 1984, Fortaleza, p. 107).
Em 1884, depois da abolição da escravatura no Ceará, o Dragão do Mar veio ao Rio de Janeiro, onde foi recebido, dizem todos os que deixaram testemunhos dessa época, “triunfalmente”.
O comandante da Escola de Tiro, oficial pernambucano que era abolicionista notório, o tenente-coronel Antonio de Sena Madureira, era um dos oficiais mais notáveis do Exército. No Paraguai, fora condecorado várias vezes por bravura em combate: recebera a Ordem de Cristo, a Ordem do Cruzeiro e a Ordem da Rosa. Apesar de oficial do Exército, Sena Madureira fora professor da Escola de Marinha, pois era profundo conhecedor do Direito Marítimo Internacional. Além disso, fora, também, um dos oficiais que, sob o comando de Caxias, realizaram missões de observação em balões no Paraguai – na época, era preciso ter muita coragem; aliás, até hoje (cf. tenente-brigadeiro Nelson Freire Lavenère-Wanderley, “Os Balões de Observação na Guerra do Paraguai”, 2ª ed., Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, 2017, pp. 53 e segs).
Era um líder e um chefe muito respeitado pelos oficiais e pela tropa do Exército Brasileiro.
O convite ao Dragão do Mar poderia ser absorvido, pois o jangadeiro também fora recebido por Pedro II. Mas é claro que havia uma diferença: a recepção ao Dragão do Mar na Escola de Tiro não era encenação.
O ministro da Guerra, Franco de Sá, destituiu Sena Madureira do seu comando, fez uma repreensão pública ao oficial – e transferiu-o para a Escola Preparatória de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul.
Tudo iria estourar dois anos depois, somado ao caso do coronel Cunha Matos, no outro extremo do país: no Piauí, este coronel, outro respeitado combatente no Paraguai, após investigação, denunciou um capitão corrupto, que comandava um quartel.
O capitão fazia “negociatas com o soldo das praças e com os prêmios aos voluntários e engajados” (cf. Nelson Werneck Sodré, “História Militar do Brasil”, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1968, p. 147).
Em junho de 1886, os amigos do ladrão resolveram vingá-lo – Cunha Matos, que era coronel de Estado-maior da Artilharia, foi acusado, na Câmara, de ter atacado tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai, por um deputado de nome Simplício.
Era uma acusação da qual Cunha Matos já fora absolvido, por sentença de ninguém menos que o Duque de Caxias.
O coronel Cunha Matos repudiou a calúnia publicamente, pela imprensa. Por isso, foi punido pelo ministro da Guerra (que, agora, era Alfredo Chaves) com dois dias de prisão.
A reação (isto é, a de maior impacto) veio do marechal Câmara – o vencedor do último combate da Guerra do Paraguai, que também era senador pelo Rio Grande do Sul e visconde de Pelotas. Depois do falecimento de Caxias (1880) e Osório (1879), o marechal Câmara era o oficial-general mais célebre das Forças Armadas.
Depois de mostrar que as leis e os “avisos” (portarias ministeriais) somente proibiam manifestações públicas de militares contra superiores hierárquicos, diz, no Senado, o marechal Câmara:
SENADOR VISCONDE DE PELOTAS: “… S. Ex. [o ministro da Guerra] não pondera bem nas obrigações que ao militar impõe o sentimento da dignidade da classe. O Sr. deputado, que ofendeu o coronel Cunha Matos, foi injustamente agressivo para com esse distinto oficial; mas não o foi só para com ele, porque, para feri-lo atacou primeiro o honrado ministro da Guerra, que é o chefe da classe militar e aquele a quem na Câmara, que foi o lugar da agressão, incumbia o imediato desagravo da honra militar vilipendiada pelo deputado agressor.
“E quão facilmente poderia havê-lo feito o honrado ministro! Bastaria, para fazer calar esse Sr. deputado, que o honrado ministro recordasse uma sentença proferida pelo ínclito Duque de Caxias como membro do Supremo Tribunal Militar; sentença em que de todo se deu por julgada a carência de fundamento das acusações de que fora vítima o coronel Cunha Matos; bastaria que o honrado ministro lembrasse que foi o próprio Duque de Caxias quem, depois disso, promoveu o coronel Cunha Matos. Mas o honrado ministro, em vez de defender o honrado oficial, o que até certo ponto era a [defesa] da classe militar de que S. Ex. é chefe, preferiu conservar-se mudo, reservando toda a sua veemência para castigar o oficial, quando este protestou pela imprensa! Nem sequer há o direito do gemido! É preciso pedir licença até para gemer! (Apoiados e apartes.)” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1886, Livro 4, Sessão em 18 de Agosto de 1886, p. 184).
Entretanto, o pior – para a monarquia – ainda estava para vir.
***
Em meio a uma discussão de agressividade incomum no Senado do Império, o ministro da Justiça, o conservador Ribeiro da Luz, lembrou que “um correligionário” do marechal Câmara, que era liberal, punira, dois anos antes, o tenente-coronel Sena Madureira.
Disse mais, em outra sessão do Senado: que o marechal Câmara, aliás, visconde de Pelotas, ficara calado diante da punição de Sena Madureira – e insinuou (ou até mais do que insinuou) que isto se devia a que o então ministro da Guerra, Franco de Sá, era do Partido Liberal.
RIBEIRO DA LUZ (ministro da Justiça): “É uma novidade, pergunto, o que praticou o atual Sr. ministro da Guerra? Não, senhores. Já ocupava o elevado cargo de senador pela província do Rio Grande do Sul o ilustre general, tinha S. Ex. desde anos assento nesta casa, e não protestou…” (cf. Annaes cit., p. 8).
O marechal Câmara não respondeu. Em seu lugar, interveio o ex-ministro da Guerra, o liberal Franco de Sá, para dizer que os casos eram diferentes – a punição de Sena Madureira fora justa, mas a de Cunha Matos era injusta.
***
O tenente-coronel Sena Madureira, em Rio Pardo, era um leitor do órgão oficioso da monarquia, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. Não devia faltar quem lhe enviasse o jornal.
Ao ler o que acontecera no Senado, redigiu uma resposta – e publicou-a no único jornal que aceitaria publicá-la, o jornal republicano “A Federação”, dirigido por Júlio de Castilhos, em sua edição de 19 de agosto de 1886.
Como existem muitas lendas – na verdade, preconceitos – sobre essa resposta de Sena Madureira, transcrevemos abaixo a sua íntegra. O título, no pé da segunda página, dado pelo diretor do jornal, era apenas “O tenente-coronel Madureira e o senador Franco de Sá”:
“Em apartes dados pelo sr. senador Franco de Sá ao discurso de s. ex. o sr. ministro da Justiça na sessão do Senado de 2 do corrente, transcrito no Jornal do Commercio em 14 do mesmo mês, fui de novo agredido por aquele membro da câmara vitalícia, contando sem dúvida com as imunidades parlamentares, que parecem estar agora em moda…
“Venho pressuroso ao encontro do ilustre senador maranhense, para desfazer ainda uma vez o engano em que labora, ou parece querer eternamente jazer, acerca dos motivos invocados para a demissão e repreensão em ordem do dia ao Exército, com que pretendeu fulminar-me s. ex. quando ministro da Guerra em abril de 1884, fatos que vieram à baila a propósito do ato do sr. ministro da Guerra em relação ao sr. coronel Cunha Matos.
“Disse o ilustre oposicionista em resposta ao sr. ministro da Justiça:
“‘Não houve abuso no caso do tenente-coronel Madureira; ele mereceu a repreensão e a demissão de comandante da Escola de Tiro, por ter desrespeitado em ofício o ajudante-general.’
“O SR. VIRIATO DE MEDEIROS: — Houve abuso muito grande de v. ex.
“O SR. FRANCO DE SÁ: — Não houve abuso algum, eu podia ter sido mais rigoroso; esse oficial foi quem abusou publicando artigos anônimos e injuriosos ao ministro, do que não fiz caso.
“O SR. V. DE MEDEIROS: — É preciso provar que eram dele.
“O SR. F. DE SÁ: — Era evidente, até assinados com um seu pseudônimo conhecido.
“O SR. V. DE MEDEIROS: — Não há evidência nesse caso, deve-se provar.
“O SR. PRESIDENTE: — Atenção!’”
“Devo, primeiro que tudo, agradecer mais uma vez ao meu distinto e ilustre amigo, antigo companheiro de armas, o sr. senador Viriato de Medeiros, a defesa que – em falta de outros – de novo apresentou ao ato que motivou a minha demissão do comando da Escola de Tiro de Campo Grande e a repreensão com que honrou-me o inconsciente e novel ministro da Guerra, o sr. Franco de Sá.
“Não me deterei em repisar uma questão já vencida, depois dos brilhantes discursos dos senadores Viriato e Junqueira, proferidos nas sessões de 17 e 19 de maio de 1884, e da defesa que antes havia publicado com a minha assinatura nas colunas do Jornal do Commercio da corte, em 8 do referido mês.
“Desses documentos ficou evidenciado que não houve de minha parte o menor desrespeito à autoridade ou à pessoa do exm. sr. ajudante-general do Exército, nem disto era eu capaz, e sim uma digna resposta ao ofício que o ajudante de ordens de s. ex., fiado sem dúvida na impunidade que lhe garantia a presença, na pasta, de um ministro estranho à classe, se julgara autorizado a dirigir a um seu superior na hierarquia militar e chefe de um dos mais importantes estabelecimentos de instrução do Exército.
“A quem interessar os detalhes dessa questão, indico a leitura dos documentos citados.
“O sr. senador Franco de Sá é, porém, o único a sustentar ainda o erro deplorável que cometeu e de que fui vítima.
“‘Sua alma, sua palma.’”
“Quanto à segunda asserção de s. ex. – que eu havia abusado publicando artigos anônimos e insultuosos à sua ilustre pessoa, e por isto tinha sido justamente punido, – basta, para demonstrar a inverdade de semelhante alegação, comparar as datas dos artigos que apareceram no Jornal do Commercio da corte, de 13 a 28 de maio, com a demissão e repreensão em 29 de abril do mesmo ano!!
“Puniu-me previamente o ex-ministro da Guerra pela publicação de artigos anônimos que deviam aparecer na imprensa quinze dias depois!!
“É sua ex. quem o diz agora.
“Os artigos que analisaram o ato prepotente de s. ex. nada tinham de insultuoso à pessoa do nobre senador; mostraram o erro cometido e diziam a verdade; a eles s. ex. não respondeu porque não o podia fazer com vantagem, dispondo, entretanto, de longa verba e de escritores para defender os seus atos nos entrelinhados da mesma folha.
“Preferiu calar-se e fez bem.
“Mas, quem garantiu ao atilado senador que os tais escritos fossem de minha pena, para declará-lo mais uma vez no parlamento?
“Para dizê-lo conscientemente, fora preciso que antes s. ex. fizesse chamar à responsabilidade o Jornal e verificasse a autoria dos escritos que tanto incomodaram-no.
“Garanto que s. ex. encontraria a assinatura de quem nunca se furtou à responsabilidade de seus atos.
“O ilustre senador disse por último que não fizera caso dos artigos que supunha serem da minha lavra.
“Agradeço a fineza.
“Poderia retaliar – mas não o faço – respondendo que nós, velhos soldados, nem sempre tomamos ao sério os generais improvisados que perpassam rápida e obscuramente pelas altas regiões do poder.
“O tenente-coronel Antonio de Sena Madureira.
“Rio Pardo, 16 de agosto do 1886.”
Este foi o artigo pelo qual a monarquia quis punir outra vez o tenente-coronel Sena Madureira, mas encontrou a recusa do seu comandante, Deodoro da Fonseca, então Comandante das Armas do Rio Grande do Sul.
Júlio de Castilhos escreveu, então, uma memorável série de artigos:
“… os fatos que ocorrem são um salutar aviso ao exército, que deve já saber qual é a posição que lhe está destinada nesta derradeira fase do segundo reinado.
“Desde que, sob o pretexto de disciplina militar e erigindo a obediência passiva em divisa suprema, o poder público proíbe aos militares a própria defesa pessoal – sem censura prévia, a nobre classe fica impedida de exercer direitos primordiais e até privada de cumprir o dever que sob o ponto de vista militar lhe é duplamente imperioso – o dever de manter inviolável a suscetibilidade do seu pundonor, o dever de zelar a dignidade própria.
“Até que ponto podem chegar os desvarios do Império!
“Felizmente, o exército nacional conta oficiais da grandeza moral do tenente-coronel Madureira, que, diante do arbítrio do poder desvairado, sabe manter a mais nobre altivez, digna em tudo da sua bravura militar e da sua reconhecida capacidade de chefe estimado e eminente” (cf. Júlio de Castilhos, “O Império e o Exército”, 27/09/1886, in “O Pensamento Político de Júlio de Castilhos”, Martins Livreiro Ed., 2003, Porto Alegre, p. 44).
Em outro artigo:
“Assim, o governo, que por muito menos reteve em prisão ainda há pouco um oficial superior, o coronel Cunha Matos, vê repelido dignamente em nome da lei e da honra militar o seu aviso intempestivo e arbitrário, vê crescer o desprestígio que ele mesmo promoveu, e hesitante, perturbado, arrependido talvez do seu erro proposital, irritante e provocador, revela-se incapaz de uma resolução decisiva, sem saber se deve acrescentar o arbítrio ao árbitro punindo a digna repulsa, ou se deve retroceder reconsiderando o seu ato violento.
(…)
“A conjuntura é iniludível:
“Ou o governo submete o tenente-coronel Madureira a um conselho de guerra a fim de que, afeta a questão ao tribunal competente, se decida se deve passar em julgado que à classe militar está imposta a indignidade de deixar-se insultar impunemente na sua honra por quem quer que seja;
“Ou o governo submete-se à legalidade e repara o seu gravíssimo erro, retirando os seus avisos provocadores e revogando a intolerável doutrina que neles se contém.
“Ainda mais: se o poder público não perdeu por completo a noção da própria respeitabilidade, desde que persista em castigar a altivez pundonorosa do bravo oficial ofendido, tem também de estender as suas repreensões ao benemérito Visconde de Pelotas, que sem dúvida nesta emergência não se prevalece das suas imunidades parlamentares, ao ilustre general Deodoro, que sustenta nobremente a causa do seu digno camarada, à distinta oficialidade desta capital, toda ela publicamente solidária com o seu companheiro de armas.
“Bem sabemos que dessa consequência extrema recuará atemorizado o governo: está bem visível que a sua arrogância provocadora nesta questão de honra já cedeu às vacilações da pusilanimidade” (cf. op. cit., p. 47, “Governo e Disciplina”, 27/09/1886).
Quanto ao visconde de Pelotas – o marechal Câmara -, nessa altura dos acontecimentos, fez as pazes com seu antigo desafeto, Deodoro da Fonseca, e assumiu a defesa também de Sena Madureira, escrevendo ao jornal de Júlio de Castilhos:
“Como velho soldado deste Exército tão rico de abnegação, de patriotismo e de valor, venho agradecer à ilustre redação de A Federação as palavras de consideração e de conforto que dirige ao distinto tenente-coronel Antônio de Sena Madureira, a quem o atual Sr. ministro da Guerra mandou repreender em ordem do dia do comando das armas desta província. O tenente-coronel Madureira é um oficial que faz honra ao Exército brasileiro pela sua bravura, pela sua ilustração, pela sua honradez e pelo seu devotamento ao serviço. Dando testemunho público do apreço que me merecem suas altas qualidades, e da alta estima em que o tenho, cumprimento muito cordialmente aquela ilustrada redação, que no artigo ‘Arbítrio e Inépcia’ fê-los tão bem realçar. O tenente-coronel Madureira só merece honras e louvores” (cf. Nelson Werneck Sodré, op. cit., pp. 148-149).
Tratava-se de um visconde e senador vitalício do Império escrevendo a um jornal republicano.
A República e a formação do caráter nacional (12)
(continua)
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