CARLOS LOPES
O importante, para o tema deste trabalho, é como a Guerra do Paraguai transformou a mentalidade dos que lá combateram – e dos que por aqui ficaram, esperando o fim de uma guerra que parecia interminável, algo que surgirá, bem depois, em uma das principais obras da nossa literatura, “O Continente”, primeira parte de “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, na longa espera de Bibiana Terra Cambará e sua nora, viúva e com câncer, Luzia Silva Cambará, neta do nordestino Aguinaldo Silva, que edificou o Sobrado.
Existe, desde a época da guerra, uma vasta literatura de crítica a Caxias por, após sua chegada ao Paraguai, ter paralisado as ações bélicas durante 14 meses.
Os primeiros ataques a essa decisão de Caxias partiram de um jornal inglês, publicado no Rio de Janeiro, o “Anglo-Brazilian Times”, repercutido, em seguida, pela imprensa dos liberais.
Era uma campanha aberta pela destituição de Caxias – como, aliás, afirma um dos participantes dessa campanha, o então liberal, e oficial no Paraguai, Anfrísio Fialho, em suas “Recordações”, publicadas em 1885 (v. página 54 e seguintes).
Depois, essa decisão de Caxias foi atacada por ex-oficiais estrangeiros do exército de Solano López, o inglês George Thompson e o prussiano Max von Versen – é verdade que, ambos, caídos em desgraça por não acompanharem López na decisão de prolongar a guerra, como se o Paraguai fosse uma extensão de sua própria pessoa.
Escreveu George Thompson: “… Caxias não fez nada em 15 meses”; e, mais adiante, para rebaixar Caxias, eleva Mitre à condição de gênio militar, algo que nem o próprio presidente argentino jamais pretendeu (sobretudo após o desastre em Curupaiti): “Caxias não só havia aceito e ordenado a retirada da esquadra, mas insinuava ou propunha, que o exército abandonasse as posições conquistadas de Tuyucué. O general Mitre lhe demonstrou que isto seria a vergonha e a derrota, e conseguiu também fazê-lo desistir” (cf. Thompson, “La Guerra del Paraguay”, Imprenta Americana, Buenos Aires, 1869, pp. 215 e 243).
Quanto ao prussiano, temos uma catadupa de ditos anti-Caxias. Por exemplo:
“Assim o Marquês de Caxias (…) escoou-se, em completa inação”; ou “contando com a morosidade do Marquês de Caxias, que sempre desperdiçava tempo antes de arriscar qualquer ação importante, etc.”; ou “aproveitando a imperícia do Marquês de Caxias, que lhe dava tempo suficiente, Lopez mandou construir, etc.” (cf. Max von Versen, “História da Guerra do Paraguai”, trad. Manuel Tomás Alves Nogueira, ed. Itatiaia/EDUSP, 1976, pp. 88, 139 e 140).
Hoje, existe gente muito ignorante – ou preconceituosa – acusando Caxias por ter derramado sangue que ele não derramou. Naquela época, a crítica era porque ele não gostava de ver derramado o sangue de seus soldados.
Pelo menos era uma crítica a algo real. Por exemplo, em 1867, Caxias escreve à esposa, Dª Ana Luísa:
“Já tivemos dois combates parciais, nos quais fomos vitoriosos, mas eles ainda não decidem a guerra, porque o Lopes [sic] não quer me dar batalha em campo raso, e só me espera atrás de suas trincheiras, onde não convém combater, não só porque nossos soldados são pela maior parte recrutas vindos para cá há três ou quatro meses, e tirados dos escravos de má conduta dos quais os senhores se queriam ver livres, como porque seu número não é suficiente para bater os soldados de Lopes, disciplinados enquanto bem fortificados. Apesar de tudo se a Esquadra puder passar o Humaitá, a guerra se acabará muito breve, e, no caso contrário, ela há de ainda durar muito, mas em dada a batalha, ou provado que a Esquadra não pode subir o rio, peço demissão, porque já estou e sou doente. Mas isto não diga a ninguém para não me comprometer. Aí pensam uma coisa muito diferente do que aqui é, as dificuldades são muitas; não há cavalos, não há bois, e o terreno é todo cheio de brejos, lagoas, e matos que ajudam muito a quem o defende…
“Pelas ordens do dia que vão agora, você verá que nos dois combates que já tivemos perdi muito pouca gente, o que nunca aqui aconteceu até agora. Tenha todo o cuidado no que conversar sobre coisas da guerra, para não me comprometer, e tornar-me ridículo. O Mitre assim que soube que eu tinha marchado com o exército, veio na carreira tomar conta dele, o que eu estimei, por não carregar só com a responsabilidade e poder me safar na primeira ocasião que tiver. (…) Não tenhas cuidado da minha sorte, porque Deus é quem diz (eu sou fatalista), se tiver de morrer, hei de morrer estando aqui como lá, há de ser o que Deus quiser, pois estou muito tranquilo e cumprindo sempre o meu dever, não me acusa a consciência eu ter nunca facilitado estas coisas! Quando todos diziam que isto era muito fácil, você sempre me ouviu dizer que era a guerra mais difícil que se podia fazer na América do Sul…” (carta enviada de Tujucué, 8 de agosto de 1867, cit. por John Schulz, “O Exército na Política”, Edusp, 1994, pp. 65/66, grifo nosso).
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Além de marechal, Caxias era senador do Império, membro destacado do Partido Conservador, e, quando assumiu o comando no Paraguai, aos 63 anos, já fora duas vezes presidente do Conselho de Ministros e duas vezes ministro da Guerra.
Os liberais, após a derrubada de seu chefe, Zacarias – substituído, em julho de 1868, pelo chefe dos conservadores, Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, na presidência do Conselho -, intensificaram a campanha contra Caxias, acusando-o, primeiro, de postergar a guerra; depois, pela mortandade no Paraguai.
As duas acusações não eram apenas contraditórias. Eram injustas.
Logo depois da declaração de guerra por Solano López, o então ministro da Guerra, o liberal Henrique Beaurepaire Rohan, submetera a Caxias, então afastado do comando de tropas, quatro “quesitos”. O quarto era:
“Se acha conveniente que os corpos que vão chegando das províncias do Norte sigam imediatamente a se reunirem ao exército em operações, ou se convém antes demorá-los na Corte para serem convenientemente exercitados.”
A resposta de Caxias foi:
“Cumpre-me observar a V. Ex. que estando os corpos muito mal instruídos e precisando de fardamentos, armamentos e equipamentos novos, para poderem entrar em operações de guerra, convirá muito que sejam aqui demorados, enquanto adquirem a indispensável instrução, principalmente os novos recrutas que se lhes forem incorporando, pois que, em operações de campanha, não há tempo nem meios de poder ensinar paisanos, que, não estando ainda habituados a esses trabalhos, muito o estranharão, e não poderão, talvez, suportar as marchas contínuas, e ao mesmo tempo o afadigoso ensino dos primeiros rudimentos militares” (citado pelo próprio Caxias, em discurso no Senado, 15 de julho de 1870, Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1870, Livro 2, p. 95).
Nada disso foi feito ou levado em conta.
Quanto ao comando das tropas brasileiras, que Beaurepaire Rohan queria, desde o início, que fosse de Caxias, o Gabinete colocou obstáculos que impediram a sua nomeação. O resultado foi o pedido de demissão de Beaurepaire Rohan.
Para seu sucessor no Ministério da Guerra, os liberais lá colocaram o único oficial-general do Exército que era inimigo declarado de Caxias.
Nas palavras do próprio Caxias:
“Daí a dois dias apareceu com efeito no Jornal do Comercio a notícia de ter sido aceita a demissão pedida pelo Sr. Beaurepaire Rohan.
“Para substituí-lo no Ministério da Guerra, foi nomeado o visconde de Camamu. Esta nomeação importava tornar-me impossível para a comissão que se pretendia confiar-me, pois era sabido no exército que o visconde de Camamu era o único oficial-general do Império com quem eu não entretinha relações. A sua nomeação em tais circunstâncias me pareceu muito significativa, e, pois, continuei na resolução em que estava de não fazer o sacrifício de partir para o Paraguai, não obstante o meu mau estado de saúde.
“Dias depois, o novo ministro da Guerra, para não deixar-me a menor dúvida acerca de sua entrada para o Ministério, chamou para o seu gabinete um oficial-maior da secretaria da guerra que eu havia aposentado, quando fazia parte dos conselhos da Coroa. Despeitado por ter sido a aposentadoria decretada contra a sua vontade, escreveu na imprensa uma série de artigos insultando-me, caluniando-me, bem como ao ministro da Guerra dessa época, publicando até segredos da secretaria. Este ato do visconde de Camamu ainda mais me firmou na resolução em que estava.
“No dia 14 de Fevereiro de 1865, quando me supunha, pelo fato da nomeação do sucessor do Sr. Rohan, dispensado da comissão para que havia sido lembrado, apareceu em minha casa, às 10 horas da manhã, o Sr. presidente do Conselho de 31 de Agosto, o nobre senador pelo Maranhão [Francisco José Furtado, conhecido como Conselheiro Furtado].
“S. Ex. procurava-me pela primeira vez, pois não tínhamos até então as menores relações, conquanto sempre o respeitasse muito. Disse-me S. Ex.: ‘Sr. marquês, venho aqui na qualidade de presidente do conselho convidá-lo para aceitar o comando em chefe do nosso exército’.
“Respondi a S. Ex. o que já tinha comunicado ao Sr. Rohan, isto é, a resolução que eu havia tomado quando ele se retirou do Ministério. Respondeu-me S. Ex. que sabia das minhas desavenças com o visconde de Camamu, mas não as considerava motivos suficientes que me impedissem de servir sob suas ordens.”
O (segundo) visconde de Camamu, José Egídio Gordilho de Barbuda Filho, português de nascimento, ficou conhecido, na história militar, apenas pelo destrambelhado “reconhecimento”, em 1835, que abriu as portas de Porto Alegre para os farroupilhas. À frente de 20 homens, na ponte do Azenha, Camamu fugira de um piquete farroupilha composto por sete homens, deixando um oficial morto sobre o terreno (cf. Augusto Tasso Fragoso, “A Revolução Farroupilha – narrativa sintética das operações militares“, Laemmert, Rio, 1938, p. 48).
Não era, portanto, alguém que Caxias pudesse gostar. Como disse, no Senado:
“Ora, Sr. presidente, o finado visconde de Camamu era um oficial que eu nunca desejei ter sob meu comando. Dirigi por diferentes vezes o exército no Sul e no Norte do Império, e nunca o quis ter como meu subordinado: como, pois, nesta ocasião e lá no ultimo quartel da vida, havia de ir servir sob suas ordens, quando sabia a má disposição que havia da parte dele para comigo, o que se confirmava pela nomeação do seu oficial de gabinete? Poderia eu escrever-lhe cartas reservadas para serem depois publicadas? E a força moral de que eu tanto precisava para o bom desempenho de tão importante comissão poderia subsistir, quando meus subordinados sabiam que eu não podia contar com a necessária confiança do ministro da Guerra, pois era notório no exército nossas desavenças de muitos anos?
“Não era possível, pois, que eu aceitasse o comando que em tais circunstâncias me era oferecido.
“Em vista da minha recusa, S. Ex., formalizando-se, fez-me a seguinte observação: ‘Atenda que a comissão é militar, e que V. Ex., como militar, não a pode recusar’.
“Respondi-lhe com toda a calma: ‘Sei que sou militar, e que a comissão é militar; mas eu sou militar que gozo de imunidades, das quais V. Ex. não pode prescindir. Sou senador do Império, e o governo não pode dispor de mim sem licença da câmara a que pertenço. Procure, portanto, V. Ex. quem vá desempenhar esta comissão, que para mim se tornou impossível não só pelo mau estado da minha saúde, como por falta de acordo com o ministro da Guerra’.
“Retirou-se, então, o nobre ministro; e tomou outra resolução” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1870, Livro 2, sessão de 15 de julho de 1870, pp. 96-97).
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Porém, depois do desastre de Mitre em Curupaiti, com 4.000 mortos brasileiros, era impossível à monarquia continuar dispensando o maior general brasileiro – não só por sua capacidade militar, mas por ser o de mais elevada autoridade moral.
Também era impossível a Caxias, como disse então à esposa, não aceitar o comando, por pior que fosse a sua opinião sobre aquela guerra, diante de uma iminente catástrofe para o país.
Mas, antes que isso acontecesse, teve que suportar mais algumas afrontas:
“Passaram-se alguns meses; deixou de existir o Ministério do Sr. Furtado; Sua Majestade resolveu ir fazer uma viagem à província do Rio Grande do Sul, e eu tive ordem para acompanhá-lo. Estava então bem doente; levantei-me da cama para cumprir esse dever. Chegando ao Rio Grande, seguimos para Uruguaiana; ali encontramos já dois generais estrangeiros e um brasileiro, que se disputavam a primazia do comando. Chegando o Imperador, resolveu-se que se apertasse o cerco para apressar-se a tomada da praça, e que se dispusesse o ataque para daí a alguns dias, fazendo-se antes um reconhecimento. Foram convidados os generais estrangeiros, que nunca tinham pisado aquele solo, e alguns outros generais brasileiros; mas eu fui excluído de assistir ao reconhecimento, eu, senhores, que tinha por duas vezes presidido a província do Rio Grande, que outras tantas vezes havia feito a guerra naquelas regiões e, portanto, até estado acampado nesse mesmo lugar e, como presidente [da província], havia muitos anos mandado traçar o plano da povoação! Doeu-me sobremaneira um tal procedimento; mas resignei-me…” (cf. idem, p. 97).
Não é possível atribuir essa exclusão aos generais argentinos – ou uruguaios. Nem a outros generais brasileiros. O ministro da Guerra – que não era mais o visconde de Camamu, mas Silva Ferraz – não era um amigo de Caxias. Mas é óbvio que Pedro II, no mínimo, concordou com a exclusão de Caxias, que estava em Uruguaiana como “ajudante de campo” do imperador. Para confirmar que a afronta partia de Pedro II ainda há outro elemento: a concessão do título de Barão de Uruguaiana “com grandeza” a Silva Ferraz, algo que não passou despercebido – nem era possível – a Caxias, embora tenha se manifestado com discrição admirável (v. sua carta a Osório de 20 de outubro de 1866; sobre a viagem a Uruguaiana v. o livro de um bajulador de Pedro II, tão bajulador que torna-se muito enjoativo, mas com algumas informações interessantes: Gervasio José da Cruz, “Uma pagina memorável da historia do reinado do senhor Dom Pedro II, defensor perpetuo do Brasil”, Typ. Perseverança, Rio, 1865).
Porém, após a sangueira em Curupaiti, o próprio Zacarias procurou Caxias e ofereceu-lhe o comando das forças brasileiras (o comando geral das tropas da “Tríplice Aliança” permaneceu com Bartolomeu Mitre).
Caxias sabia que o convite vinha de alguém acima de Zacarias – mas preferiu concentrar suas críticas em Silva Ferraz, que fora exonerado do Ministério da Guerra.
O novo comandante das forças brasileiras saiu do Rio de Janeiro em 29 de outubro de 1866 e chegou ao acampamento de Tuiuti, no Paraguai, a 18 de novembro de 1866. Com 63 anos, em uma época de expectativa de vida muito menor que hoje – e com possibilidades de conforto na velhice, também, muito menores – ele depois lembrou:
“Ao entrar no Rio da Prata, a primeira coisa que chamou minha atenção foram dois hospitais no Estado Oriental, outros dois em Buenos Aires, três em Corrientes, um no Cerrito, um no Itapiru, outro no Passo da Pátria e um último em Tuiuti. Já se vê, pelo número dos hospitais, qual poderia ser o número dos doentes. Era sem dúvida nenhuma a terça parte da força do exército, que se achava fora das suas fileiras.
“O 1º corpo do exército ocupava a linha de Tuiuti, o 2º estava em Curuzu; não havia mais que 3.000 cavalos e estes não em muito bom estado; a cavalaria do 2º corpo estava toda apeada; não havia carros suficientes para se empreender qualquer movimento; não havia bois para a condução das carretas. Os dois corpos de exército eram inteiramente diversos em número e organização; pareciam pertencer a nações diferentes, tais eram as disparidades que neles se notavam. Em cada um deles havia uma economia, uma numeração e uma promoção particular. Havia valores diversos para as etapas; em um pagava-se a etapa por um preço, em outro por outro, etc., etc.
“Era preciso, portanto, chamar tudo a um centro, fazendo uma nova organização, e para tudo isto é indispensável o tempo. Fiz a redução dos hospitais; acabei inteiramente com os de Buenos Aires e suprimi um em Montevidéu, ficando unicamente os três de Corrientes. Continuei a desempenhar a comissão de que estava encarregado com toda a boa vontade, zelando quanto era possível os interesses dos cofres públicos, e cumpro um dever de lealdade declarando que em todo esse trabalho sempre fui perfeita e completamente auxiliado pelo governo de quem recebi as maiores provas de confiança que era possível receber.
“Assim correram as coisas durante os primeiros quatorze meses” (cf. idem, p. 97, grifo nosso).
Caxias tomou, como primeira missão, estancar a mortandade. Depois, organizar e treinar o exército, ao mesmo tempo que tentava conhecer o terreno. Como disse, no Senado:
“Senhores, nada mais fácil, depois dos fatos consumados, e conhecido o terreno, a força e manobra do inimigo, de longe e com toda a calma e sangue frio, à vista de partes oficiais, criticar operações e indicar planos mais vantajosos. (Apoiados).
“SENADOR JOBIM: – Não faltam mestres de obra feita.
“SENADOR DUQUE DE CAXIAS: – Mas o mesmo não acontece a quem se acha no teatro das operações, caminhando nas trevas, em país inteiramente desconhecido, inçado de dificuldades naturais. (Apoiados.) É preciso que os nobres senadores se convençam que a guerra do Paraguai, desde o seu começo, foi feita às apalpadelas. (Apoiados.) Não havia mapas do país por onde me pudesse guiar, nem práticos de confiança. Só se conhecia o terreno que se pisava. Era preciso ir fazendo reconhecimentos e explorações para se poder dar um passo” (cf. idem, p. 100).
Organizar o exército – inclusive os serviços médicos e de higiene, sob epidemias de varíola, cólera, malária, febre tifoide (e, segundo Osório, peste bubônica) – em um país desconhecido, era uma tarefa titânica.
A começar pela composição do exército, a que ele se refere na carta à esposa, que citamos acima, em que a lei (?!) permitia a substituição do convocado por um escravo, devidamente alforriado para morrer no Paraguai. Além do recrutamento forçado, que era a regra no Império para quem não tinha um escravo para mandar em seu lugar.
Em conversa com o conde D’Eu, genro de Pedro II, Joaquim Manoel de Macedo – que, além de romancista, era deputado pelo Partido Liberal – apontou a questão: “Macedo acreditava ‘que os brasileiros não se alistavam voluntariamente por acreditarem que só os pobres lutavam. O sistema de compra de substitutos é injusto […], eu não permitiria que libertos fossem substitutos a menos que já estivessem livres há três anos’” (cf. Schulz, op. cit., p. 64).
A organização do exército tinha outro problema, que tornava tudo ainda mais complicado: era necessário combater a corrupção nos fornecimentos.
Sempre foi bastante tentador – e alguns o fizeram – atribuir essa corrupção aos atravessadores argentinos, que dominaram os fornecimentos sob o pálio de Mitre, e depois foram afastados por Caxias.
Infelizmente, esta não é toda a verdade:
“Melo Morais, sempre desabusado, cita repetidas latronagens, no curso da guerra do Paraguai: ‘… um exemplo. Oferecem a Caxias 6.000 pares de sapatos de tropa, a 3$000; o ilustre duque os rejeita, em vista da má qualidade; o traficante não desanima: procura proteção, volta para o Rio de Janeiro com os mesmos coturnos, e os vende a 6$000…’” (cf. Manoel Bomfim, “O Brasil Nação”, Volume I, Fundação Darcy Ribeiro/UNB, 2014, p. 253).
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Então, com um terço do exército no hospital, o problema, para aqueles homens, não era apenas Solano López, ou, muito menos, os paraguaios.
Um documento direto quanto a essa desgraça é o diário de um oficial do Exército que, sob vários ângulos, senão todos, foi um soldado modelar. Um homem que chegou ao Paraguai como tenente-coronel e saiu de lá brigadeiro [general de brigada] comissionado, além de “Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro, Cavaleiro de São Bento d’Avis, Oficial da Ordem da Rosa, depois, Comendador da Ordem da Rosa. Condecorado com a medalha de Mérito Militar pelos reiterados atos de bravura, Oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro, com a medalha geral da campanha do Paraguai com passador de ouro, tendo este o número cinco indicativo dos anos que serviu no exército em operação contra o governo da República do Paraguai. Compartilhou dos elogios dirigidos por Sua Majestade, o Imperador, e assim por Sua Alteza, o Senhor Príncipe Conde D’Eu”.
Esse homem era o tenente-coronel Joaquim Cavalcanti d’Albuquerque Bello, pernambucano que servia em Belém, e saiu da capital paraense no comando do 10º Corpo de Voluntários da Pátria, formado pela polícia da província, com 549 homens.
O embarque foi no dia 28 de março de 1865.
Bello chegou ao Rio de Janeiro, no dia 15 de abril, com 400 homens, devido a uma epidemia de varíola, na época chamada “bexiga”, dentro do navio.
Ao chegar a Paysandu, retaguarda do exército no Uruguai, em 7 de maio, a unidade estava reduzida a 166 homens.
O frio sem agasalhos fez o resto do serviço macabro. A unidade foi dissolvida em 18 de setembro de 1865, sem jamais ter entrado em combate. Comunicando a decisão do comando aos soldados que restavam, disse o tenente-coronel Bello:
- “… é com a lágrima nos olhos e a dor no coração que me despeço de meus camaradas dando publicidade à ordem do Exmo. Sr. General-Chefe, sob n° 96, de 15 do corrente abaixo transcrita. Todos vós sois testemunha de que se o Corpo chegou ao estado em que está, em extremo resumido, foi devido unicamente à pouca sorte de tão distintos Paraenses, que saindo debaixo do Equador foram imediatamente levados para um país frígido, como é este, no rigor do inverno, onde vimos perecer de bexiga e congelação mais de dois terços de nossos camaradas, e com especialidade no fatal acampamento de São Francisco, onde foi a mortandade motivo por que passamos por esse grande golpe” (cf. “Diário do Tenente-Coronel Albuquerque Bello”, Documentos Históricos Vol. CXII, BN, Rio, 2011, p. 20, grifo nosso).
Era inevitável que os oficiais e os soldados fizessem a pergunta formulada pelo tenente-coronel Bello (e, aliás, por ele respondida em seu “Diário”):
- 01/12/1865: … e quem é o culpado? O governo.
A questão, portanto, era: quem é o governo?
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Caxias, assumindo o comando desse inferno dois anos depois de seu início, pediu exoneração em fevereiro de 1868, pela falta de apoio do governo – e, inclusive, sabotagem dos liberais do Ministério.
Segundo Caxias, em sua carta de demissão ao ministro da Guerra:
“Os jornais recebidos da Corte e minha correspondência particular me trouxeram a desagradável notícia, de que meu nome, e o posto eminente, que há mais de um ano ocupo, têm estado em plena discussão na imprensa, travando-se renhida luta entre os meus gratuitos detratores e aqueles que, generosamente, se têm apresentado tomando minha defesa.
“A causa objetiva de tão grande celeuma é (ao menos ostensivamente) o prolongamento da guerra, em que estamos empenhados, atribuindo-o um foliculário inglês no Rio de Janeiro à tíbia frouxidão e não sei que mais de minha parte, dando-se a circunstância notável de ser ele acompanhado em suas observações a meu respeito pelo jornal político que ali se publica com a denominação de Diário do Povo, o qual, com razão ou sem ela, se diz inspirado por um membro do atual Gabinete. É para lastimar-se, que tanto um como outro se não recordem, ou de propósito olvidem, que o Comando em Chefe dos Exércitos Aliados, e as operações de guerra foram, pelo Tratado que os três Governos celebraram, conferido ao General D. Bartolomeu Mitre, que aqui chegou desde julho do ano próximo passado, e que há quinze dias apenas se retirou para Buenos Aires, a fim de reassumir o Governo Supremo da República Argentina. O Diário do Povo me apresenta até como querendo influir em nomeações puramente civis; isto não passa de uma calúnia, pois que ninguém melhor do que o Gabinete sabe acerca do Diplomata brasileiro que tinha de vir para o Rio da Prata, eu me limitei apenas em esboçar rapidamente as qualidades que me parecia dever ter o que fosse nomeado, sem declinar nomes próprios, e sendo esta a única vez que falei em objeto não puramente militar.”
Zacarias, então, tentou um golpe teatral – apresentar a renúncia do Gabinete ao imperador, durante uma sessão do Conselho de Estado:
“O Governo pensa hoje, como em 1866, que a presença do Marquês de Caxias é da maior conveniência no Paraguai e, pois, que o General, inesperadamente, mostra-se persuadido, aliás sem razão, de que o Governo lhe tira a força moral, o Ministério antes quer retirar-se do que usar do direito de pedir a exoneração do General, desfazendo com esta prova de abnegação as suas infundadas apreensões. De acordo com os meus colegas, venho, portanto, pedir a Vossa Majestade Imperial a demissão do Gabinete, submetendo à apreciação de Vossa Majestade Imperial a carta do Marquês, que peço licença para entregar sem ler”.
Pedro II colocou, logo, para o Conselho de Estado, a seguinte questão: quem devia ser demitido? Caxias ou o Gabinete Zacarias?
No Conselho, a votação empatou – cinco a favor de demitir Caxias e cinco a favor de demitir Zacarias e seu Ministério (cf. Atas do Terceiro Conselho de Estado, 1867-1868, sessão de 20 de fevereiro de 1868, ed. Senado Federal, prefácio de José Antônio Soares de Souza).
Embora nenhuma das demissões fosse aceita, o Gabinete estava morto, a partir do momento em que Pedro II colocou a questão.
Em julho, Pedro II escolheu, para senador pelo Rio Grande do Norte, o menos votado na “lista tríplice”, Francisco de Sales Torres Homem, principal formulador da política econômica do Partido Conservador.
Zacarias protestou – e Pedro II usou o “poder moderador” para demitir o gabinete, chamou o Partido Conservador, do visconde de Itaboraí (e do próprio Caxias), para o governo, e dissolveu a Câmara dos Deputados que sustentava o Ministério liberal.
Assim, ficara claro a resposta à questão: quem governa o país; quem era o responsável pela tragédia mencionada nas páginas do “Diário do Tenente-Coronel Albuquerque Bello”.
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Trinta anos depois, Euclides da Cunha escreverá:
“Mas passemos, à carreira, sobre uma página tristemente gloriosa.
“A Guerra do Paraguai é um desvio na nossa história. A sua causa mais próxima está, talvez, na interferência de duas vontades, injustificáveis ambas. De um lado o delírio de grandezas de um déspota minúsculo demais para a sua própria ambição, de outro a diversão temerária de um imperador constitucional, porventura impressionado com o cenário da política interna do seu país.
“O primeiro era mais lógico. Aquele anelar por um grande império baseava-se, afinal, nas cisões de outras repúblicas platinas e na nossa relativa fraqueza militar. Os noventa mil homens de Lopes (sic) tornavam-lhe factível a empresa.
“Faltou-lhe, porém, a envergadura e o lance de vistas de um conquistador. Comprometeu logo a sua causa com duas invasões desastrosas: a de Estigarribia, no Rio Grande, avançando no desconhecido até perder-se na rendição de Uruguaiana; e a mais infeliz, de Robles, em Corrientes, que mais do que a aliança da Argentina, pôs ao nosso lado o grande prestígio moral de Bartolomeu Mitre.
“Com estes dois erros estava perdido aos primeiros passos. O que houve depois foram cinco anos de memoráveis conflitos.
“Não os descreveremos. Fora perdermos a linha essencial dos acontecimentos, que trilhamos” (cf. Euclides da Cunha, Da Independência à República, in À Margem da História, Lello Brasileira, 1967, p. 227).
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Euclides prefere não continuar a sua análise sobre a Guerra do Paraguai – exatamente por considerá-la um “desvio” em nossa história –, porém, a análise sobre sua origem está em linhas anteriores. Também ele, intelectual formado no Exército, acha que a monarquia, ao intervir no Uruguai, lançou o Brasil em um charco de sangue:
“O Tratado de 12 de Outubro de 51 [entre o Brasil e o Uruguai] — contrato unilateral que nos fizera protetores platônicos do Uruguai, contemplando, neutros, as arrancadas entre blancos e ‘colorados’ perpetuamente malavindos, prendera-se às discórdias platinas. Tornara-nos, margeando o palco de uma revolução crônica, espectadores dos escândalos entre os caudilhos, e estimulara entre os rio-grandenses as mais pecaminosas algaras, as famosas califórnias, cópia das montoneras platinas, em que sucessivos grupos invadiam a campanha oriental, agravando-lhe os tumultos. Desse modo, a nossa neutralidade era oficial apenas: colaborávamos também a golpes de lanças e patas de cavalos naquele regime clássico de tropelias; e é compreensível que nos envolvêssemos, por fim, seriamente, nas desordens.
“De fato, em 64, sobrevieram as notícias de vexames e torturas de toda a sorte exercidas sobre os brasileiros, nas lutas do Uruguai, onde um revolucionário, o General Flores, ‘colorado’, se insurgia contra o presidente blanco, Aguirre. E a opinião, no Rio, ainda abalada pela recente questão inglesa, inflamou-se. Não se cogitou que os brasileiros torturados, amatulando-se com as tropas daquele general, haviam trocado a bandeira da pátria pelo poncho do caudilho. Eram, afinal, soldados de Flores, e o governo oriental, repelindo-os, não podia distingui-los nas fileiras adversas.
“Estas circunstâncias atenuavam os atentados cometidos, permitindo afastar-se, sem desaire, de um conflito inútil.
“Mas os fatos precipitaram-se. Enviado ao Uruguai, José Antônio Saraiva, a despeito do seu ânimo superior e nímio tolerante, não pôde evitar o rompimento. O Presidente Aguirre repeliu uma intervenção que era, de feito, um apoio ao cabecilha rebelde. Devolveu o ultimatum de 4 de agosto e aprestou-se para a refrega, enquanto os navios da nossa esquadra, sob o mando do Almirante Tamandaré, singravam ameaçadoramente as águas do Uruguai.
“Solano López aproveitou então o momento que lhe vinha a talho para uma aspiração antiga. Ofereceu a sua mediação em junho. Logo depois, em setembro, protestou contra o auxílio que se dispensava ao General Flores. Num e noutro caso a sua atitude foi irritantíssima. A nota extravagante que dirigiu ao diplomata brasileiro em Assunção, Viana de Lima (Barão do Jauru), em que se intitula garbosamente defensor da independência e do equilíbrio político das repúblicas platinas, repassava-se de tão afrontosas ameaças que orçava por uma declaração formal de hostilidades. Completou-a o aprisionamento (12 de novembro de 64) do vapor comercial Marquês de Olinda, onde se embarcava o Coronel Carneiro de Campos, presidente do Mato Grosso. Assim, a campanha do Uruguai, desfechada pelas baionetas do General Mena Barreto, ultimando-se com as tomadias de Paiçandu e Montevidéu e pela deposição do Presidente Aguirre, substituído pelo nosso aliado General Flores, foi apenas o prelúdio de uma outra maior” (cf. Euclides da Cunha, op. cit., pp. 226-227).
Euclides, nesse texto, é um pouco otimista sobre a personalidade do conselheiro Saraiva – o que é compreensível: poucos escravocratas conseguiram transmitir tanta simpatia quanto Saraiva, provavelmente porque não era apenas um escravocrata.
Mas Euclides está certo sobre a “missão Saraiva” no Uruguai. Seu objetivo não era, como depois se disse, “negociar” com o presidente blanco. Seu objetivo era a deposição de Aguirre para colocar Venancio Flores no poder. Esse é, na prática, o conteúdo das instruções do ministro dos Negócios Estrangeiros, João Pedro Dias Vieira, ao conselheiro Saraiva, para sua “missão especial” no Prata, uma rara obra-prima de farisaísmo, publicadas, após a Guerra do Paraguai, pelo próprio Saraiva (cf. Correspondencia e documentos officiaes relativos à missão especial do conselheiro José Antonio Saraiva ao Rio da Prata em 1864, Typ. do Diario, Bahia, 1872).
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No Império, os debates parlamentares mais importantes – com algumas exceções – eram no Senado. A Câmara, formada pelo partido de escolha do imperador para o governo, tinha, em geral, caráter homologatório, para usar uma palavra que ficou célebre, depois de aplicada ao Legislativo da ditadura pelo então senador oposicionista Paulo Brossard.
Já o Senado, era diferente – paradoxalmente, devido a uma de suas características mais retrógradas: os senadores eram vitalícios, numa espécie de caricatura da Câmara dos Lordes da Inglaterra.
Mas isso fazia com que o Senado, ao contrário da Câmara, não pudesse ser dissolvido pelo imperador – embora fosse escolhido por este, dentro de uma “lista tríplice”, com um prazer especial de Pedro II ao escarafunchar a vida dos candidatos a senador (essa é uma das razões que fizeram Medeiros e Albuquerque – entre outras coisas, autor do Hino à República – dizer que Pedro II “era um homem para espiar pelo buraco da fechadura, mas incapaz de descortinar um pouquinho o futuro. (…) D. Pedro II ocupou o trono com a acanhada mentalidade de um guarda noturno“).
O Senado, portanto, era muito mais estável do que a Câmara. Hoje, ninguém sabe de quantos anos era um mandato de deputado durante a monarquia – o que é compreensível, pois a Câmara, no Segundo Reinado, foi dissolvida 11 vezes por Pedro II, antes do fim do mandato dos deputados. Portanto, a “legislatura de quatro anos”, determinada pela Constituição de 1824 (artigo 17), era muito relativa, muitas vezes uma ficção – sem contar que, pelo mesmo dispositivo constitucional, o parlamento somente funcionava durante quatro meses a cada ano.
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A “missão especial” do conselheiro Saraiva ao Rio da Prata suscitou um pedido de explicações do senador Silveira da Motta, em julho de 1864 – com pedido de cópia de toda a documentação da “missão Saraiva”.
Comparecendo ao Senado, o presidente do Conselho de Ministros, Zacarias de Góis e Vasconcelos, chefe do Partido Liberal, saiu-se mal, após dizer que “no estado atual dos negócios no Rio da Prata parece ao governo que a discussão deles em nossas câmaras pode ter algum inconveniente, perturbando ali a marcha dos acontecimentos” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brasil, Sessão de 23 de julho de 1864, Livro 7/1864, p. 125).
O Brasil tinha, como reconheceu Zacarias, um tratado de neutralidade com o Uruguai. Porém… “a missão do nosso ministro [Saraiva], Sr. presidente, conquanto não fosse de guerra, não era promover a paz no Estado Oriental, mas fazer perante o governo daquela república enérgicas reclamações a bem dos direitos e interesses de milhares de súditos do império ali residentes” (idem, p. 126).
Venancio Flores fora oficial, na Argentina, de Bartolomeu Mitre, quando ficou notório pela Chacina de Cañada de Gómez, localidade da província de Santa Fé em que mandou degolar mais de 300 homens do exército da Confederação Argentina (nessa época – novembro de 1861 -, com a Argentina ainda não unificada, Flores pertencia às tropas portenhas, isto é, de Buenos Aires, cujo chefe era Mitre).
A tentativa de derrubar o governo de Aguirre, no Uruguai, por Flores, tinha o apoio de Mitre. Mas, disse o senador Silveira da Motta, foi “na cauda” do governo argentino que Saraiva fizera uma “tentativa de paz” no Uruguai.
O modo como Zacarias replicou ao senador expõe ainda mais os objetivos da “missão Saraiva”:
“… o nosso ministro, que tinha credencial para o Sr. Mitre, presidente da República Argentina, julgou oportuna a ocasião de ir a Buenos Aires, e para lá se dirigiu, mas no pressuposto de brevemente insistir nas reclamações, apresentando [ao governo uruguaio] o seu ultimatum” (grifo nosso).
Esta última palavra deve ter criado algum assombro no ambiente, pois Zacarias, em seguida, acrescentou:
“Esse ultimatum, Sr. presidente, que transpira do relatório último da repartição dos negócios estrangeiros, não é guerra.”
O que provocou uma interrupção:
SILVEIRA DA MOTTA: O ministro já o apresentou?
Mas Zacarias continuou a explicar o “ultimatum”:
PRESIDENTE DO CONSELHO [Zacarias]: Um ultimatum não será guerra, há de traduzir-se no caso de não sermos atendidos, no uso da força para proteger os súditos do império, que são em território da república oriental vítimas de contínuas violências, mormente durante a luta fratricida que ora a dilacera. É um recurso admitido pelo direito internacional com o nome de represálias.
SILVA FERRAZ: As represálias são já um meio violento.
SILVEIRA DA MOTTA: Se não é ocupação do território oriental o que vem a ser?
PRESIDENTE DO CONSELHO [Zacarias]: Não é ocupação de território, é a aproximação de nossas forças ao território da república vizinha, será mesmo a entrada momentânea de nossas forças para impedir violências contra os nossos concidadãos, mas voltando logo à fronteira.
SILVA FERRAZ: As represálias são sempre um começo de guerra.
PRESIDENTE DO CONSELHO [Zacarias]: As represálias, Sr. presidente, não são começo de guerra, como assevera o nobre senador pela província da Bahia.
SILVA FERRAZ: São sempre.
Os seis anos que seguiram são um comentário melhor que algum outro sobre a razão de Silveira da Motta, Silva Ferraz – e, naturalmente, Caxias, e, durante algum tempo, Paranhos, o futuro visconde do Rio Branco.
E, não menos importante, Mauá, que escreveu a Saraiva:
“A minha única esperança foi que V. Ex. apreciando aí as grosseiras inexatidões e falsidades que atuaram para resolver a missão, faria francamente o que sua alta razão e bom juízo lhe ditassem. O caminho seguido não é o conveniente, há de trazer-nos complicações, e se medidas coercitivas forem adotadas no fim encontrar-nos-emos diante de sucessos que não poderemos dominar” (carta de 05/06/1864, cit. in Cesar de Oliveira Lima Barrio, “A Missão Paranhos ao Prata (1864-1865): diplomacia e política na eclosão da Guerra do Paraguai”, FUNAG, 2010, p. 56, nota ao pé da página).
Mauá era, ao contrário dos demais opositores da intervenção no Uruguai – quase todos conservadores -, deputado pelo Partido Liberal.
Além disso, era gaúcho e conhecia muito bem o Uruguai – daí sua apreciação sobre “as grosseiras inexatidões e falsidades” dos supostos crimes dos blancos contra os fazendeiros brasileiros nesse país.
Porém, voltando à sessão do Senado de 23 de julho de 1864, Zacarias não estava iludido sobre os possíveis resultados dessa política. Ele parecia não se importar, se o resultado fosse a guerra. Ao responder a Silva Ferraz:
PRESIDENTE DO CONSELHO [Zacarias]: Sempre, não. Pode das represálias seguir-se a guerra; isso é outra cousa.
E, em seguida:
Tal é, Sr. presidente, o estado dos nossos negócios no Rio da Prata. É possível que os acontecimentos se precipitem chegando-se ao extremo da guerra. Mas o que é certo é que a guerra não está nas intenções do governo brasileiro, o qual, só sendo a isso compelido, a aceitaria. Acrescentarei que, longe de querer a guerra, o governo imperial alimenta as mais bem fundadas esperanças de que as cousas não chegarão nunca a esse deplorável extremo. É o que tenho a dizer.
O mais provável é que estivesse pensando em um curto, rápido conflito, restrito ao Uruguai, para colocar Flores no lugar de Aguirre.
Ninguém, no Gabinete, acreditava em intervenção paraguaia. E, se houvesse, as estimativas do representante brasileiro em Assunção sobre as forças militares paraguaias eram três vezes menores que a realidade, suficientes, apenas, para uma guerra defensiva.
Entretanto, Mauá estava certo ao dizer que “se medidas coercitivas forem adotadas, no fim encontrar-nos-emos diante de sucessos que não poderemos dominar”.
O chefe da primeira “missão especial” ao Prata, o baiano José Antonio Saraiva, chegou a perceber para onde se estava indo. Nas instruções enviadas a ele pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, João Pedro Dias Vieira, havia um trecho quase misterioso, se não fosse recorrente – e não soubéssemos seus efeitos práticos – desde a separação da antiga Província Cisplatina:
“A neutralidade e abstenção [do governo imperial em relação à política interna do Uruguai] assim definida, que, cumpre repeti-lo, o Governo Imperial continua a julgar como a melhor e a mais conveniente política a seguir em suas relações com aquela República, decerto não excluía, nem podia excluir, como o mesmo Governo constantemente tem declarado, a intervenção, a que pudesse ser chamado em obediência a compromissos internacionais, a que se acha ligado, ou no desempenho do indeclinável dever de dar proteção e garantia à vida, à honra e à propriedade dos seus concidadãos” (cf. Saraiva, Correspondencia e documentos officiaes cit., p. 2, grifo nosso).
No mesmo documento, diz o ministro:
“Como V. Ex. sabe, e o sabe também o Governo Oriental, a despeito das mais expressas recomendações e das mais terminantes ordens do Governo Imperial um crescido número de Brasileiros apoia e auxilia a causa do General Flores, exibindo, como justificação de seu procedimento, a necessidade de proteger e garantir a sua vida, a sua honra e a sua propriedade contra os próprios agentes da autoridade pública desse Estado!” (cf. idem, p. 3).
Portanto, supõe-se que o governo imperial tenha resolvido, já que suas ordens não eram cumpridas, obedecer as ordens dos fazendeiros brasileiros no Uruguai… O que é ainda mais ridículo do que a “neutralidade e abstenção” que “não excluíam a intervenção”.
Mais de 60 anos depois, Roquette-Pinto iria frisar:
“É claro que os acasos da gangorra política levaram muitos deles [brasileiros no Uruguai] a sofrer os percalços do partidarismo. Tinha o Império o direito de intervir no Estado Oriental para proteger os seus filhos ali estabelecidos?… Têm a Itália ou a Espanha o direito de se intrometer hoje aqui para proteger italianos ou espanhóis que lhes mandem queixas do Brasil? Não é bom falar nos compatriotas nossos que entravam naquele país alistados nas tropas arregimentadas para depor o governo oriental…” (cf. Roquette-Pinto, Discurso de posse na ABL, 1928).
A questão fora abordada, na própria época – aliás, bem antes da intervenção de 1864 no Uruguai – pelo grande adversário, no Senado, da política intervencionista do imperador, o senador Montezuma:
“Eu, Sr. presidente, entendo que no país existiu sempre quem fosse oposto ao princípio da intervenção, quem o adotasse somente dadas as circunstâncias de 1851, e quem hoje entende que uma vez adotado aquele princípio deve-se continuar sempre a intervir. Eu sou dos primeiros; sempre entendi que a intervenção nunca devia ter lugar. Não entro na questão se a intervenção é regra geral ou exceção; não é preciso muito estudo para saber que a intervenção nunca é regra geral, é sempre uma exceção; mas não é uma exceção como ontem aqui se definiu, isto é, quando os interesses da nação que quer intervir para isso a chamam. Seria um absurdo, seria a adoção do princípio sustentado pela seita de publicistas que não fundam o direito internacional senão no interesse das nações individual ou coletivamente consideradas.
“Senhores, o direito público internacional fundado sobre uma tal base, despe-se de tudo que pode ter de sólido, universal e eterno; rejeita a santidade do direito natural, toma por base o egoísmo; sua legalidade é a onipotência; seus resultados, medidas absolutamente tirânicas contra as nações que não tiverem força para resistir! Esse princípio de direito internacional, portanto, não me convém, embora o deduzam aqueles publicistas de proposições talvez mal entendidas de Montesquieu.”
E, mais adiante, sobre a situação específica da relação com o Uruguai:
“Senhores, o cidadão brasileiro que reside em Montevidéu, que adota aquela residência, tem razões suficientes de interesse, e por isso tem de sujeitar-se aos inconvenientes que podem nascer desses interesses; se não se querem expor a esses inconvenientes, não residam lá; nós temos muita terra, muita indústria, as nossas terras têm uma uberdade imensa, temos terras para todas as culturas. Por causa de alguns cidadãos brasileiros que ali residem há de o Estado constantemente alterar a sua política e tomar sobre si os negócios internos de uma nação estrangeira? V. Exª vê, portanto, que não pode semelhante princípio ter lugar” (cf. Senado, Sessão de 8 de junho de 1858, Atas, Apêndice I, 1858).
A República e a formação do caráter nacional (6)
(continua)
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