CARLOS LOPES
Houve 139 mil combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai – e 50.000 não voltaram vivos. Não poucos, nem mortos voltaram (v. Francisco Doratioto, “Maldita Guerra – Nova História da Guerra do Paraguai”, 2ª ed., p. 483; como observa Doratioto, isso significa que 1,5% da população brasileira da época esteve na Guerra).
Não temos publicada, ainda, toda a correspondência de Caxias. Por isso, não temos as respostas de Osório a Caxias. Mas, do general Osório, temos a carta a seu filho, Fernando Osório, enviada de Tuiuti para São Paulo:
“Recebi, no primeiro do corrente, a tua carta de 29 de Abril. Estimei saber que passas bem e assim vais nos teus estudos, a que desejo te apliques e que enquanto eu for vivo não te lembres de ser militar” (carta de 05/07/1866).
Era uma estranha guerra, no meio da qual o maior poeta brasileiro da época, Castro Alves, escreveu seu maior poema. Entretanto, ele mal fala – se é que fala – da guerra:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…
Não é claro a que guerra Castro Alves está se referindo. Não deve ser a do Paraguai, que, em 1868, quando “Navio Negreiro” foi escrito – e declamado pelo poeta, no dia Sete de Setembro, em São Paulo – estava ainda longe de acabar.
Em meio à guerra mais sangrenta da História do país, o tema de Castro Alves é a escravidão. Ou, melhor, a necessidade de acabar com ela.
Mas era isso o que a guerra tornava premente.
Um de seus principais biógrafos frisa que a guerra do Paraguai “não teve a simpatia de Castro Alves”:
“… só há uma de suas poesias O Pesadelo de Humaitá que trate deste assunto, e estava de hóspede no Rio, na redação de um diário carioca, assistindo à passagem de uma manifestação patriótica – e provocado ou solicitado, produziu aqueles versos, que, embora aplaudidos, lhe mereceram a condenação de artista – ‘não se publica’: foi a nota que lhes pôs à margem” (cf. Afrânio Peixoto, Castro Alves, o poeta e o poema, 2ª ed., CEN, 1942, p. 295).
Realmente, Castro Alves deixou para o seu desafeto, e medíocre poeta, Tobias Barreto, a Guerra do Paraguai como tema (não se sabe se ele riu ao ler o poema de Tobias: “Que leio em vossa alma inquieta?/ Queda de Montevideu:/ Tombaste, diz o profeta,/ E o raio aplaude no céu!// Pernambuco agita a coma,/ Irrita-se um pouco e toma/ O peso do Paraguai;/ Dá de escárnio uma risada,/ Cerra o punho e a sua espada/ Desembainha-se e vai…”).
Em compensação, Tobias, que era mulato, ignorou a escravidão, exceto para dizer que Deus era o culpado (“Se Deus é quem deixa o mundo/ Sob o peso que o oprime,/ Se ele consente esse crime,/ Que se chama a escravidão,/ Para fazer homens livres,/ Para arrancá-los do abismo,/ Existe um patriotismo/ Maior que a religião.// Se não lhe importa o escravo,/ Que a seus pés queixas deponha,/ Cobrindo assim de vergonha/ A face dos anjos seus,/ Em seu delírio inefável,/ Praticando a caridade,/Nesta hora a mocidade/ Corrige o erro de Deus!…”).
Entretanto, existe uma menção à Guerra do Paraguai no final do poema de Castro Alves, de 1867, dedicado à vitória baiana e brasileira na Guerra de Independência, Ao dous de julho:
Mãos, que, outrora de crianças
A rir — dentaram as lanças
Dos velhos de Pirajá…
De homens hoje, as empunhando,
Nas batalhas afiando,
Vão caminho de Humaitá!..
Basta!… Curvai-vos, ó povo!…
Ei-los os vultos sem par,
Só de joelhos podemos
N’est’hora augusta fitar
Riachuelo e Cabrito,
Que sobem para o infinito
Como jungidos leões,
Puxando os carros dourados
Dos meteoros largados
Sobre a noite das nações.
E existe outro poema de Castro Alves especificamente sobre a Guerra do Paraguai – mas sobre seus órfãos e seus mortos anônimos: “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”, datado “São Salvador, 31 de outubro de 1867”:
Eu, que a pobreza de meus pobres cantos
Dei aos heróis – aos miseráveis grandes -,
Eu, que sou cego, – mas só peço luzes…
Que sou pequeno, – mas só fito os Andes…
Canto nest’hora, como o bardo antigo
Das priscas eras, que bem longe vão,
O grande NADA dos heróis, que dormem
Do vasto pampa no funéreo chão…
(…)
E foram grandes teus heróis, ó pátria,
– Mulher fecunda, que não cria escravos -,
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
“Parti – soldados, mas voltai-me – bravos!”
E qual Moema desgrenhada, altiva,
Eis tua prole, que se arroja então,
De um mar de glórias apartando as vagas
Do vasto pampa no funéreo chão.
E esses Leandros do Helesponto novo
Se resvalaram — foi no chão da história…
Se tropeçaram — foi na eternidade…
Se naufragaram — foi no mar da glória…
E hoje o que resta dos heróis gigantes?…
Aqui — os filhos que vos pedem pão…
Além — a ossada, que branqueia a lua,
Do vasto pampa no funéreo chão.
***
Não é muito diferente, em conteúdo, o que escreveu, já em 1866, José de Alencar, pela imprensa, nas suas “Cartas Políticas de Erasmo“. Alencar, entretanto, é muito mais contundente, até porque, além de grande escritor, é um dos principais políticos do Partido Conservador – nessa época, na oposição. Por exemplo:
“A guerra que sustentamos é desde sua origem um tecido de incongruências e desacertos. Só há em toda ela de nobre, digno e consolador, a intrepidez de nossos marinheiros e soldados. Virtude espontânea do homem e do povo produziu-se independente do governo, e apesar dos esforços adrede empregados para abafá-la.”
“O sangue generoso do Brasil é neste momento entornado a jorros nos charcos do Paraguai.”
“Meu Deus! Quanto são pródigos da honra e sangue da nação os homens que se erigiram em árbitros de seus destinos?“
“Não se concebe que o Brasil possa em condição alguma sofrer maiores humilhações do que tem curtido sob a influência maléfica da política internacional inaugurada em 1864 [isto é, a intervenção no Uruguai]”.
“O abismo nos invoca. Só não o veem diante aqueles a quem alucina a vertigem do poder. Esses, enquanto o país estorteja, deleitam-se na compostura de frases perluxas e nos guisos de suas ocas palavras. Pensam eles que se conjura calamidade tamanha com a fofa presunção e o talento da ninharia.”
“Fomos vítimas de súbita demência política; estranha revulsão sopitou em 1864 o bom senso nacional.”
E, diretamente para Pedro II:
“A paz é uma grande vergonha…. (…) A paz é um ato de miséria…. (…) A paz é uma vilania… (…) Mas, senhor, há coisa pior que a paz. Há outra vergonha, outra miséria, outra vileza superior a essa. É a guerra como a tem feito vosso governo.”
***
A Guerra do Paraguai fora popular em seu início, devido à invasão do território nacional por Solano López, em Mato Grosso e no Rio Grande do Sul, como relata o maior cronista político da época, Machado de Assis:
“Pouco depois [da intervenção do Império no Uruguai] veio o insulto do Paraguai.
“Assim é que o povo brasileiro se levantou de todas as partes, enérgico e entusiasta, para defender os seus irmãos ofendidos na campanha oriental e na província de Mato Grosso.
“O movimento popular cresce de dia para dia. As fileiras dos voluntários vão enchendo de patriotas” (cf. Diário do Rio de Janeiro, 25 de abril de 1865, in Machado de Assis, Obra Completa, Volume III, Aguilar, 1986).
E, na edição seguinte do mesmo semanário:
“Não é decerto um acontecimento novo a declaração da guerra do Paraguai à Confederação Argentina; já se esperava, segundo as últimas notícias. Também não é novidade a maneira por que López fez essa declaração; não se esperava outra coisa.
“Que quer o marechalito?
“Quer perder-se. Perdido estava ele. Bastavam as forças do império para mandá-lo passear. As armas do Brasil não carecem de dar novas provas do seu valor e do seu poder. Mas, como se lhe não bastara a honra de morrer às mãos dos brasileiros, o mata-mouros conjura contra si todas as forças organizadas da vizinhança.
“As palavras do general Mitre: em três dias nos quartéis, em quinze dias na campanha, em três meses em Assunção, – se forem seguidas de uma execução imediata, marcam o caminho de todo o governo enérgico e ativo em circunstâncias tão graves” (Machado de Assis, idem, 2 de maio de 1865).
Essa era a ilusão geral. Não de Machado, nem apenas de Mitre, mas do governo imperial:
“… as estimativas bastante subdimensionadas do ministro brasileiro em Assunção, Viana de Lima, apontavam para um efetivo paraguaio total de 16.680 homens, mais 7 a 8 mil reservistas” (cf. Cesar de Oliveira Lima Barrio, “O Império do Brasil e a Política de Intervenção no Rio da Prata (1843-1865)”, FUNAG, 2018, p. 384, nota).
Solano López tinha um exército composto por 77 mil homens.
Contra 18 mil e 320 homens do Exército brasileiro (cf. Francisco Doratioto, op. cit., p. 91).
Apesar disso, “as notícias que chegavam da legação imperial no Paraguai em nada desencorajavam a ação militar – ao contrário, segundo César Sauvan Viana de Lima, ministro brasileiro em Assunção, López ‘não se lançaria em uma aventura militar’ e, mesmo que o fizesse, seria derrotado ‘sem grande esforço’” (cf. Cesar de Oliveira Lima Barrio, op. cit., p. 407).
Desencadeada a guerra, Solano López ajudou bastante a coesionar o Brasil contra o Paraguai, ao invadir nosso território. O mesmo aconteceu com a Argentina, onde Urquiza se uniu a Mitre, depois da invasão de Corrientes.
“Se depois do espetáculo das orelhas enfiadas numa corda e expostas à galhofa dos garotos de Assunção, houver um país no mundo que simpatize com o Paraguai, não precisa mais nada — esse país está fora da civilização” (Machado de Assis, idem, 07/02/1865).
Poderia ser, apenas, o grande Machado em mau momento, repetindo a propaganda de guerra do Império.
Entretanto, é uma referência, não de todo exata, a um episódio durante a invasão de Mato Grosso pelos paraguaios:
“Ocupada Corumbá, em 4 de janeiro, o coronel Barrios enviou o Iporá e o Rio Apa em perseguição ao Anhambaí que, alcançado após quatro horas, foi empurrado para a margem, onde encalhou e foi abordado. Poucos marinheiros brasileiros escaparam com vida; foram mortos com espadas e machadinhas aqueles que ficaram a bordo e a tiros os que tentaram escapar a nado. Os mortos tiveram suas orelhas arrancadas e penduradas em cordas nos mastros do Iporá, segundo diário de passageiro não identificado do vapor britânico Ranger, que estivera em Corumbá depois de sua ocupação. Conforme esse diário, o Iporá aportou em Assunção com produtos saqueados em Mato Grosso, tendo ‘à vista do público uma corda contendo grande quantidade de orelhas humanas, postas a secar, que pertenciam aos infelizes tripulantes da Anhambaí’” (cf. Francisco Doratioto, op. cit., p. 104).
A fonte de Machado parece ter sido a imprensa de Buenos Aires – reproduzida pela do Rio de Janeiro.
Porém, o relato apareceu, antes do fim da guerra, após sua rendição em Angostura, nas memórias de um dos principais oficiais de Solano López, responsável pela construção das defesas de Humaitá e Curupaiti, o engenheiro inglês George Thompson.
É verdade que, quando o livro foi publicado, em 1869, Solano López condenara Thompson, por sua rendição, à morte – e o livro é francamente contra López. Mas, também, tem um tom abertamente anti-brasileiro, em especial, anti-Caxias, transformado, no melhor dos casos, em fiel executor dos planos de Mitre.
Como estamos discutindo algo escrito pelo maior escritor brasileiro, transcrevemos, literalmente, o que está no livro de Thompson:
“Se desprendieron botes para dar caza a los fujitivos, y todos los que tomaron fueron asesinados. Los paraguayos cortaron las orejas a los muertos y las ensartaron en cuerdas, qué amarraron en los obenques del Ypora. Cuando algún tiempo después llegó el Ypora a la Asunción, las orejas fueron retiradas inmediatamente por ‘orden suprema’; y cuando este hecho atroz llegó a conocimiento de la prensa bonaerense, el Semanario, diario oficial del Paraguay, rechazó la calumnia con indignación” (Thompson, “La Guerra del Paraguay”, Imprenta Americana, Buenos Aires, 1869, pp. 41-42).
***
Na homenagem a Osório após a guerra, em 6 de agosto de 1871, o principal orador, em Porto Alegre, foi o coronel alagoano Deodoro da Fonseca.
Osório respondeu ao discurso de Deodoro:
“… peço-vos, sr. coronel que, como um dos heróis, que fostes, desta guerra, aceiteis, para transmitir a vossos camaradas, a manifestação da profunda gratidão que voto ao heroico Exército vingador das injúrias à Pátria, e os sentimentos que me inspiram o seu valor, o seu devotamento e incomparável abnegação” (cf. R. Magalhães Júnior, “Deodoro, a Espada contra o Império”, Volume I, CEN, 1957, p. 132).
Deodoro, como ele mesmo dizia, “fizera a guerra do Paraguai de fio a pavio”.
Três dos irmãos de Deodoro morreram na Guerra do Paraguai.
Era geral o sentimento, entre os oficiais brasileiros que participaram da Guerra, de que a monarquia – e, especialmente, Pedro II – mandou-os a um matadouro, sem plenas, ou com muito poucas, condições de combate.
Isso aparece até mesmo na correspondência de um homem tão discreto quanto Floriano Peixoto. Em 1879, escrevendo do Recife, onde servia, a um amigo, João Soares Neiva, também militar e também participante da Guerra do Paraguai, diz Floriano:
“Tens razão, o Paraguai estragou a todos nós, não valemos mais nada” (cf. Artur Vieira Peixoto, “Floriano – memórias e documentos”, vol. I, MEC, 1939, p. 94).
Em 1882, de Maceió, ele escreve ao mesmo amigo:
“Lembro-me com saudade daqueles bons tempos em que a crença afagava o coração. Nada fiz, porque falharam-me os recursos necessários, mas sempre trabalhei abraçado ao patriotismo. Hoje os “Pipocas” e outros ejusdem [=a mesma coisa] falam com escárnio dos serviços de guerra e procuram a todo transe matar qualquer aspiração. Têm razão: o Brasil há de custar a regenerar-se, o filhotismo continua de colo alçado e desbragado. Se aparecer outra campanha, virão os pagãos que têm couro grosso, os batizados ficarão nessa Corte, dando planos sob a influência do bom café, ao sabor do fumo de perfumado havana” (cf. op. cit., p. 97).
Floriano participara da guerra desde o cerco de Uruguaiana até Cerro-Corá, onde foi morto Solano López. Ou seja, de toda a guerra. Tal como Deodoro, foi um dos oficiais recomendados, para promoção e condecoração, por Osório.
Era, também, como Osório, membro do Partido Liberal (a impressão que se tem, ao ler documentos do século XIX, é que todos os oficiais pertenciam a um ou outro partido; Deodoro, por exemplo, era membro do Partido Conservador).
Mas Floriano estava farto – inclusive do Partido Liberal. O motivo imediato transparece em outra carta, enviada da Paraíba, em que se refere ao seu trabalho como “delegado especial” para coordenar os exames preparatórios às escolas superiores em Alagoas:
“Prossigo no sistema da justiça e esta será feita. Bem sabes que jamais servirei de instrumento de vingança para satisfação de quem quer que seja. Sou liberal de convicção, a política nada tem que ver com as amizades do serventuário e muito menos com o que é justo. Respeito todas as convicções e sabem também que tenho amigos íntimos filiados aos conservadores” (cf. carta a João Soares Neiva de 01/12/1882, op. cit., p. 99).
Na época, não era necessário explicar ao que Floriano se referia. Agora, é quase obrigatório explicitar algo em que já tocamos: o sistema eleitoral do Império.
Faremos isso em seguida. Antes, uma observação sobre Floriano.
É conhecido como o Exército, tendo Deodoro por presidente do Clube Militar, rechaçou a tentativa de empregar efetivos seus na caça aos escravos que se recusavam a continuar escravos. A frase “não somos capitães do mato!” é uma das mais célebres da História do Brasil.
Menos conhecido é como Floriano foi um aberto abolicionista, inclusive membro de clubes abolicionistas. Deve ter sido algo sui generis a sua participação nas discussões dos abolicionistas pernambucanos – nessa época (1883) ele era brigadeiro (general de brigada) e comandante de armas da província de Pernambuco, ou seja, chefe de todas as forças armadas da região.
Em 1884, já comandante de armas da província do Amazonas, Floriano recebeu uma homenagem dos pernambucanos: um diploma de sócio do Clube Ceará Livre, com sede em Recife (cf. Artur Vieira Peixoto, “Floriano – memórias e documentos”, vol. I, MEC, 1939, p. 101).
O Ceará, desde 25 de março de 1884, abolira a escravatura. Daí o nome do Clube de que Floriano se tornou sócio.
***
Antônio Ferreira Vianna – não o prócer conservador, mas o seu filho, com o mesmo nome, que era republicano – deixou uma obra inestimável: “O Antigo Regímen (Homens e Coisas)”, reunião de artigos publicados sob o pseudônimo “Suetônio”, após a Proclamação da República.
A coletânea, aparecida em 1896, foi prefaciada por Quintino Bocaiúva, que, além de líder republicano, foi o fundador de “O Paiz”, jornal em que foram publicados, originalmente, os artigos de “Suetônio”.
Depois de mencionar alguns acontecimentos em São Paulo, onde aparecera um manifesto pela restauração da monarquia em nome da “liberdade eleitoral”, prossegue Ferreira Vianna (filho):
“… vamos contar como se faziam as eleições na corte, na cidade em que residia o imperador, e portanto nas suas barbas.
“Logo que subia um partido ao poder, tratavam imediatamente das nomeações dos subdelegados de polícia das freguesias. Eram escolhidos para esses cargos os mais temíveis cabos eleitorais, que arregimentavam o seu pessoal, composto dos capoeiras. (…)
“Empossados os subdelegados, os seus 50 suplentes e os inspetores de quarteirão, dava-se começo ao alistamento eleitoral desenvolvendo-se uma perseguição atroz aos adversários e proteção escandalosa aos amigos.
(…)
“Preparada assim a máquina eleitoral, procedia-se à eleição chamada do 1º grau, no lugar e dia designados. Presidia a mesa o 1º juiz de paz da paróquia com o seu fitão verde e amarelo a tiracolo e começava a chamada, que durava três dias.
“Só votava quem pertencia ao partido dominante; os adversários figuravam como votando, mas representados pelos chamados FÓSFOROS, exercendo alguns deles cinco e seis vezes as suas funções em diversas paróquias.
“Em uma eleição na freguesia do Engenho Velho chamaram para votar o duque de Caxias: apresentou-se um crioulo de grande trunfa, capoeira conhecido. Alguns ingênuos protestaram contra a identidade do indivíduo que tinha a impudente audácia de se apresentar em um comício eleitoral com aquele glorioso nome, digno de admiração e respeito por pertencer ao bravo marechal que naquela ocasião comandava em chefe o nosso exército no Paraguai, em operações contra o governo daquela república.
“Os cacetes, porém, fizeram calar os protestantes e a mesa decidiu, em sua alta impudência, que o crioulo era o próprio duque de Caxias, e nessa qualidade votou.
“E isto se praticava em lugar muito próximo do palácio imperial, onde residia o Marco Aurélio do seculo XIX, o príncipe liberal e amigo do seu povo!!
“Na primeira apojadura, o partido decaído não comparecia às urnas em obediência a seus chefes, que, em manifesto à nação recomendavam abstenção, apostrofando a falta de garantias e a opressão à liberdade do voto.
“Ninguém tomava ao sério esses manifestos, que eram assinados por aqueles que no poder tinham sido autores de atos iguais aos que condenavam.
“À proporção que o partido que governava ia se enfraquecendo, o da oposição apresentava-se a disputar o poder e, quando lhe era feito o sinal pelo imperador, aparecia nas urnas.
“Era então que havia as eleições chamadas disputadas. Os cabos eleitorais conservadores e liberais iam para a igreja acompanhados de seus clientes armados de cacetes e navalhas e, depois de marcarem a arena para o combate, começava a chamada.
“Se o votante chamado era conservador, os liberais protestavam, clamando que não era o próprio e com gritos: não vota, não vota, e vice-versa.
“Travava-se então o conflito. Era uma cena canibalesca; esbordoavam-se, esfaqueavam-se, até que chegava a força pública, adrede estacionada na proximidade da igreja, que tomava a saída do templo e expelia a oposição, e o vencedor fazia a eleição a seu gosto.
(…)
“Os conflitos no recinto eleitoral eram muitas vezes provocados pelos dominadores, para na confusão da luta, emprenharem a urna, o que na gíria eleitoral queria dizer lançar dentro dela uma porção de cédulas.
“O famigerado chefe de cabala Cardoso tinha uma linguagem, que se pode chamar eleitoral, com que era compreendido pela sua gente sem ser entendido pelos adversários. Assim: quando ele dizia em altas vozes e em tom de indignação: Haja moralidade, era sinal que se tinha realizado uma fraude combinada.
“Peneira a canjiquinha, minha gente, era a senha para começar a pancadaria.
“Assisti a uma destas revoltantes cenas na paróquia da Glória, em 1878. Foi uma hecatombe, onde pereceram nove pessoas, além das que ficaram gravemente feridas. A igreja ficou ensanguentada, mesmo nos altares havia sangue!
“E era assim que se respeitava a lei, a religião do Estado e a liberdade do voto” (cf. “O Antigo Regímen (Homens e Coisas)”, 1896, pp. 24-33).
[NOTA: A unidade eleitoral – e, aliás, populacional – mais básica, no Império, era a paróquia. Daí as “eleições de primeiro grau” realizarem-se na sede da paróquia, isto é, na igreja.]
***
Este era o sistema – em termos práticos – até 1881, quando os liberais aprovaram, quase em vésperas da República, a sua incensada (por eles mesmos) reforma eleitoral, a Lei Saraiva, que instituía eleições diretas para o legislativo, e, ao mesmo tempo, cortava 90% do eleitorado, através da proibição de voto aos analfabetos, antes inexistente, e, também, dos obstáculos para comprovar renda (só tinham direito a voto os homens com renda anual igual ou superior a 200 mil réis):
“Em 1872, havia mais de 1 milhão de votantes, correspondentes a 13% da população livre. Em 1886, votaram nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou 0,8% da população total. Houve um corte de quase 90% do eleitorado” (José Murilo de Carvalho, “Cidadania no Brasil”, Civilização Brasileira, 3ª ed., p. 39).
E nem, ainda, nos referimos ao fato óbvio de que os escravos não votavam, embora pertencessem à população do país. O mesmo pode-se dizer das mulheres, fossem escravas ou não.
A reforma eleitoral de 1881 foi, portanto, uma alteração antidemocrática, um estatuto escravagista às vésperas da Abolição e da República: “a nova lei eleitoral é toda favorável aos proprietários, isto, é aos fazendeiros e outros possuidores de escravos, ultra-conservadora e notoriamente feita ao sabor do Imperador”, apontou Anfrísio Fialho, em seu panfleto de 1885.
Em termos práticos, em termos de costumes políticos, nada mudara:
“A primeira prova foi boa; mas logo após foi deturpada e as violências anteriores repetiram-se: os morticínios da Escada, em Pernambuco; os da cidade do Recife, onde morreu o celebre Bodé, que não queria a eleição do Sr. Joaquim Nabuco, hoje paladino restaurador [da monarquia] e que naturalmente se horroriza com a compressão da vontade dos cidadãos nos comícios eleitorais da República.
“Também com a eleição direta se deu a matança de Goiás, mandada fazer pelo governo, para eleger o filho do Sr. Andrade Figueira.
“Com esta mesma lei fez o Sr. visconde de Ouro Preto uma câmara unânime, impondo às províncias representantes que elas nem sequer conheciam de vista. Um houve, também hoje campeão furibundo do sebastianismo, que foi eleito por duas províncias para ficar por duas amarras, tão necessário era aos grandes planos políticos da época.
“A eleição direta foi, portanto, uma burla, que só serviu para tirar o direito de voto à grande maioria da nação” (cf. Suetônio [Ferreira Vianna], “O Antigo Regímen (Homens e Coisas)”, 1896, pp. 35-36).
***
Para os homens que voltaram do Paraguai, esse estado de coisas parecia, cada vez mais, com o mundo além da porta do Inferno.
A começar pela escravidão.
Eles haviam combatido, em condições terríveis, tanto brancos quanto negros, mulatos, caboclos. Alguns oficiais que depois atingiram o generalato – Floriano, por exemplo – nem mesmo se podia dizer que fossem brancos.
Com algumas experiências psicologicamente duradouras:
“De Montevidéu seguimos embarcados até a margem do S. Francisco, que fica perto de Paysandú. Aí vi chegar o batalhão de Zuavos da Bahia, composto exclusivamente de homens negros escolhidos. O aspecto dessa gente causou-me uma tal impressão, direi mesmo um tal entusiasmo, que fui imediatamente ao quartel-general pedir ao general Osório que me encarregasse de instruí-los na esgrima de baioneta e consentisse que os comandasse na primeira ação em que tivéssemos de entrar” (Anfrísio Fialho, “Recordações”, 1885, p. 21).
O ex-oficial que descreveu assim os Zuavos da Bahia era alguém com cultura inteiramente europeia, que passara muito tempo fora do país, a partir dos 11 anos de idade.
A experiência da Guerra do Paraguai o transformara. Ele ainda não sabia disso, ao publicar uma apologia de Pedro II, quando adido em Bruxelas. Mas já era verdade. Tanto assim que, diante dos protestos que sua apologia provocou, resolveu estudar a situação do país, e, particularmente, a monarquia.
Muito rápido, chegou à conclusão de que o Brasil “nunca há de passar de uma fazenda enquanto for monarquia” (cf. “Recordações”, p. 189).
Era verdade. Até mesmo os monarquistas mais progressistas (o exemplo mais evidente é André Rebouças) não conseguiam ultrapassar esse limite em seus projetos.
Não é possível, evidentemente, que Fialho fosse o único ex-combatente da Guerra do Paraguai a chegar a essa conclusão.
E não estamos nos referindo aos positivistas, que, a começar por Benjamin Constant, odiaram a guerra, tanto quanto a monarquia, desde o primeiro momento.
***
As obras de historiadores como Francisco Doratioto e Alfredo da Mota Menezes foram essenciais para aclarar a obscuridade lançada, em 1979, pelo livro de Júlio José Chiavenato, “Guerra do Paraguai: Genocídio Americano”.
O pior momento para discutir um tema desse tipo, seria quando os quatro países envolvidos (Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai) estavam sob ditaduras – e ditaduras militares.
É possível que Chiavenato pensasse (não importa o seu nível de consciência sobre isso, ou mesmo se havia consciência) que seu livro poderia ser uma arma contra a ditadura no Brasil e/ou nos outros países da passada “Tríplice Aliança”.
O fato é que não foi. Nem podia ser. Não apenas porque, para citar um autor odiado pelo bolsonarismo, “a verdade contém em si o seu próprio remédio” – mas a mentira, a falsificação, disso é incapaz (cf. Antonio Gramsci, “Lettere dal Carcere”, 05/11/1936).
Também por outra razão, aliás, mencionada pelo mesmo autor (e implícita na citação anterior):
“… o passado é uma coisa complexa, um conjunto de vivo e morto, no qual a escolha não pode ser feita arbitrariamente, a priori, por um indivíduo ou por uma corrente política” (Gramsci, “Cadernos do Cárcere”, volume 1, trad. Carlos Nelson Coutinho, Civilização Brasileira, 1999, p. 394).
Nesse caso, logo na época do lançamento do livro de Chiavenato, o historiador marxista Manoel Maurício de Albuquerque apontou que faltava, a ele, base factual. Trata-se de uma “narrativa” essencialmente sem base em fatos (“deficiente documental e teoricamente e muito prejudicada pelo emocionalismo”, registrou Manoel Maurício, depois, em sua “Pequena História da Formação Social Brasileira”, Graal, 1981, p. 414).
Em um escrito (o leitor vai nos perdoar por não usar a palavra “paper”, mas não conseguimos) de 2008, Francisco Doratioto faz uma síntese da historiografia brasileira sobre a Guerra do Paraguai (v. Francisco Doratioto, “História e Ideologia: a produção brasileira sobre a Guerra do Paraguai”).
É inteiramente correto que, mesmo os primeiros autores, aqueles que se empenharam em mostrar a Guerra do Paraguai como uma epopeia, “já demonstravam algum grau crítico, questionador do desempenho de chefes militares e das condições de vida do soldado”.
Estamos, no essencial, de acordo com a avaliação de Doratioto sobre o livro de Chiavenato:
“‘Genocídio Americano’ constitui-se, na realidade, em uma simplificação das ideias do historiador argentino León Pomer, expostas no livro intitulado “La Guerra del Paraguay, gran negocio!”, publicado em 1968. A emoção que Chiavenatto procura criar com seu texto, com descrições indignadas contra ações militares aliadas e a descrição estereotipada – e falsa – das partes em luta, camufla sua incoerência lógica e a fragilidade das suas fontes.”
Apesar disso, “essa interpretação predominou nos livros de História destinados a estudantes de 1º e 2º Graus nas décadas de 1980 e 1990”.
Sobre o livro do historiador argentino:
“O trabalho de Pomer, que sustenta-se em bases menos frágeis, com citações de fontes primárias e secundárias, foi publicado no Brasil em 1980, com o titulo de “A Guerra do Paraguai – Grande Negócio” (São Paulo: Global). Este livro e “Genocídio Americano” constituem marcos fundadores do movimento revisionista brasileiro e se constituíram em fontes repetidas por outros autores que, até meados da década de 1990, reafirmaram a tese do imperialismo inglês para explicar as origens da guerra”.
A República e a formação do caráter nacional (5)
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