CARLOS LOPES
O senador Montezuma, visconde de Jequitinhonha (e “com grandeza”), fora um dos heróis da Guerra de Independência, no lugar em que a vitória custou mais sangue: sua terra natal, a Bahia. Foi, também, o revolucionário que estabeleceu a ligação dos baianos, que lutavam no Recôncavo – e, depois, cercaram Salvador -, com o Rio de Janeiro, isto é, com José Bonifácio e Pedro I. Depois da Independência, foi deputado constituinte na bancada liderada pelos Andradas, preso e exilado quando da dissolução da Constituinte por Pedro I.
Como outros patriotas da época, quando os “pés de chumbo” – as tropas portuguesas, chefiadas por Madeira de Melo – tomaram Salvador, expulsando as tropas brasileiras, trocou o nome português (Francisco Gomes Brandão) para Francisco Gê Acaiaba de Montezuma.
Foi um dos principais políticos, tanto no Primeiro Reinado quanto no Segundo Reinado – e um dos maiores advogados da História do país; até hoje, a sede do Instituto dos Advogados Brasileiros, que ele fundou, chama-se “Casa de Montezuma”.
Entretanto, grande parte – a maior parte – do que se escreveu sobre ele é anedótica, transformando-o numa caricatura (inclusive o artigo que Hélio Vianna, em 1959, publicou sobre ele na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: v. Hélio Vianna, “Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde De Jequitinhonha”, RIHGB, vol. 244, julho-setembro/1959, pp. 103-134).
Outra parte é francamente injusta. Por exemplo, Américo Jacobina Lacombe, em geral um homem e um autor ponderado, escreveu, sobre Montezuma: “O Visconde de Jequitinhonha é um vulto realmente desconcertante: misto de estadista e politiqueiro; de jurista e de chicanista; de cabotino e de homem de honra” (cf. Américo Jacobina Lacombe, “O Visconde de Jequitinhonha”, Revista Brasileira, ano VI, nº 19, junho/1947, p. 80).
Em seguida, atribui sua trajetória ao “ressentimento”, ao desejo de “vingar-se; vingar-se da inferioridade do seu nascimento, por meio de seu talento, de todos” (cf. art. cit., p. 81).
Essa não é a opinião de quem o conheceu.
Joaquim Manoel de Macedo, o romancista de “A Moreninha” e “As Mulheres de Mantilha”, escreveu, alguns anos após a morte de Montezuma:
“De 1841 em diante ou cético em política, ou descrente de partidos, ou só guiado pelas próprias inspirações ou por sistema de oportunidades de princípios governamentais, ora apoiou a escola liberal, ora a conservadora, e fez oposição ou defendeu à ministérios de todas as cores políticas; mas em todos os casos foi admirável na tribuna do parlamento.
“Os Anais das câmaras legislativas do Brasil perpetuam seus discursos, alguns dos quais são verdadeiros triunfos de sabedoria e de lógica de ferro; não podem porém levar aos vindouros certos dotes especiais de tribuna parlamentar, que faziam de Montezuma orador pungente, satírico, e por assim dizer caricaturador, e adversário desesperante, algoz de tormentos, que exigiria mais do que taquígrafo, fotógrafo de minuto em minuto.
“Montezuma, o visconde de Jequitinhonha, em oposição, e à protelar discussões era capaz de falar sobre a mínima questão um dia inteiro.
(…)
“Montezuma foi orador que precisava ver-se falar na tribuna para se apreciar bastantemente o seu poder de agressor. (cf. Joaquim Manoel de Macedo, “Anno Biographico Brazileiro”, Terceiro Volume, Imperial Instituto Artístico, Rio, 1876, pp. 168-169).
Foi, portanto, um homem de notável independência, em época onde o aulicismo era regra. Nem sempre esteve com a razão. Mas, em geral, acertou.
Esta independência, em tempos de imperial adulação, devia parecer estranha a um homem como Macedo, que, como escreveu José Honório Rodrigues, era adepto de “um liberalismo extremamente conservador, uma heresia, praticada pela maioria liberal que defendia a escravidão negra” (cf. José Honório Rodrigues, História da História do Brasil, Volume II, Tomo 1, CEN, 1988, p. 27).
Um dos motivos da abordagem caricatural da figura política e histórica de Montezuma foi, precisamente, a sua independência.
Mas sempre é prudente perguntar: independência em relação a quê?
Joaquim Nabuco, muito depois da morte de Montezuma – que ocorreu em 1870, alguns dias antes do fim da Guerra do Paraguai -, atribuiu a indistinção a que chegaram os dois partidos monárquicos, ao fato de que a grande fronteira política do país não era mais entre conservadores e liberais, mas entre quem era a favor e quem era contra a continuação da escravatura.
Mas, se isso era relativamente fácil de perceber na década de 80 do século XIX, não o era quando Montezuma declarou que “… atualmente não existem partidos; os partidos de outras épocas deixaram de existir, porque os partidos não são indivíduos, são princípios” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1868, Livro 3, p. 37, Sessão de 3 de Julho de 1868).
Mas, qual a questão que tornava cinzentos ambos os partidos da monarquia?
Dias depois da declaração que acima transcrevemos, Pedro II trocou os liberais pelos conservadores no governo, contra a Câmara, provocando ataques quase histéricos, na tribuna, de Saldanha Marinho, Cristiano Ottoni, e, claro, Nabuco de Araújo.
Na sessão do Senado em que o novo presidente do Conselho de Ministros – Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí – apresentou o seu programa de governo (no Império havia essa formalidade, nas duas Casas do Parlamento), Montezuma, depois de apontar a inanidade do que fora dito por Itaboraí, considerou:
O SR. VISCONDE DE JEQUITINHONHA: – (…) Senhores, sobre todas as reformas há uma, acerca da qual eu emprazo o honrado presidente do Conselho para declarar sua opinião, que é a reforma sobre a emancipação dos escravos.
Subitamente, ele foi interrompido:
O SR. PRESIDENTE [visconde de Abaeté]: – V. EX. dá licença que eu o interrompa? O Ministério tem de ir à Câmara do Srs. deputados e aquela câmara se adiou somente até à 1 hora.
O SR. VISCONDE DE JEQUITINHONHA: – Acabo já. Eu emprazo ao nobre presidente do Conselho, como ia dizendo, para que S. Ex. declare formalmente se nas vistas do Ministério entra alguma reforma relativamente à emancipação dos escravos. Há, Sr. presidente, um compromisso público e solene entre o governo do Brasil e o mundo inteiro civilizado a este respeito; é necessário que o Ministério atual manifeste com franqueza o seu pensamento, o Ministério passado foi franco a este respeito: alguma cousa tinha declarado a este respeito (apoiados). Houve trabalhos, como V. Ex. sabe e o país todo conhece, trabalhos relativos a este importantíssimo assunto.
V. Ex. também se recorda do modo como na resposta à fala do trono entendeu o partido da oposição conservadora expressar-se relativamente à emancipação dos escravos; nem lhe pronunciou o nome! Tal é o horror que o Partido Conservador tem a essa reforma, que entendeu do seu dever não lhe pronunciar nem o nome. Ora, subindo ao poder o Partido Conservador, é de absoluta necessidade que pelo chefe do gabinete se declare ao país quais são as intenções do governo relativamente a este objeto.
O SR. VISCONDE DE ITABORAÍ (presidente do Conselho de Ministros): – Sr. presidente, tenho obrigação de apresentar-me na Câmara dos Srs. deputados e por isso retiro-me.
O SR. PRESIDENTE [visconde de Abaeté]: – Darei depois a palavra ao nobre senador pela província de Goiás. Esta discussão não pode continuar, o programa do Ministério pode ser discutido em outra ocasião. Passemos à ordem do dia. (Apoiados.)
Montezuma ficou sem saber o que Itaboraí achava da Abolição da escravatura. Ou, melhor, ele sabia, desde muito.
Essa era a questão incandescente, já naquele momento, em meio à Guerra do Paraguai. Aliás, desde a primeira década do Segundo Reinado. A monarquia de Pedro II serviu, precisamente, para adiar sua solução.
***
Nenhuma aventura do Império na região do Rio da Prata é capaz, naturalmente, de transformar Solano López em um cavaleiro Bayard, aquele que, segundo a lenda, era um herói sem medo e sem mácula.
Embora seja um problema principalmente da historiografia paraguaia, é evidente que ele nos diz, também, respeito. Se Solano López fosse um santo, é claro que isso repercutiria, após a Guerra do Paraguai, em nosso caráter nacional.
Voltaremos ao assunto. Aqui, para tornar mais claro o que vem a seguir, destacaremos apenas que nenhuma prova apareceu, até agora, de que o Solano real fosse muito diferente daquele Solano López retratado no início do século XX por um futuro presidente do Paraguai, Cecilio Báez, em “La Tiranía en el Paraguay – Sus causas, caracteres y resultados” (Asunción, El País, 1903).
Ou daquele em quem pensou Floriano Peixoto, ao ver o seu corpo, em Cerro-Corá. (Floriano estava entre os comandados do general Câmara, no último combate da Guerra do Paraguai: cf. carta de Floriano ao então tenente-coronel Tibúrcio de Souza, 14 de março de 1870, in Artur Vieira Peixoto, Floriano – memórias e documentos, vol. I, MEC, 1939, pp. 82-84).
Porém, Floriano era brasileiro – e combatente, na guerra.
Cecilio Báez era paraguaio e nasceu em 1862. Tinha oito anos quando terminou a Guerra do Paraguai.
Seu livro é uma coletânea de artigos publicados na imprensa de Assunção contra os idealizadores da figura histórica de Solano; a principal contestação a Cecilio Báez veio do então vice-presidente do país, Manuel Domínguez.
A debilidade da contestação é surpreendente. Báez respondeu a Domínguez. Sem nos ater aos detalhes, uma síntese: “Não louvemos, pois, o que não merece louvor. Os tempos das ditaduras foram tempos de ignorância, de pobreza, de abjeção, de ignomínia e de cretinismo moral” (Báez, op. cit., p. 250).
[NOTA: Geralmente cita-se Juan O’Leary como o grande opositor de Cecilio Báez nessa polêmica; aqui, nos dispensamos de fazê-lo, não porque suas ideias não mereçam atenção, mas porque, para o nosso tema, seria uma perda de tempo e espaço nos ocuparmos com a contestação do redator-chefe de “La Patria”, jornal que pertencia a Enrique Solano López, filho de Francisco Solano López; Enrique e sua mãe, Alicia Elisa Lynch, desde 1875, estavam empenhados em uma campanha pela “devolução” dos bens que teriam pertencido a Solano López pai, no Paraguai.]
Cecílio Báez é demolidor em relação a Solano López, com a citação de uma enxurrada de fatos, e aponta a tentativa de transformá-lo naquilo que não foi, como uma manipulação política antidemocrática.
Solano López somente seria elevado a herói nacional pela ditadura de Rafael Franco, um aberto admirador de Hitler, em 1936.
Mesmo assim, o uso “heroico” da figura de Solano atinge o auge, dentro do Paraguai, durante os 35 anos da ditadura de Alfredo Stroessner, outro admirador do nazismo: “Foi a partir de 1954, com a ascensão de Alfredo Stroessner ao poder central que o revisionismo histórico alcançou o seu auge. Em nenhum outro momento a exaltação acerca da figura de Solano López foi tão intensa. Nos atos públicos, em nomes de ruas, monumentos, e até mesmo no primeiro longa metragem realizado no país (“Cerro Corá”), o uso político do passado histórico foi marcante do Paraguai governado por Stroessner” (cf. Fábio Ribeiro de Sousa, “A construção de memória da Guerra do Paraguai (1864-1870) no cinema: Brasil e Paraguai, um estudo comparado”, UFRJ, Rio, 2015, p. 81).
Neste sentido, confundir o heroísmo do povo paraguaio com um suposto heroísmo de quem arrastou o país para uma tragédia, como se a nação fosse uma espécie de seu prolongamento, não nos parece conduzir a lugar algum – para usar uma expressão educada.
Voltemos, então, aos momentos que antecederam o ataque de López ao Brasil – e ao senador Montezuma.
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A melhor descrição pessoal de Montezuma é a de Machado de Assis, em seu artigo de 1898 (portanto, depois da Proclamação da República), “O velho senado”, em que relembra seus tempos de jovem repórter político:
“Um dia vi ali aparecer um homem alto, suíças e bigodes brancos e compridos. Era um dos remanescentes da Constituinte, nada menos que Montezuma, que voltava da Europa. Foi-me impossível reconhecer naquela cara barbada a cara rapada que eu conhecia da litografia de Sisson; pessoalmente nunca o vira. Era, muito mais que Olinda, um tipo de velhice robusta. Ao meu espírito de rapaz afigurava-se que ele trazia ainda os rumores e os gestos da assembleia de 1823. Era o mesmo homem; mas foi preciso ouvi-lo agora para sentir toda a veemência dos seus ataques de outrora. Foi preciso ouvir-lhe a ironia de hoje para entender a ironia daquela retificação que ele pôs ao texto de uma pergunta ao Ministro do Império, na célebre sessão permanente de 11 a 12 de novembro: ‘Eu disse que o Sr. Ministro do Império, por estar ao lado de Sua Majestade, melhor conhecerá o ‘espírito da tropa’, e um dos senhores secretários escreveu ‘o espírito de Sua Majestade’, quando não disse tal, porque deste não duvido eu’.
“Agora o que eu mais ouvia dizer dele, além do talento, eram as suas infidelidades, e sobre isto corriam anedotas; mas eu nada tenho com anedotas políticas. Que se não pudesse fiar muito em seus carinhos parlamentares, creio. Uma vez, por exemplo, encheu a alma de Sousa Franco de grandes aleluias. Querendo criticar o Ministro da Fazenda (não me lembra quem era) começou por afirmar que nunca tivéramos ministros da Fazenda, mas tão-somente ministros do Tesouro. Encarecia com adjetivos: excelentes, ilustrados, conspícuos ministros do Tesouro, mas da Fazenda nenhum. ‘Um houve, Sr. presidente que nos deu alguma coisa do que deve ser um Ministro da Fazenda; foi o nobre senador pelo Pará’. E Sousa Franco sorria alegre, deleitava-se com a exceção, que devia doer ao seu forte rival em finanças, Itaboraí; não passou muito tempo que não perdesse o gosto. De outra vez, Montezuma atacava a Sousa Franco, e este novamente sorria, mas agora a expressão não era alegre, parecia rir de desdém. Montezuma empina o busto, encara-o irritado, e com a voz e o gesto intima-lhe que recolha o riso; e passa a demonstrar as suas críticas, uma por uma, com esta espécie de estribilho: ‘Recolha o riso o nobre senador!’ Tudo isto aceso e torvo. Sousa Franco quis resistir; mas o riso recolheu-se por si mesmo” (cf. Machado de Assis, “O velho senado”, Obra Completa Volume III, Aguilar, 1986).
A menção aos “gestos da assembleia de 1823” refere-se à participação de Montezuma na Constituinte que não chegou ao fim – ou, melhor, chegou a um fim prematuro.
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Em Montezuma existe algo importante para a formação do nosso caráter nacional, independente de possíveis confusões ou erros – ou acertos (v., para exemplo dos três, o seu “Reflexões Sobre as Finanças do Brasil: operações de credito do Thesouro e o emprestimo contrahido em Londres de cinco milhões de libras esterlinas no corrente anno”, Laemmert, 1865).
Ainda que já tenhamos abordado sua figura histórica em outros trabalhos, a reação provocada – manifestações de total desconhecimento, às vezes espanto sobre a sua existência no Brasil do século XIX – indica que ele merece, aqui, mais que uma citação de passagem (sobre nossa abordagem anterior, v. Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil – 10; Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil – 11; e A revolta dos escravos e o fim do Império).
Comecemos por aquilo que falta – não nele, mas em seus retratos memorialísticos, e, neste caso, é uma carência mais do que notável.
Existe uma característica de Montezuma que não é mencionada por Machado, assim como não é mencionada por Sacramento Blake:
“… bacharel em leis pela Universidade de Coimbra, grande do império, senador por sua província natal, do Conselho do Imperador, conselheiro de Estado, dignitário da Ordem da Rosa, comendador da ordem portuguesa da Conceição de Villa Viçosa, condecorado com a medalha da guerra da Independência, fundador e presidente honorário do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, de que foi o primeiro presidente efetivo, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, etc.” (cf. Sacramento Blake, “Diccionario Bibliographico Brazileiro”, vol. II, Imprensa Nacional, Rio, 1893, p. 452).
Essa característica também não é mencionada por um grande admirador de Montezuma, o litógrafo e biógrafo Sébastien Auguste Sisson, que o considera, na Revolução da Independência, abaixo apenas dos Andradas (a autoria do texto abaixo, que acompanha a litografia de Sisson, foi atribuída, também, a Ferreira Vianna (pai), que era amigo de Montezuma: cf. RIHGB, vol. 244, p. 115, nota ao pé da página):
“O visconde de Jequitinhonha conta 66 anos de idade, e apesar das grandes provações por que tem passado, correndo todos os perigos das crises as mais extraordinárias do país, nas quais figurou principalmente; apesar dos profundos golpes que seu coração de pai e de esposo tem suportado, perdendo um filho no fundo do mar, vítima de horrível naufrágio, e recordando-se todos os dias da desgraça daquele para quem a luz não existe [outro filho de Montezuma ficara cego], apesar da luta de gigante que teve necessidade de sustentar contra seus adversários políticos, em que mais de uma vez foi acometido pelas costas e nas trevas; apesar de seus porfiados combates oratórios, ainda tem esta robustez de espírito e generosidade do coração, que fazem invejar os mais novéis. Dotado de memória pronta, de argumentação lógica sem asperidade, de palavra altiva e dominadora; preparado para todas as questões, pois sem quebra do merecimento alheio se pode dizer que é a mais vasta inteligência que orna o Senado brasileiro: razão clara, força de vontade capaz de conceber e de executar, e com um nome ilustre, porque está escrito nos livros das vitórias da liberdade brasileira; parece que a Providência, conservando-lhe a vida, depois de haver chamado aos destinos de além-túmulo a maior parte de seus companheiros da Independência, o reserva para novas, se não mais gloriosas épocas” (cf. S.A. Sisson, “Galeria dos Brasileiros Ilustres”, vol. II, Senado Federal, 1999 [1ª ed.: 1861], p. 188, grifo nosso).
Nesse caso, é preciso acrescentar que essa característica de Montezuma está na litografia de Sisson, que acompanha este texto, até porque era uma característica inevitável em um retrato gráfico.
Montezuma, senador pela Bahia, era negro, mulato – em um senado composto por brancos.
A litografia de Sisson – a que Machado se refere – mostra isso, embora, julgando pela descrição de quem o conheceu de perto, talvez o embranqueça um pouco. Por exemplo, escreve o filho de seu melhor amigo, Ferreira Vianna: “Era um homem de estatura alta, pardo escuro, calvo, olhos vivos, mesmo cintilantes, que denunciavam a vivacidade de seu espírito, a fronte altiva, magro” (v. “O Antigo Regímen (Homens e Coisas)”, 1896, p. 8).
***
Em 1864, Montezuma estava tão contrário à intervenção no Uruguai, que não esperou o parlamento se reunir para, em 1865, publicar o seu “Protesto”.
É peculiar, no “Protesto” de Montezuma, que ele tenha sido escrito e publicado após a invasão do território brasileiro pelas tropas de Solano López – inclusive, após a batalha de Riachuelo.
Mesmo assim, Montezuma, a quem ninguém pode acusar de covarde, não está entusiasmado pela guerra ao Paraguai.
O conteúdo do “Protesto”, sucintamente, é o de que o Império enviara o Exército para o Uruguai, deixando indefeso o território nacional.
“Quais os obstáculos invencíveis que forçaram o governo imperial a não acudir incontinenti aos pontos invadidos? Esta pergunta fazem todos, e nada encontra-se nas publicações oficiais que sirva de resposta, e satisfaça.
(…)
“… enquanto os nossos concidadãos de Mato Grosso, sem forças, e sem meios de defesa, eram vítimas da invasão, abandonavam suas casas, e morriam de fome nos pântanos, ou viam morrer seus filhos, suas mulheres, suas propriedades caídas no poder dos bárbaros invasores; enquanto uma coluna paraguaia avançava na altura de S. Borja, ameaçando a invasão, ao depois verificada, da província do Rio Grande do Sul, os nossos bravos se agrupavam em Montevidéu, como que desafiando o inimigo a violar a integridade do Império por esta província, e a continuar com facilidade, e sem o menor receio, suas depredações em Mato Grosso, vítima sem defesa!” (cf. “Protesto do Senador Visconde de Jequitinhonha contra a intervenção dos alliados no sítio, e rendição da cidade de Uruguayana”, Laemmert, Rio, 1865, p. 8).
Logo em seguida:
“Ah! sim: era preciso dar força ao novo governo de Montevidéu; era preciso mostrar que aquele povo morria de amores pelo governo do general Flores. Cumpria, pois, fazer-lhe honrosa, e eficiente guarda. Com os nossos resignados soldados foi o nosso ouro defender e enriquecer a terra alheia, quando a nossa bela província de S. Pedro estava sendo assolada pela mais monstruosa invasão! Suas principais povoações, na margem esquerda do Uruguai, saqueadas e incendiadas, as famílias desacatadas, roubadas, desamparadas, foragidas!
(…)
“Ah! os nossos bravos morrem de peste, de frio, de privações, de miséria, enfim, na terra estranha, ao mando de generais estrangeiros, mas não se quer consentir, por amor dos aliados, que venham aquecer-se em nossos lares, gastar no seu país os seus soldos, defender a terra em que dormem os ossos de seus maiores, e nem ao menos conceder-lhes a glória de guardar a honra e a propriedade nacional!”
Montezuma estava muito longe de acreditar que o governo imperial fizera o possível para resolver os conflitos no Rio da Prata por via pacífica:
“O governo imperial deve saber que não pode justificar-se perante os governos das nações civilizadas, senão por esse meio – fazendo-lhes ver que empregou tudo quanto estava ao seu alcance para arredar do Brasil a guerra e manter boa inteligência com os seus vizinhos, de quem nada pretende, nada reclama, senão paz e boa harmonia.”
O fundamento da posição de Montezuma era a independência nacional. Quando, em 1838, a esquadra francesa – sob o rei da oligarquia financeira da França, Luís Felipe de Orleans – bloqueou o Rio da Prata, numa tentativa de derrubar o governador de Buenos Aires, Juan Manuel Rosas, discursou Montezuma, então deputado:
“… é digno da admiração do mundo ver um homem, chefe de uma nação, defender-se, valente e denodado, contra o poder de uma nação que veio à América para insultar os americanos (bravos, aplausos) e disputar palmo a palmo os princípios da independência nacional. Não simpatizarei eu com o denodo deste chefe?”
No que foi aparteado pelo deputado Antonio Carlos Ribeiro de Andrada:
“E quem não simpatizará?” (cit. in Adolfo Saldías, “Historia de la Confederación Argentina – Rozas y su época”, Tomo III, Felix Lajouanen Editor, Buenos Aires, 1892, p. 162).
Montezuma foi contrário à intervenção que terminou por derrubar Rosas, derrotado em Monte Caseros. Na discussão do “voto de graças” de 1851 (“voto de graças” era como se chamava a resposta do Legislativo à Fala do Trono):
SENADOR MONTEZUMA: (…) “Diz-se que a política do governador de Buenos Aires é uma política ambiciosa, e não sei que mais. Sr. presidente, eu creio que todo o governo é ambicioso; nós não o seremos também? Que crime é ser o governo ambicioso se cada um de nós em particular o é? Franca e lealmente falando, todos nós queremos ser mais do que somos: a ambição não é outra coisa que desejar obter mais do que aquilo que se tem, e é o que Buenos Aires deseja. Ora, eu acho que isto é filho do patriotismo do governador de Buenos Aires, acho que ele quer elevar o seu país à altura mais extraordinária, mais colossal e gigantesca. E que crime há nisto, contanto que ele não ofenda, não viole os preceitos e regras invariáveis da justiça universal, e que nos não ofenda? Contanto que ele não ponha em risco a nossa tranquilidade, não infrinja enfim para conosco os princípios do direito das gentes, que me importa a mim que o governador de Buenos Aires seja extremamente ambicioso? A prosperidade e a grandeza do país de que é chefe pagarão as despesas dessa ambição” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1851, Livro 1, Sessão de 23 de maio de 1851).
O lado favorável à guerra contra Rosas, no Senado, era liderado pelo senador pernambucano Holanda Cavalcanti (depois visconde de Albuquerque) e pelo senador do Rio Grande do Norte, Manuel Mascarenhas – ambos, escravocratas sem peias.
Ao lado de Montezuma estava Alves Branco, também senador pela Bahia, ex-presidente do Conselho de Ministros, ex-ministro da Fazenda e ex-ministro da Justiça, lembrado hoje pela “Tarifa Alves Branco” (60% sobre importados com similar nacional e 30% sobre importados sem similar nacional), abolida em 1860, sob pressão da Inglaterra e dos importadores de mercadorias inglesas.
SENADOR MONTEZUMA: “Mas, em que é que o governador de Buenos Aires deu a saber, como é que ele denunciou ser ambicioso relativamente ao Brasil? É muito exigente, mas sobre quê? Ora sobre palavras, ora sobre explicações triviais, mas nunca tomou terreno nosso, nunca ultrapassou os nossos limites. Eu não posso conceber como é que a ambição do governador de Buenos Aires tenha ofendido ao Brasil até hoje. Não quis fazer um tratado definitivo de paz, segundo se nos disse hoje; terá sua razão; também que pressa temos nós de fazê-lo? Protege Oribe, quer que Montevidéu seja uma das partes integrantes da Confederação Argentina. Temos nós muito com isto? O honrado membro pela província do Rio Grande do Sul [Araújo Ribeiro, depois, barão e visconde de Rio Grande] disse que este era um dos pontos em que esse governador fundava a sua política, e por isso até hoje não tinha querido reconhecer a independência de Montevidéu. E faremos nós a guerra por este motivo? Queremos nós unir a província de Montevidéu ao Brasil? Não, esta é a resposta que todo o mundo dá, tal intenção não temos; e se tal intenção tivéramos, pediríamos a Deus que nô-la tirasse. Logo, que importa ao Brasil que o governador de Buenos Aires queira fazer da província de Montevidéu uma parte da Confederação Argentina para por isso declarar-lhe guerra? Suponhamos que a República Oriental quer na realidade entrar para a Confederação Argentina; havemo-nos de opor a isto? É da política do Brasil, é de seus interesses embaraçar essa resolução por meio de uma guerra? Então que nos importa que o governador de Buenos Aires queira fazer da República Oriental uma parte integrante da sua Confederação Argentina? Entretanto tudo faz crer que ele não há de consegui-lo, pode ter intenções, mas não consegue, está muito longe de o obter, quaisquer que possam ser as intrigas e os manejos empregados.
“Assim, eu entendo, Sr. presidente, que a ambição do governador de Buenos Aires não é suficiente motivo para que o Brasil se declare já hostil a Montevidéu. Tudo quanto disse o honrado senador pelo Rio Grande do Sul não me faz crer senão o seguinte – que o Brasil tem queixas, e queixas graves pessoalmente do governador de Buenos Aires. Mas que importa ao Brasil a pessoa desse governador, para que ele declare a guerra ao país que ditatorialmente governa o Sr. D. João Manoel de Rosas? Eu digo que ditatorialmente governa para fazer sentir ao Senado que é um governo efêmero, e que por consequência não dá força, não promete estabilidade política” (cf. idem).
O que fez com que os defensores da guerra mudassem o discurso. Agora, segundo o senador Manuel Mascarenhas, o problema deixara de ser o expansionismo de Rosas para ser uma questão de “humanidade”, para “… não sermos, por assim dizer, obrigados a estremecer de horror vendo todos os dias as folhas anunciarem atos de barbaridade praticados não só contra nossos patrícios, mas mesmo contra os desgraçados argentinos. É humanidade pôr termo a esses fuzilamentos, essas decapitações mandadas praticar dentro da própria quinta do governador, depredações e violências que envergonham a humanidade, e que, no meu modo de pensar, são um anacronismo…”.
O que foi respondido logo em seguida.
SENADOR MONTEZUMA: “Se estivesse em uma sociedade de beneficência, se o Senado fosse uma sociedade humanitária, eu me esforçaria por ver se era também eloquente, se fazia um discurso mostrando os horrores da administração do general Rosas, a maneira extraordinária porque tem ensanguentado o seu país, para ver se obtinha dos meus ouvintes algum voto de caridade em favor das vítimas desse governo nas províncias unidas do Rio da Prata. Mas estou eu em uma tal sociedade? Não é do meu dever falar, tanto quanto puder, a linguagem do homem de Estado, quer o seja, quer não, quer tenha as habilitações para isso, quer não? E então como homem de Estado poderei trazer para aqui essas lamúrias próprias dos súditos de Buenos Aires? Para que, senhores! Para avançar o quê?” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1851, Livro 2, Sessão de 17 de junho de 1851).
Dois anos depois, ao contraditar o ministro dos Negócios Estrangeiros, o visconde do Uruguai, Paulino José Soares de Sousa, ele manteria sua posição, mesmo após à derrubada de Rosas:
SENADOR MONTEZUMA: “Em tudo quanto o Sr. ministro disse em outra ocasião para mostrar que a não se proceder contra o governo de Rosas pela maneira por que a política do governo tinha entendido, necessariamente as calamidades seriam imensas, o orador não descobriu senão declamação; tudo foram presunções, hipóteses que não se verificariam; o fim que o nobre ministro teve em vista com a sua política desgraçadamente não se conseguiu, e a nação já começa a convencer-se disso” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, Anno de 1853, Livro 1, Sessão de 24 de maio de 1853).
Na mesma sessão do Senado, ele seria mais abrangente, sobre a política do Império:
SENADOR MONTEZUMA: “Sempre foi opinião do orador que a melhor política do Brasil seria manter a mais estrita neutralidade relativamente às repúblicas vizinhas, salvar o território e a honra do país, e nunca intervir na política interna.
“E esta política era justamente a do trono quando abriu a sessão de 1851.
“Na fala [de Pedro II] se disse expressamente que a política da neutralidade seria a seguida pelo governo. Porém os meios adotados pelo governo pareceram-lhe [ao orador] contrários a essa política, por isso diferiu deles. Nunca se pôde convencer da utilidade, da moralidade do meio de ajudar revoluções, de excitá-las com dinheiro, com conselhos, para se tirar daí uma vantagem que em sua opinião há de ser de pouca duração.
“Nunca julgou que merecesse a aprovação daquelas repúblicas o procedimento do governo. Recebiam-no como um grande benefício, mas dentro de sua alma, falando o sentimento da independência, característico de todos aqueles povos, repeliam a ideia de se verem sujeitos; envergonhavam-se de se verem na necessidade de receber benefícios de tal natureza. Por outro lado nada se ganhou em afeições, em simpatias, em relações comerciais e industriais; não se colheu benefício algum dessa política que arrastou o país a despesas enormes”.
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Mas ninguém previa um cataclismo como a Guerra do Paraguai. Nem mesmo depois que ela começou.
Silva Ferraz, o ministro da Guerra, em viagem com Pedro II para Uruguaiana, tomada pelos paraguaios, começou, entretanto, a desabafar com seu amigo Nabuco de Araújo, ministro da Justiça:
“O Imperador lança-se até aos menores detalhes e tudo atrapalha. Dispõe até dos meus oficiais de gabinete, dá ordens por via do De Lamare [o ‘veador da Casa Imperial’ e Guarda-Roupa do imperador], e de qualquer modo. É teimoso e no cabo se arrepende. (…) Aqui não há dinheiro para a tropa. O Dias de Carvalho [ministro da Fazenda] que faça alguma coisa ou tome alguma medida. Peço-te que diga ao nosso colega Silveira Lobo [ministro da Marinha] que ordene às autoridades que lhe são no Rio Grande subordinadas que obedeçam às minhas ordens e somente às minhas ordens e às do Presidente da Província” (cf. Joaquim Nabuco, “Um Estadista do Império – Nabuco de Araújo, sua vida, suas opiniões, sua época”, T. 2, Garnier, 1897, p. 260).
Em 21 de julho de 1865, com a comitiva imperial já em Porto Alegre, o ministro da Guerra escreveu outra vez ao ministro da Justiça:
“Tenho-me visto abarbado com as exigências da comitiva imperial. Queriam para o Imperador e para o Príncipe arreios ricos de prata, querem para o Cabral, Meirelles e De Lamare arreios ricos de 300 a 400$ cada um e querem tudo à custa do Ministério da Guerra. São exigências contínuas. Querem cavalos para todos, e até revólveres para os criados. O Imperador vai bem, mas ouve essa gente não obstante reconhecer seus [ilegível]. O Caxias se tem comportado bem e discretamente. Por aqui se tem espalhado que ele será nomeado general em chefe. A nomeação do Porto Alegre foi indicação do Imperador, ouvido o Caxias, e eu a estimei muito, porque todos estão contentes. O espírito de partido no momento do perigo acalmou de modo a parecer extinto. Adeus, mande-me gente, armamento e munições. Não há dinheiro, o nosso colega que dê as providências com toda a pressa. A tropa que se bate está por pagar e nua” (cf. Nabuco, idem, grifo nosso).
De Caçapava (no Rio Grande do Sul), Silva Ferraz escreveu a Nabuco de Araújo:
“Aqui estamos, e, salvo o atropelo da viagem, as pretensões de ir ao Exército, etc., vamos bem. O Caxias anda muito amuado: em parte tem razão, mas ele é o culpado. Nunca se deve vir fazer de sota ou valete no lugar em que se foi rei. Isto enraivece. Há muita intriga entre os fâmulos imperiais, não me poupam, mas querem se devorar. Consigo queixam-se porque não lhes dou tudo o que querem, como arreios de prata, carretilhas d’alto custo, cavalos bons, etc.” (cf. op. cit., p. 264).
Silva Ferraz não era amigo de Caxias. Aqui, a única forma do marechal não ir nessa viagem, seria desobedecer uma ordem explícita de Pedro II (v. o discurso de Caxias, após a guerra, na parte anterior desta série: A República e a formação do caráter nacional (5)).
Pois, nessa altura dos acontecimentos, foi Silva Ferraz quem, por obediência ao imperador, causou uma crise com os demais ministros, inclusive com o seu amigo mais próximo nos meios políticos, Nabuco de Araújo.
Pela Constituição, o imperador precisava da assinatura dos ministros para exercer o “poder executivo”. No Rio Grande do Sul, apenas um ministro acompanhava Pedro II. Assim, Silva Ferraz passou a assinar os atos do imperador referente às outras pastas do Ministério – o que era inconstitucional.
Depois de receber uma furibunda carta de Nabuco de Araújo, o ministro da Guerra justificou-se:
“… Membro de um Gabinete, eu me sujeito às decisões de sua ilustrada maioria, sem embargo dos precedentes que se poderiam consultar, ou me retiraria. Nunca acharão dificuldades de minha parte sobre questões de meras suscetibilidades! Peço-te porém que atendas que o Imperador tem de dar perdões e remunerar, e que eu não sei o que fazer. Se quiserem, eu não referendarei; mas os perdões devem ser logo executados, e como, sem a referenda? Galopei hoje cinco horas para o encontrar, apenas pude falar-lhe no caminho, e ele entende que nestes casos não se o deve privar de suas atribuições. Diga aos nossos colegas que logo que ele pare, enviarei os decretos, conforme eles entendem. As minhas dificuldades redobram. O Imperador quer comandar por meio de seus ajudantes de campo, quer que o Conde d’Eu vá para o exército, o que todos, menos eu oficialmente, sabem. Eu não posso convir em tal, já lho disse e repeti. Suas viagens precipitadas vão cansando e matando animais. Só ontem entre cansados e mortos tivemos 120 e hoje quase o mesmo se deu. A despesa é imensa” (cf. op. cit., pp. 264-265, grifos nossos).
A proposta em relação ao Conde D’Eu era nomeá-lo chefe da artilharia. Silva Ferraz era contra pela razão óbvia: quem seria o general brasileiro que poderia dar ordens ao genro do imperador? Ou, com tal ordem, arriscar a vida do marido da futura imperatriz?
Somente depois, na tentativa de destituir Caxias, os liberais iriam propor o Conde D’Eu – mas para comandante geral, não para comandante da artilharia.
Não conseguiram. Somente após a saída de Caxias do Paraguai, o marido da princesa Isabel foi nomeado para o comando, numa fase – a campanha das cordilheiras – que era mais uma caça a Solano López do que uma continuação da guerra.
***
As atas do Conselho de Estado – cujo papel era, precisamente, o de aconselhar o imperador, respondendo a “quesitos” colocados por ele – são muito eloquentes, sobretudo depois do início da guerra.
Na sessão de 23 de agosto de 1866, disse um dos principais conselheiros, o marquês de Olinda, Pedro de Araújo Lima, ex-presidente do Conselho de Ministros e um dos Regentes do Império durante a minoridade de Pedro II:
“É convicção geral, e convicção bem fundada, de que a guerra está próxima de seu termo” (cf. Atas do Conselho de Estado Pleno 1865-1867, SF, prefácio de Francisco Iglésias).
Outro dos principais conselheiros, o visconde de Abaeté, Antônio Paulino Limpo de Abreu, também ex-presidente do Conselho de Ministros, foi um pouco menos otimista:
“… não se pode asseverar que até o fim de dezembro do corrente ano tenha terminado a guerra.”
Montezuma, que falou em seguida, não emitiu, nessa sessão, uma opinião sobre a duração da guerra, o que iria fazer na sessão de 18 de março de 1867: “a guerra já não pode durar além de três meses” – o que significa apenas que ele estava farto daquela guerra.
O único que parece manter os pés no chão é Pimenta Bueno, o futuro marquês de São Vicente:
“Não partilha a opinião manifestada pelo Senhor Conselheiro que primeiro falou [marquês de Olinda]; não julga provável a notícia de que a guerra está acabada; pelo contrário pensa que ela tem de perdurar ainda, por algum tempo. O território paraguaio parece que foi feito para a guerra defensiva, oferece muitas dificuldades à invasão. Crê que a resistência, se cessaria, brevemente, se faltassem ao inimigo meios de alimentar o seu exército. Em todo o caso, a ideia, que a guerra termine logo, não passa de uma suposição, de uma hipótese não só eventual, mas ainda muito improvável” (cf. Atas do Conselho de Estado Pleno 1865-1867, ed. cit., sessão de 23 de agosto de 1866).
Na sessão de 5 de novembro de 1866, com o país cada vez mais atolado na guerra, os conselheiros responderam aos seguintes “quesitos” do imperador:
“1º. Continuando a guerra, será conveniente lançar mão de alforria de escravos para aumentar o número dos soldados do exército?”
“2º. Que escravos serão preferíveis para o fim de que trata o primeiro quesito: os da Nação, os das Ordens Religiosas, ou os dos particulares?”
“3º. Como realizar essa medida?”
Depois de fazer uma contabilidade para mostrar que os escravos “da Nação” e das Ordens Religiosas não resolveriam o problema de aumentar os efetivos do Exército, o visconde de Abaeté preocupou-se em evitar a possibilidade de que, com o desespero da guerra, houvesse alforria sem indenização aos senhores de escravos, para aumentar os efetivos do Exército:
“… deve tentar-se oferecimento voluntário dos escravos feito por aqueles que deles podem dispor: com este fim poderia o Governo criar um certo número de batalhões de libertos da Nação, declarando que neles assentariam praça os escravos, cujos senhores quisessem libertá-los para o serviço da guerra, mediante a indenização que se convencionasse.”
O segundo a falar foi Montezuma. Apenas transcreveremos a ata:
“O Visconde de Jequitinhonha responde ao primeiro quesito negativamente, ficando assim prejudicados os outros. Fundamenta largamente o seu voto, tratando dos quesitos um por um, considerando a medida por todas as faces e concluindo que ela é impolítica, indecorosa, ineficaz, e muito onerosa aos cofres públicos. Acharia preferível, em último caso, o emprego de estrangeiros. Admira-se como de um milhão e meio em que calcula os indivíduos recrutáveis não se possa tirar o número suficiente para formar um exército de sessenta mil homens, quando para consegui-lo bastaria o recrutamento de cinco por cento, que daria setenta e cinco mil combatentes” (grifo nosso).
Surpreendentemente, o chefe do Partido Conservador (e escravocrata entranhado), Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, acompanhou o voto de Montezuma. Porém, por motivos muito particulares:
“Chamar os escravos a defender com os homens livres a integridade do Império, e a vingar os ultrajes recebidos de uma pequena República, é confessarmos de modo mais autêntico e solene perante o mundo civilizado que somos impotentes para, sem auxílio dos nossos escravos, defendermo-nos como nação; e desde então lhe parece impossível acharem-se razões que possam justificar o fato de continuarmos a conservá-los deserdados de seus direitos de homens, e das vantagens da vida civil; seria em sua humilde opinião o passo mais adiantado e mais decisivo para a próxima e rápida emancipação. Não deixará de lembrar ainda a excitação que entre os próprios escravos produziria uma tal medida; as esperanças que ela faria nascer, o incentivo para procurarem libertar-se; e as insurreições e cenas de sangue, que daí poderiam provir, às que convém ainda acrescentar a inquietação, os sustos, e medos que a medida causaria à classe dos senhores de escravos, e principalmente aos agricultores, mais expostos do que os outros aos resultados desses tristes acontecimentos. Tudo isto se figura ao referido Conselheiro de tão funestas e lutuosas consequências, que entende de seu mais rigoroso dever votar contra a medida indicada no 1º quesito, e contra todos os meios de dá-la à execução.”
O voto de Pimenta Bueno, depois marquês de São Vicente, maior jurista do Império, é curioso pelo raciocínio. Ele é a favor de usar os escravos na guerra, entre outras razões, porque:
“… a política aconselha que em vez de diminuir a população livre, pelo contrário se diminua o número dos escravos (…) não sendo nossa sociedade homogênea é preferível poupar a classe mais civilizada e mais moralizada, e não a outra que é menos, e que pode ser perigosa. Entre males cumpre escolher os menores”.
O próximo a falar foi um escravista que hoje é nome do logradouro por onde desfilam as escolas de samba no Rio de Janeiro – o então visconde, depois marquês de Sapucaí, Cândido José de Araújo Viana:
“Esta medida eu a acho muito inconveniente. Uma vez publicada a desapropriação dos escravos para o exército, não haverá um, com exceção dos velhos e gravemente doentes, que se não repute capaz de servir no Exército. Ou por impulso próprio, ou por induzimento dos inimigos dos Senhores, eles hão de apresentar-se às Autoridades para serem admitidos; a recusa destas há de ser imputada a contemplação para com os Senhores; mais um motivo de descontentamento e talvez de ódio. Lembramo-nos do que já aqui aconteceu com a infeliz lembrança que teve uma sociedade de dar cartas de liberdade no dia 7 de setembro: muitos escravos, que não foram favorecidos, tornaram-se insubordinados.”
Falou em seguida Bernardo de Souza Franco, ex-ministro da Fazenda, que foi a favor, lembrando que:
“… o fato não é novo; escravos têm sido manumitidos por senhores que patrioticamente os têm ofertado para o serviço da guerra; outros têm tido ingresso nas fileiras do Exército em substituição de recrutados, ou designados, que os foram, e dão em seu lugar, tudo com ciência e aprovação do Governo Imperial.”
Veio em seguida Nabuco de Araújo, hoje mais conhecido como pai de Joaquim Nabuco. Pronunciou, como sempre, um voto extenso e pedante, do qual se pode extrair o seguinte:
“Não vejo perigo de ordem pública na compra dos escravos para ficarem libertos e servirem no Exército, porquanto não são chamados os escravos, mas os senhores, não são violentados os senhores, mas convidados, se quiserem. Não há ilegalidade na desapropriação, porque a Lei de 9 de setembro de 1826, fundada na Constituição do Império, autoriza a desapropriação da propriedade particular quando ela é necessária para defesa do Estado. Seria absurdo que a lei da desapropriação não fosse aplicável ao escravo, quando o escravo faz parte da nossa propriedade.”
José Maria da Silva Paranhos, o futuro visconde do Rio Branco, um homem inteligente e de estilo notavelmente claro, apontou que aquilo já estava ocorrendo:
“… a substituição pessoal no serviço do Exército está admitida por Lei, e não só recrutados, mas também, e principalmente Guardas Nacionais designados, já têm recorrido às alforrias de escravos para se eximirem do serviço da guerra. (…) Nota-se que as alforrias de escravos já têm subido muito de preço por efeito das substituições militares; que estas já constituem um ramo de negócio; e que alguns escravos têm repugnado a liberdade por esse modo.”
O último a falar foi outro membro do Conselho que, como Montezuma, não era branco – Francisco de Sales Torres Homem.
Torres Homem escrevera, em 1849, quando era deputado pelo Partido Liberal, talvez o ataque mais contundente, até a década de 80, contra Pedro II e a monarquia bragantina, “O Libelo do Povo”, que termina com uma síntese:
- “Considera-se a lastimável posição da nossa pátria! Uma constituição nominal; direitos sem exercício, ministérios sem satisfação, liberdade sem garantias, ministérios sem dogma e sem nacionalidade; um Senado vitalício e faccioso em plena revolta contra o princípio do governo, pretendendo-o transformar em oligarquia à veneziana; o direito de propriedade sem segurança porque a justiça civil é distribuída por magistrados políticos que sacrificam a paixões de partido a imparcialidade do julgamento; a justiça criminal entregue a inumeráveis harpias de uma política, que atropela, despoja e escraviza o cidadão pacífico; a indústria nacional monopolizada pelo querido português, enquanto o povo enjeitado geme sob a carga dos tributos, que exige a dívida de 400 milhões despendidos na bela empresa de afogar em sangue seus clamores e de enriquecer seus inimigos; a nação envilecida, desprezada, conculcada por uma Corte, que sonha com o direito divino e só respira a aura corrompida da baixeza, da adulação e do estrangeirismo; nada de generoso, de nacional e de grande; nada para a glória, para a liberdade, para a prosperidade material; o entusiasmo extinto; o torpor do egoísmo percorrendo gradualmente, com a frialdade do veneno do coração às extremidades e amortecendo as carnes mórbidas de uma sociedade, que supura e dissolve-se… tal o estado do Brasil!”
Dezessete anos depois, ele era senador pelo Partido Conservador, ex-ministro da Fazenda, principal “metalista” (defensor do lastro em ouro para a moeda) do Parlamento – talvez do país – e principal opositor de Souza Franco e Mauá, os principais “papelistas”, em política econômica (v. A revolta dos escravos e o fim do Império).
Uma coisa, entretanto, nele não mudara – a aversão de Torres Homem, bisneto de uma escrava, pela escravatura:
- “Esta medida liga-se por sua natureza e por suas consequências imediatas com a questão da emancipação da escravatura existente, bem que muito diversos sejam o pensamento e o fim com que foi lembrada. Que o Estado liberte parte dos escravos em nome da humanidade e da civilização, ou que o faça no único interesse de obter soldados, isto é indiferente; os efeitos morais são os mesmos sobre a massa geral da escravatura não compreendida na alforria. Em ambos os casos origina esperanças, desperta aspirações, e provoca sentimentos incompatíveis com a segurança dos proprietários e com a ordem pública, no regime monstruoso da escravidão.”
O argumento era sob medida para sensibilizar os escravocratas a serem contrários à alforria para “engrossar” as tropas no Paraguai. Mas ele aduziu outro: que espécie de soldados seriam ex-escravos, alforriados para morrer na guerra? Que motivo teriam para lutar e morrer pelo país onde viveram acorrentados?
***
O que mais chama atenção nessa sessão do Conselho de Estado de 5 de novembro de 1866 – depois de dois anos de guerra – é que todos os que falaram, na sessão do Conselho de Estado, admitiram que os escravos preferiam ir para a guerra do que continuar escravos. Apenas o conselheiro Paranhos fez uma restrição, mas apenas relativa, a esse juízo (“alguns escravos têm repugnado a liberdade por esse modo”).
A República e a formação do caráter nacional (7)
(continua)
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