CARLOS LOPES
A aversão de Torres Homem pela escravidão – e sua ascendência negra e escrava – não fez com que defendesse uma política econômica que superasse a escravatura, ou que tivesse como premissa o fim da escravidão.
Entretanto, essa aversão era verdadeira. Na discussão da Lei do Ventre Livre, em 1871, quando o gabinete Rio Branco estava muito perto de ser derrotado – o presidente do Conselho foi obrigado a fazer 21 discursos, tão poucos havia dispostos a defender a proposta – foi Torres Homem quem, no Senado, respondeu a Zacarias de Goes e Vasconcellos, líder dos liberais, que tergiversava no que, na época, era chamado de “questão servil”.
Ao mesmo tempo, Zacarias argumentava que a proposta tinha origem nos liberais – especialmente, nele mesmo – e que se tratava de um projeto ruim, muito defeituoso.
Naquele momento, isso era uma conciliação – e, talvez, adesão – com os escravocratas.
Neste trabalho, como em outros anteriores, tem sido uma decisão difícil, muitas vezes, a transcrição de textos ou discursos mais ou menos (mas nem tanto…) longos. O motivo é que nosso objetivo, aqui, é expor figuras, obras, acontecimentos, que ficaram esquecidos – e não devido ao tempo, mas aos acontecimentos das últimas décadas e sua repercussão na luta ideológica.
Porém, vale a pena, leitor, conhecer este compacto do discurso de Torres Homem (a íntegra está em Annaes do Senado do Imperio do Brasil, 1871, volume V, p. 55 a 61). Os grifos são nossos.
Torres Homem foi à tribuna em 5 de setembro de 1871, dia seguinte ao discurso de Zacarias. Foi o mais brilhante discurso de todos, naquela discussão, pronunciado por um mulato que, apesar de todos os retratos racistas que se fizeram dele, não esquecera as suas origens:
SENADOR SALES TORRES HOMEM: – … Senhores, depois de longo tempo de trevas e de cegueira de todos nós, chegou uma época em que a instituição da escravidão compareceu perante a consciência do povo brasileiro tal qual ela é, circundada das luzes que deviam iluminar todas as faces deste flagelo, produzindo nas ideias e sentimentos uma revolução lenta, porém que nunca interrompeu-se, que prosseguiu sempre adquirindo forças em seu caminho.
SENADOR FRANCISCO OCTAVIANO: – Apoiado.
SENADOR SALLES TORRES HOMEM: – Foi essa revolução moral que há 20 anos contribuiu eficazmente para a efetiva supressão do tráfico, o qual nem os cruzeiros, nem os recursos do primeiro poder marítimo do mundo, tinham conseguido suprimir. Essa revolução é a mesma que hoje bate às portas do parlamento, exigindo instantemente o complemento da obra da civilização.
Dois meios havia para perpetuar a escravidão, disse com razão o mesmo orador a quem me refiro [Zacarias]: era o tráfico e a reprodução ou o nascimento. O poder da opinião, que destruiu o primeiro, destruirá também o segundo, porque um e outro são igualmente nefários e desumanos.
O tráfico arrancava ao longe, nos sertões africanos, em que tudo é silêncio, o filho selvagem do gentio, vítima de guerras bárbaras de que não tínhamos notícia, para o trazer ao mercado da carne de lavoura.
O outro processo não é menos atroz: espera-se nas portas da entrada da vida as criaturas novas que apraz à Providência enviar a este mundo, e aí são recrutadas para o cativeiro, embora nascidas no mesmo solo, junto do mesmo lar da família, em frente ao templo do mesmo Deus e no meio dos espetáculos da liberdade, que tornarão mais sensíveis a sua degradação e miséria! É a pirataria exercida à roda dos berços, nas águas da jurisdição divina e debaixo das vistas imediatas de um povo cristão!
Passarei agora, Sr. Presidente, a considerar a matéria da proposta. Ela não pode ser convenientemente compreendida e apreciada senão à luz direta dos grandes princípios que a inspiraram, das necessidades em que se funda e dos fins a que se destina. Se não tivesse outro desígnio, como assoalham seus inimigos, senão obedecer a um simples impulso sentimental e realizar um sonho dourado de filantropia, dando-nos uma atitude mais nobre em frente do mundo, então, qualquer que fosse a generosidade destes motivos, a proposta poderia parecer intempestiva e violenta em frente dos interesses que gritam, e desejariam providências de efeito mais lento e insensível.
Mas se ela tem por fim impedir a reincidência em um dos maiores atentados que mancham a espécie humana; se tem por fim restaurar a lei de Deus e da natureza no meio da nossa civilização, e destruir pela raiz o mal que tolhe as condições de seu desenvolvimento, neste caso, longe dos defeitos da precedente suposição, ela poderia talvez ser arguida de tímida e incompleta, de transigir com os interesses mal-entendidos, em preterição das exigências da justiça e dos direitos da humanidade.
Dependendo, pois, o exame da lei do de seus motivos, qual é esse mal a que ela procura dar remédio? Não devo nem quero, senhores, descrever nesta tribuna a série de transformações por que passa o escravo, que há de vir, até ser reduzido à máquina. É um triste quadro, que todos conhecem e eu deixo aos escritos dos filantropos o dizerem o como, no interesse da segurança do proprietário, se oblitera sistematicamente nele a inteligência, a imagem de Deus no homem; como se lhe suprime o livre arbítrio e embota-se-lhe a consciência, que lhe revelaria seus títulos, seus direitos e seus deveres; e como, depois de se lhe arrancar a propriedade do próprio corpo, das forças vivas que o movem e, por consequência, a dos frutos de seu trabalho, ferem-se em seu coração as afeições mais caras, nega-se a família sempre dispersa ao sopro de todos os ventos, rompem-se os laços que a formam: a autoridade e o amor paternal, a dependência e piedade filial, a castidade e a ternura da mulher. Sentimentos morais, nobres instintos de felicidade, esperanças e consolações no meio das tormentas da vida, tudo desaparece nesse homem, posto fora da lei da humanidade e rebaixado à condição de bruto!
Mas o outro aspecto do painel não é menos deplorável; este vasto pântano da escravidão, aberto no meio da civilização, exala em todas as direções miasmas deletérios que vêm infeccionar a atmosfera social!
A que ficam reduzidas as ideias da justiça e do bem, quando o sofisma atroz da escravidão as desconhece e viola na aplicação a milhares de nossos semelhantes? Qual é a base da legislação civil, qual a sua força e prestígio sem o sacramento da lei natural, de que Deus é o supremo autor? O que será da liberdade política, quando sua estátua pesa sobre os ombros do escravo? Em vez desse sentimento impessoal, generoso e grande, que nos leva a defender os direitos de todos, como culto de um princípio de origem divina, como homenagem a um dever da solidariedade entre os homens, ao contrário, torna-se sentimento egoísta, pessoal, privado do aroma da fraternidade, que o nobilita, falsa liberdade que converte a vítima da véspera em opressor do dia seguinte, liberdade material, tal como a que aspira para si só o cavalo indômito ou o índio do deserto. Aonde a instituição da escravidão existe, que lugar fica para a caridade, a filha predileta do cristianismo, que sobre ela fundou a sociedade moderna, impondo ao forte a tutela do fraco, ao rico a proteção do pobre, aos felizes da terra a responsabilidade pelo destino dos desvalidos, dos miseráveis, dos órfãos da civilização?
(…)
Numerosas representações assinadas por lavradores e seus aderentes têm sido endereçadas às camarás legislativas, e em quase todas elas, assim como na sua imprensa descomedida, é o governo acusado de ter com imprudência e precipitação procurado extirpar o cancro social sem dar atenção à sensibilidade do enfermo imaginário, sem poupar as forças vivas que serão comprometidas pela audácia sa operação; é acusado de querer fazer tábua rasa na ordem de coisas existentes pelo simples luxo de filantropia, erguendo um plano de regeneração sobre a ruína da principal indústria do Império.
O nobre membro a quem já me referi, depois de ter reclamado para o seu ministério a iniciativa desta reforma, não achou entretanto no seu longo discurso de ontem uma palavra, uma única palavra contra a guerra desapiedada e ferina que se lhe tem movido! Esta mudez do instinto paternal, esta indulgência para com os inimigos da sua prole assim abandonada no meio de tantos perigos, só podem ter uma explicação, e é que o ilustre senador, como o espartano dos antigos dias, deseja que Ihe afoguem e destruam o filho por lhe ter descoberto vicios de conformação, que o tornam indigno de viver! Mas isto que ele deixou de fazer, eu tentarei fazê-lo com minha débil voz, comparando as principais medidas da proposta com as censuras que lho hão sido irrogadas pelos peticionários, cedendo às sugestões de uma facção política, que os ilude. Serei breve, Sr. presidente, porque esta questão ganha em ser exposta em termos sucintos e claros em frente do dilúvio de declamações, calculadas para obscurecê-la e confundi-la.
Proclamando a liberdade dos nascituros, a proposta os deixa entregues até a idade de 21 anos às mães dos antigos proprietários, que gozarão deles gratuitamente, como dos outros escravos, expostos ao mesmo regímen, à mesma miséria da condição servil, durante este longo período da primavera da vida.
Prometeu-lhes, além disto, o pagamento, como indenização, das despesas da criação, caso eles o prefiram ao usufruto dos 21 anos.
Entretanto, os proprietários atacam a liberdade dos nascituros em nome do direito da propriedade violada; relutam contra a indenização como insuficiente e ineficaz para o efeito.
Se se lhes perguntar, porém, por que o legislador, que pode reformar e alterar todas as leis, não poderia alterar a da propriedade, responderão, sem dúvida, que a propriedade é inviolável, porque se funda na lei natural, anterior à lei civil, e deriva-se de um princípio imutável de justiça, o qual consagra e mantém a cada um o fruto do próprio trabalho, princípio sem o qual o estado social seria impossível.
Eis-nos, pois, transportados à esfera do direito e da justiça, onde realmente se encontra a base racional da inviolabilidade da propriedade em geral.
Pois bem, senhores, se se provar que a propriedade da criatura humana, longe de se fundar no direito natural, é pelo contrário, a sua violação mais monstruosa; se, em vez da justiça, se apoia unicamente na iniquidade da força, então caduca e desaparece o alegado fundamento da inviolabilidade dessa propriedade especial; e a lei, que a protegeu, reduzida a não ser mais que um erro ou um crime social, está sujeita a ser mudada, como qualquer outra, funesta aos interesses da nação.
Ora, senhor presidente, não é no seio desta augusta assembleia, onde, a par de tantas luzes e experiência, dominam os sentimentos mais elevados, que eu irei demonstrar que criaturas inteligentes, dotadas, como nós, de nobres atributos e dos mesmos destinos, não podem ser equiparados, no ponto de vista da propriedade, ao potro e ao novilho, ao fruto das árvores e aos objetos inanimados da natureza submetidos à dominação do homem. Doutrina absurda e execrável! Os seres de que se trata, não vivem ainda; a poeira de que seus corpos serão organizados, ainda flutua dispersa sobre a terra; a alma imortal, que os tens de animar, ainda repousa no seio do Poder Criador, serena e livre, e já o ímpio escravagista os reclama como sua propriedade, já os reivindica do domínio de Deus para o inferno da escravidão! (Muito bem!)
Ao ouvir-se os peticionários falarem tão alto em direito de propriedade, fica-se surpreendido de que se olvidassem tão depressa de que a máxima parte dos escravos que lavram suas terras são os descendentes desses que um tráfico desumano introduziu criminosamente neste país, com afronta das leis e dos tratados! Esqueceram-se de que no período de 1830 a 1850 mais de um milhão de africanos foram assim entregues à lavoura, e que para obter essa quantidade de gado humano era necessário duplicar e triplicar o numero de vítimas, alastrando-se de seu sangue, e de seus cadáveres a superfície dos mares que nos separam da terra do seu nascimento! (Muito bem!)
E quando assim foram calcadas as leis humanas de envolta com a lei divina, como se ousa invocá-las para encadear no futuro os filhos ou netos das conquistas desse comércio abominável?
Os peticionários também relutam à indenização, que desejariam subisse ao preço equivalente, ou ainda superior ao da cria, a que nenhuma espécie de direito têm. Qual é o motivo da indenização? As despesas da criação, diz se.
Mas esses infelizes são amamentados por suas mães, nutridos com as migalhas dos alimentos grosseiros que elas contribuem a plantar e colher: o leite do seio materno dado ao filho, o suor da mãe para os fazer viver e cobrir-lhes a nudez, eis o que os senhores terão de vender ao Tesouro!
Sr. presidente, lastimo que esta disposição faça parte da proposta; ela a deslustra, assim como avilta o proprietário, porque parece uma precaução contra sua barbaridade; receia-se que ele abandone as crias à miséria e à morte, se sua desumanidade não for corrigida, e contida pela sua avareza. Mas, mesmo neste caso, não seria ouro que conviria enviar a esses homens; seria o Evangelho, para que eles aí aprendessem a cumprir os deveres, sagrados da caridade para os filhos daqueles que trabalham gratuita e incessantemente, que trabalham até à morte para criar a prosperidade dos senhores e dos seus descendentes. (Apoiados.)
Mas, Sr. presidente, nem o usufruto dos 21 anos, nem essa indenização indébita e tão onerosa para o Tesouro Nacional, podem satisfazer aos adversários da reforma!
(…)
… os terrores pânicos, as prevenções exploradas pelas paixões políticas, depois de terem dado a esta questão um aspecto ameaçador, continuarão a agitar a população, até que a decisão do Senado venha pôr termo às ilusões.
Não quer isto dizer que, logo depois, os ataques e as injustiças dos interessados não continuarão contra aqueles que concorreram para esta reforma; mas teremos belas compensações: teremos a consciência de haver cumprido um árduo dever para com a humanidade e a civilização; teremos os aplausos do país.
Essas milhares de mulheres, que durante o curso de três séculos tantas vezes amaldiçoaram a hora da maternidade e blasfemaram da Providência, vendo os frutos inocentes de suas entranhas condenados ao perpétuo cativeiro, como se fora crime o ter nascido, levantarão agora seus braços e suas preces aos céus, invocando a bênção divina para aqueles que lhes deram a posse de si mesmas.
Estas expressões de gratidão dos pobres aflitos valem mais do que o anátema do rico impenitente, mais que os ataques dos poderosos que não souberam achar meios de prosperidade senão na ignomínia e sofrimento de seus semelhantes!
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Entretanto, logo após o fim do tráfico de escravos da África (o tráfico interno continuou), a política econômica “saquarema” (assim eram chamados os conservadores, devido a uma propriedade de seu líder, Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, em Saquarema) era uma adaptação das teorias econômicas inglesas a um país em que o trabalhador era escravo.
Aqui, é necessária uma observação, antes de prosseguirmos.
A ideia – presente (ou pressuposta) em muitos trabalhos acadêmicos – de que os “saquaremas” fossem politicamente homogêneos, não corresponde à realidade. Nem eles, nem os “luzias” (apelido dado aos liberais, devido à “batalha de Santa Luzia”, durante a revolta liberal de 1842 em Minas Gerais, na qual Teófilo Ottoni foi derrotado por Caxias).
Na década de 80 do século XIX, um dos mais radicais abolicionistas seria um conservador, o juiz Antônio Bento, líder dos Caifazes, que ajudavam os escravos a se libertar das plantações e senzalas de São Paulo.
Certamente, Antônio Bento não era dirigente nacional do Partido Conservador; mas Paranhos, o visconde do Rio Branco, no gabinete de quem foi promulgada a Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) e o conselheiro João Alfredo, cujo Ministério enviou ao Legislativo a Lei Áurea (13 de maio de 1888), eram.
E nem é necessário estendermo-nos sobre as raízes políticas do marechal Deodoro da Fonseca, longamente, um integrante do Partido Conservador.
Euclides da Cunha estabelece o fim do Ministério Rio Branco – um gabinete conservador, aliás, o mais duradouro dos Ministérios do Império (1871-1875) – como o momento em que a monarquia começou a descer a ladeira. Depois disso, diz Euclides, veio “uma dessas ‘épocas sem fisionomia’, pressagas de transformações profundas. Mas, evidentemente, estas se efetuariam fora do aparelho monárquico”.
O Império “iria desintegrar-se submetendo-se por sua vez ao meio, que até então dominara, e aos excessos de movimentos que este adquirira” (cf. Euclides, “À Margem da História”, Lello Brasileira, 1967, pp. 237 e 238).
O marco firmado por Euclides nos parece não de todo exato.
O Ministério Rio Branco, encerrado em 1875, foi uma tentativa de frear a decomposição que já estava em curso, pelo menos desde a crise econômica de 1864 – uma crise que “arrastou boa parte das casas financeiras do Rio de Janeiro com o passivo total de 110.500 contos, o que gerou na liquidação perdas da ordem de £7,5 milhões, valor equivalente a 50% dos meios de pagamento em 1864” (cf. Marcelo de Paiva Abreu e Luiz Aranha Correa do Lago, “A economia brasileira no Império, 1822-1889”, in “A Ordem do Progresso: dois séculos de política econômica no Brasil”, Elsevier, 2ª ed., 2014, p. 21, grifo nosso).
Os liberais reclamaram que Rio Branco estava fazendo o que eles tinham proposto em seu programa. Em suma, como se diz nos dias de hoje, o conservador Rio Branco roubara as bandeiras dos liberais…
Uma acusação que mostrava a indigência da cúpula e do programa dos liberais – isto é, a sua limitação, tanto assim que esse programa podia ser adotado pelos conservadores. Não fosse o fato histórico de que os conservadores, no Brasil, surgiram como uma dissidência dos liberais.
Porém, entre os conservadores, é difícil ver uma semelhança entre Rio Branco, e, por exemplo, João Maurício Wanderley, o barão de Cotegipe, aquele escravagista que foi o único voto contra a Lei Áurea (e que, em março de 1871, recusou a pasta da Fazenda do Ministério Rio Branco, exatamente porque este pretendia alguma reforma no regime de escravidão).
A mesma coisa pode-se dizer dos liberais: o que existe de comum entre o primeiro Afonso Celso – o visconde de Ouro Preto, presidente do último gabinete do Império – e o senador Dantas, de quem Rui Barbosa – um dos jovens liberais da equipe de Dantas – faria um emocionado perfil?
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Vicente Licínio Cardoso, a quem se deve uma das mais importantes contribuições à história econômica do Segundo Reinado, frisa que o fim do tráfico de escravos, por volta de 1853 (depois da Lei Euzébio de Queiroz, outro conservador, em 1850), coincide com a decadência da escravatura.
Hoje, essa afirmação parece óbvia, até mesmo tautológica. Mas nem sempre foi assim. Provavelmente porque o furioso tráfico de escravos entre as províncias (sobretudo das províncias nordestinas para São Paulo), que sucedeu ao fim do tráfico da África, não permitia muita nitidez aos homens daquela época.
No entanto, houve uma “deslocação abrupta, subsequente, dos capitais até então empregados nesse comércio [de escravos]. Era a jogatina dos negócios, a febre pletórica de companhias que avassalou o Rio” (cf. Vicente Licínio Cardoso, “À Margem da História do Brasil”, CEN, 2ª ed., 1938, p. 143).
A base para essa febre, que desembocou na crise de 1864 – a quebra do Souto e outros bancos – era “a economia do país insuficientemente desenvolvida, assentando com exclusividade quase no trabalho agrícola dos escravos. A crise financeira de 1864 deveria, pois, ter sido tomada como um aviso” (idem, p. 145).
Não foi assim tomada – para a monarquia, o que importava era a manutenção da escravatura; para isso, ela existia.
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Aqui, é necessário lembrar, outra vez, o que era a escravidão em nosso país, durante o Império (1822-1888). Senão, é impossível entender como foi tão decisiva a luta pela Abolição e pela República na formação de nosso caráter nacional.
É possível a seres humanos – mesmo a alguns que não são ruins, como lembra Mark Twain, em sua “Autobiografia”, a respeito de sua mãe – acostumar-se de tal modo à escravidão, que não lhes parece anormal ver (ou, pior, ter) outro ser humano como escravo.
O discurso de Torres Homem sobre os “peticionários” escravagistas é uma denúncia desse tipo de pessoa – e de classe social.
Os abolicionistas – inclusive aqueles, não poucos, que eram filhos de senhores de escravos – tiveram o grande mérito, mesmo aqueles que não relacionavam a Abolição com o desenvolvimento do país, de não encarar a escravidão como um fato normal da vida.
Em agosto de 1884, na discussão do projeto Dantas/Rui Barbosa – o projeto de emancipação dos escravos que foi derrotado, depois da intervenção de Pedro II -, o deputado escravagista Souza Carvalho fez uma síntese da posição que acabou prevalecendo, naquele momento, expressa pela Lei Saraiva/Cotegipe:
“Querer desapropriar sem indenização um escravo de qualquer idade para libertá-lo seria, da parte de quem fosse constitucional e não professasse opiniões comunistas, uma falta de consciência e de escrúpulo, um verdadeiro roubo.”
No que foi contestado por Rui Barbosa, então deputado pelo Partido Liberal:
“A liberdade é uma restituição, e a indenização perde rapidamente o caráter de um direito.”
Rui apontava que não havia um só argumento dos escravistas contra a projeto de emancipação dos escravos do Ministério Dantas, que não houvesse aparecido contra a Lei do Ventre Livre – e antes na discussão sobre o tráfico de escravos:
“Percorrei a fieira de espantalhos agitados presentemente contra o projeto Dantas ; e não nos indicareis um só, que, desenterrado dos arsenais do tráfico nos debates parlamentares de 1827 a 1850, não se tivesse meneado em 1871, contra a proposta Rio Branco.
“Onde está, entretanto, a desorganização social com que nos apavoravam? a paralisação do trabalho agrícola? a insurreição geral? a destruição da lavoura? a bancarrota financeira?” (Rui Barbosa, Parecer sobre a emancipação dos escravos, O.C., vol. XI, t. 1, p. 73).
Rui, ao contrário da imagem que hoje se tem dele, era um artista da ironia:
“Depois, que é o que querem os senhores de escravos? Tudo e nada; querem a emancipação e, até, a abolição mesma, como o Sr. Sousa Carvalho, quando, em 1867 e 1868, se declarava ‘oportuna e prudentemente abolicionista’; mas recusam com tenacidade todas as medidas que sucessivamente venham aparelhá-la. Nunca a solução que os debates parlamentares elaboram; sempre um alvitre remoto, abstrato, mal distinto, que haja prévia certeza de não conquistar o ânimo à representação nacional! Em 1859 aceitavam a emancipação da maternidade, quando esta ideia era apenas um aceno, uma esperança, ou uma promessa no movimento liberal de que foi propulsor o conselheiro Nabuco. Dois anos depois repeliam essa providência, logo que ela se concretizou numa proposta do governo. Em 1871, ao benefício criado em favor dos nascituros opunham o direito dos velhos, beneméritos do trabalho, habilitados para a liberdade por uma longa existência de serviços preciosos à riqueza nacional. Em 1884, utilizam-se da concessão efetuada em 1871 a despeito seu, para desconhecer o direito que então proclamavam, e impugnar a satisfação do débito [com os velhos], que, há treze anos, subscreviam. Em 1871 opunham aos nascituros os anciãos; hoje opõem a estes os moços. Em 1871 a propriedade vedava a libertação do ventre, cujos frutos, ainda irrealizados, ainda na massa dos possíveis, estavam compreendidos no domínio do senhor como as eventualidades futuras da criação, ou da colheita. Hoje, já a propriedade absolve a liberdade do ventre, em nome de uma razão jurídica, a que, naquela época, se impunha a tacha de espoliadora. Em 1867, o direito do proprietário acomodava-se à manumissão gratuita dos escravos de 55 anos, defendida, no conselho de Estado, pelo tipo do mais irredutível escravismo, o Sr. de Muritiba. Em 1884, a alforria dos cativos de 60 anos recebe dessa mesma opinião, tendo por órgão exatamente o Sr. Muritiba, a nota de atentado à propriedade. Em 1871, a filantropia escravista descobre na liberdade das crianças uma hecatombe de inocentes e na redenção dos velhos um ato de humanidade. Em 1884 verbera a emancipação dos sexagenários como um rasgo de crueldade, e aclama o resgate das gerações nascentes como um progresso eminentemente salutar” (Rui, op. cit., pp. 223-224).
A Lei Saraiva/Cotegipe foi um retrocesso em relação à Lei Rio Branco (a lei do ventre livre), que reconhecera, em 1871, o direito à liberdade dos nascidos de escravas, sem nenhuma indenização ao dono da mãe, apesar de todas as concessões, referidas acima por Torres Homem.
Em 1884, treze anos depois, os escravocratas, com a fundamental ajuda de Pedro II – que demitiu o Ministério Dantas e dissolveu a Câmara – aprovaram uma lei pela qual o escravo, depois de completar 60 anos, teria que trabalhar mais cinco anos para ressarcir ao dono os custos com sua criação e manutenção…
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A escravidão, do ponto de vista deste trabalho, não pode ser tratada como uma abstração econômica, apenas como um conceito, mas, também, como a realidade humana que esse conceito, essa abstração, condensa.
O que era, sob esse ângulo, a escravidão?
Acima, Torres Homem, que era neto de escrava, colocou a questão em traços largos. Agora, vejamos a questão de maneira mais concreta.
Um pouco depois da Independência, em seu livro, publicado em 1839, sobre a viagem do Beagle – a partir da qual ele revolucionou a ciência – escreveu Charles Darwin:
“No dia 19 de agosto, finalmente deixamos a costa do Brasil. Agradeço a Deus e espero nunca mais visitar um país escravocrata. Até hoje, se ouço um grito longínquo, lembro com dolorosa nitidez do que senti quando passei por uma casa perto de Pernambuco [Recife]. Ouvi os mais terríveis gemidos e suspeitei que algum pobre escravo estivesse sendo torturado, mas sabia que não havia nada que eu pudesse fazer, senti-me impotente como uma criança. Suspeitei que esses gemidos fossem de um escravo sendo torturado porque me disseram, numa situação semelhante, que era isso que se passava. Perto do Rio de Janeiro, morei em frente a uma velha senhora que mantinha tarraxas para esmagar os dedos de suas escravas. Fiquei em uma casa onde um jovem mulato era diariamente, e a cada hora, maltratado, espancado e atormentado, de um modo suficiente para aniquilar o espírito do animal mais miserável. Vi um garotinho de seis ou sete anos de idade ser atingido três vezes na cabeça, antes que eu pudesse interferir, por um chicote de açoitar cavalos, simplesmente por ter me servido um copo de água que não estava bem limpo. Vi o pai [dessa criança] tremer apenas com um relance dos olhos de seu dono. Testemunhei essas últimas crueldades numa colônia espanhola, em que sempre foi dito que os escravos são mais bem tratados que pelos portugueses, ingleses ou membros de outras nações europeias. Vi, no Rio de Janeiro, um negro forte com medo de se proteger de um golpe dirigido, como ele pensou, ao seu rosto. Estive presente quando um homem de bom coração estava prestes a separar para sempre homens, mulheres e crianças de um grande número de famílias, que por muito tempo haviam vivido juntas. Nem mesmo aludirei às muitas atrocidades de revoltar a alma que ouvi de fonte segura. Em verdade, nem teria mencionado tais revoltantes detalhes, se não tivesse encontrado tantas pessoas cegas pela alegria de viver que é associada aos negros, a ponto de falarem da escravidão como um mal tolerável. Tais pessoas normalmente frequentam as casas das classes superiores, onde os escravos domésticos são, em geral, bem tratados. Elas não testemunharam, como eu, o que são as condições nas classes mais baixas. Esses pesquisadores perguntam aos escravos sobre suas condições; esquecem que somente um escravo muito estúpido não calcula a chance de sua resposta chegar aos ouvidos de seu dono.
“Argumenta-se que o interesse pessoal impedirá a crueldade excessiva, como se o interesse pessoal tivesse alguma vez protegido os nossos animais domésticos, que são muito menos propícios a despertar a fúria de seus selvagens donos, do que os escravos degradados. É um argumento que há muito foi refutado por aqueles de sentimentos nobres, notavelmente exemplificados pelo ilustríssimo Humboldt. Frequentemente se usa na argumentação a favor da escravidão, a comparação com os nossos mais pobres compatriotas: se a miséria dos nossos pobres fosse causada não pelas leis da natureza, mas por nossas instituições, grande seria o nosso pecado. Mas não posso ver como isto se relaciona com a escravidão, como também não vejo como é possível defender a prática do esmagamento de dedos em um lugar, com a demonstração de que os homens de outro lugar sofrem com doenças horríveis. Aqueles que possuem um olhar terno para os donos e um coração frio para os escravos, nunca se colocaram na posição dos últimos. Que perspectiva desanimadora, desprovida de qualquer esperança de mudança! Imagine a probabilidade, sempre pairando sobre você, de sua esposa e seus pequenos filhos – que a natureza faz, até mesmo aos escravos, chamar de seus – sendo separados de você e vendidos como animais ao primeiro comprador! Esses atos são praticados e mitigados por homens que professam amar o próximo como a si mesmos, acreditar em Deus e rezar para que Sua vontade seja feita na Terra! Faz o sangue ferver e o coração palpitar, pensar que nós, ingleses, e nossos descendentes americanos, com seu orgulhoso grito de liberdade, foram e são tão culpados: mas é um consolo pensar que nós [ingleses], pelo menos, fizemos o maior sacrifício já feito por qualquer nação a fim de expiar nosso pecado” (cf. Charles Darwin, “The Voyage of the Beagle”, P.F. Collier & Son, NY, 1909, pp. 525-527).
É possível ao leitor, já que Darwin saiu do Brasil em 1832, fazer a pergunta: a situação dos escravos não melhorou, até 1888?
Provavelmente – houve legislação para conter alguns abusos. Porém, qual foi o senhor (ou senhora) de escravos que foi condenado, em todo o Segundo Império, por maus tratos, ou, mesmo, pelo assassinato de um escravo?
Nem mesmo quando se tratou do assassinato covarde e cruel de duas crianças, em 1876, portanto, 44 anos depois das observações de Darwin no Brasil (v. A Baronesa de Grajaú e outros casos da piedosa caridade dos escravagistas).
Bem mais próximo, ainda, da Abolição, Joaquim Serra, abolicionista da primeira fileira e grande amigo de Machado de Assis, denunciaria o caso de uma jovem escrava, que teve seus dentes arrancados com uma torquês, por sua dona, tomada de ciúmes em relação ao marido.
O que aconteceu com essa megera?
Nada, evidentemente, não importa que a lei proibisse o assassinato e as crueldades sobre os escravos.
Quanto a estes, estavam sujeitos à pena de morte, sem direito a pedido de clemência, pelo Decreto de 11 de abril de 1829, assinado por Pedro I, no caso de matarem o dono, ou, pela Lei de 10 de junho de 1835, até por menos que matar o dono (“Artigo 1.º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com eles viverem. Se o ferimento, ou ofensa física forem leves, a pena será de açoites a proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes“).
Também é possível argumentar que estamos citando casos extremos.
Não estamos disso convencidos. Mas vamos imaginar que sejam. Qualquer sistema que permita esses “casos extremos” é uma monstruosidade.
Era tudo o que fazia Castro Alves, bem antes, em maio de 1865, escrever, em sua ode a Pedro Ivo, herói da Revolução Praieira:
República!… Voo ousado
Do homem feito condor!
Raio de aurora inda oculta,
Que beija a fronte ao Tabor!
Deus! Por que enquanto que o monte
Bebe a luz desse horizonte,
Deixas vagar tanta fronte,
No vale envolto em negror?!.
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O pano de fundo, para todos, no Brasil da segunda metade do século XIX, era a estagnação do país, sob a medíocre monarquia escravocrata.
Em 1883, Joaquim Nabuco tocou na questão decisiva – a questão do trabalho:
“… a raça negra nos deu um povo. (…) o que existe até hoje sobre o vasto território que se chama Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu o nosso país. Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da ocupação e da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou ainda, o país apresenta o aspecto com que surpreendeu os seus primeiros descobridores. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no pais, como resultado trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar” (Joaquim Nabuco, “O Abolicionismo”, Typ. Abraham Kingdon e Cª, Londres, 1863, p. 21).
O problema, então, do ponto de vista econômico, era a impossibilidade do país crescer (ou de ter um crescimento que não fosse um espasmo), depois do final da década de 50 do século XIX, com o trabalho sob regime escravo.
Aliás, todo o crescimento, sob a monarquia, foi, no conjunto e na média, medíocre:
“O PIB per capita brasileiro em 1820 seria comparável ao mexicano (cerca de 10% a 20% inferior) e corresponderia a pouco mais da metade do nível do PIB per capita dos EUA. Em 1890 havia perdido muito terreno: seria talvez ¾ do nível mexicano, pouco mais de 1/3 do nível argentino e pouco mais de 1/5 do nível dos EUA. Uma taxa de crescimento de 0,3% ou até 0,4% ao ano para o período imperial como um todo” (cf. Marcelo de Paiva Abreu e Luiz Aranha Correa do Lago, op. cit., p. 27).
Isso, evidentemente, não quer dizer que o país não crescesse mais que isso em vários períodos. Mas, a partir de 1864, e, sobretudo, após a Guerra do Paraguai, o quadro interno é de estagnação, mesmo quando havia aumento nas exportações.
Porém, a questão do trabalho – que resumia-se, naquele momento, na Abolição – é evitada por Torres Homem, que, depois da derrubada de Souza Franco e sua política “expansionista”, definiu a política econômica do Império.
A obra financeira prática de Torres Homem é a Lei dos Entraves, de 1860 (Lei nº 1.083 de 22 de agosto de 1860), que ele não conseguiu aprovar, quando era ministro da Fazenda, o que fez seu sucessor, Silva Ferraz.
Oito anos depois, Mauá escreverá:
“Desde longa data são conhecidas minhas ideias sobre esse assunto transcendental [crédito], pois há cerca de vinte anos registram os anais da Câmara dos deputados minhas palavras a esse respeito em um dos poucos discursos em que minha fraca voz se fez ouvir nesse recinto, pois sabia bem que seria trabalhar em pura perda de tempo combater as ideias que dominavam, e faltavam-me, além disso, algumas habilitações e a força oratória que arrasta, ainda dizendo às vezes banalidades e muitos despropósitos sobre as matérias sujeitas ao debate, porém que, sendo pronunciadas por doutos, passam como moeda da boa lei, e em lei foram convertidos muitos disparates; por exemplo, a lei de 22 de agosto de 1860, que eu acreditei não podia durar dez anos sem que todos os que votaram por ela se envergonhassem de o ter feito, e todavia essa lei ainda faz parte de nossa legislação financeira!” (Mauá, “Exposição do Visconde de Mauá aos Credores de Mauá & C. e ao Público”, J. Villeneuve & C, 1878, p. 99).
A Lei dos Entraves foi uma restrição brutal ao crédito e uma trava aos investimentos, no momento em que os recursos antes aplicados no tráfico de escravos poderiam ser dirigidos para a industrialização do país.
Era, como mostramos em outro trabalho, um dispositivo “rigorosamente ‘metalista’ (ou seja, restritiva dos meios de pagamentos supostamente ao seu lastro em ouro, o que significa que o verdadeiro lastro eram os empréstimos dos bancos ingleses)” (v. A revolta dos escravos e o fim do Império).
Foi estabelecida depois da crise de 1857, quando os “metalistas” jogaram a culpa dessa crise sobre a política de Souza Franco.
Porém, a crise, em 1864, a que levou a política dos “metalistas” – Torres Homem e Silva Ferraz, mais do que Itaboraí – seria muito pior que a de 1857.
Exigir, em um país atrasado, que a moeda seja conversível imediatamente em ouro (ou seu sucedâneo, libras esterlinas), é a mesma coisa que manter – e agravar – o atraso.
Portanto, para o nosso tema, o mais importante é:
O que essa lei “entravava”?
Por que ela passou à história com o nome de Lei dos Entraves?
Ela entravava o desenvolvimento do capitalismo dentro do país. Nesse sentido, ela não ficou apenas (!?) na restrição ao crédito: ela também proibia a constituição de empresas sem autorização prévia do governo.
Era uma expressão do escravagismo e da sua classe dominante, os donos de escravos, em sua decadência. Ou, dito de outro modo, era uma lei para a manutenção da escravocracia, já na beira do túmulo, pela inibição do desenvolvimento, pois este levaria o país a ultrapassar, inevitavelmente, o escravismo, e pela submissão de toda a economia aos seus interesses.
No capitalismo, o trabalhador não é apenas um produtor, não é apenas alguém a ser explorado em prol dos lucros do patrão. É, também, um consumidor, um comprador de mercadorias. Sem compradores de mercadorias, uma economia capitalista, obviamente, não funciona. Ou não existe. Daí falar-se que o “trabalhador livre” é uma característica do capitalismo, comparado ao feudalismo e ao escravagismo.
No Gabinete de 4 de maio de 1857 (no Império, os governos eram datados), o ministro da Fazenda, Souza Franco, defendendo-se, na Câmara, dos ataques de Torres Homem, disse que “a necessidade de alargar o meio circulante [isto é, aumentar o dinheiro em circulação] decorria da alta do juro, da curteza do prazo para os empréstimos, em suma, da insuficiência da circulação (…). … faleciam estabelecimentos por falta de crédito à indústria fabril, manufatureira e mesmo à agrícola. (…) o país crescia em riqueza e prosperidade, aumentando as transações e elevando os preços, exigindo maior quantidade de dinheiro” (cf. Heitor Ferreira Lima, História do Pensamento Econômico no Brasil, CEN, 1976, p. 95).
Na sua réplica, Torres Homem revelou o fundo da divergência:
“… os bancos de circulação não podem auxiliar a lavoura, porque seu mecanismo, a necessidade de desconto a curto prazo, a necessidade da conversão de suas notas ao portador e à vista os torna exclusivamente adaptados a servir ao comércio e é impróprio às operações da lavoura. E é para a lavoura, a mais importante indústria nacional e que jaz sob o peso da usura, que cumpria ao Sr. ministro dirigir as suas vistas, auxiliando-a com bancos de estrutura especial” (idem).
A questão poderia ser equacionada do seguinte modo: para onde iriam os recursos liberados com o fim do tráfico de escravos? Para manter a escravidão – que era, antes de tudo, a escravidão do eito, a escravidão nas plantações de café e açúcar – ou para superá-la, através da industrialização?
Os homens daquela época, certamente, não colocavam essa questão com tal nitidez.
Nem que, com uma agricultura em crise e sem perspectiva de aumento extensivo, esses recursos acabariam na especulação.
O único que tentou alguma espécie de solução, mas por sua conta, foi Mauá, que tornou-se banqueiro após o fim do tráfico, com a ideia de dirigir recursos para a indústria.
Teve dois adversários: o regime econômico de escravidão e a monarquia. Ou, talvez, seu inimigo fosse apenas um.
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Recapitulemos um pouco essas questões, para melhor organizá-las – ou seja, para melhorar o seu entendimento.
O chefe dos conservadores, Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, em discussão com Souza Franco no Parlamento, reconheceu, em 1850, que era um risco para o país estar reduzido a produzir “matérias brutas ou gêneros, que não acham consumo senão nos mercados estrangeiros”. Mas, dizia ele, era “difícil, senão impossível, deslocar os capitais empregados na agricultura”.
Essa discussão aconteceu quando acabava o tráfico de escravos. A questão, portanto, não era “deslocar os capitais empregados na agricultura”, mas, para onde iriam os recursos antes empoçados no tráfico transatlântico.
É verdade que o próprio Souza Franco tinha uma posição defensiva sobre a questão. Já em 1867, falando no Conselho de Estado, ele considerou: “Não podendo aspirar a nos convertermos em nação manufatureira, pelo menos nestes anos próximos, não devemos contudo privar de emprego capitais que, nas cidades e vilas, não podem empregar-se na agricultura, e trabalho, braços e habilitações, que por igual motivo precisam ocupar-se em trabalhos industriais” (cf. Nícia Vilela Luz, “A Luta pela Industrialização do Brasil”, Alfa Omega, 2ª ed., 1978, p. 26 e p. 34).
Torres Homem era, para Souza Franco, um adversário muito mais agressivo do que tinha sido Itaboraí em 1850. Ou, talvez, o problema é que as posições estivessem trocadas: em 1850, quem estava no governo era Itaboraí – e Souza Franco na oposição; em 1857, era Souza Franco o ministro da Fazenda – e Torres Homem estava na oposição.
O fato é que Souza Franco foi substituído por Torres Homem no Ministério da Fazenda, após o desencadeamento da crise de 1857.
A versão de que a crise fora causada por sua política predominara – pelo menos na cabeça de Pedro II.
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Assim, do ponto de vista político, se expressou a divergência, a luta, entre “metalistas” – adeptos estritos do lastro da moeda em ouro (ou, melhor, libras esterlinas, por sua vez lastreadas em ouro) – e “papelistas”, que, como Mauá e Souza Franco, achavam possível usar títulos da dívida como lastro da moeda.
Mauá, em sua “Exposição aos Credores”, explicitou melhor a posição dos “papelistas”, ao examinar a nova lei do Barão de Cotegipe (outra vez, aquele mesmo que, depois, seria o único voto contra a Lei Áurea), para a atração de “capitais estrangeiros” na agricultura ” mediante garantia do Estado de 5% anual pagáveis em ouro, sendo o nosso meio circulante de papel inconvertível!”:
“Quereis por em contribuição as forças produtivas do Brasil, pagando em ouro ao estrangeiro (e somente ao estrangeiro, tal é a disposição da lei) a melhor parte do produto do seu trabalho nos anos felizes.
(…)
“Então cruzemos os braços diante dos males de que estamos ameaçados, nos dirão os homens da escola metálica que vêm no ouro que circula como meio circulante, o único representante do capital. Não querem ver que a luz, que a ciência tem conseguido derramar sobre esse assunto que reconhece no ouro apenas motor de transações, sem excluir outros instrumentos de permuta que preenchem o mesmo fim entre nós relativamente a todas as transações, dentro do país, com grande proveito e vantagens compensadoras dos males que se apontam bem entendido, nos limites do uso e jamais do abuso” (Mauá, “Exposição do Visconde de Mauá aos Credores de Mauá & C. e ao Público”, J. Villeneuve & C, 1878, pp. 100-101).
Somente de passagem, é interessante observar como a defesa do lastro em ouro para a moeda de um país capitalista – como a Inglaterra da época – tem significado diferente da mesma defesa para a moeda de um país de mão de obra escrava – como era o Brasil.
Pois é evidente para onde conduzia, no Brasil, a teoria dos “metalistas”: para a total dependência dos mercados externos, já que o trabalhador escravo consumia muito pouco.
A crise de 1857 mostrou, exatamente, isso. O debate, na Câmara, entre Souza Franco e Torres Homem foi em junho de 1857. No final de novembro, a crise nos EUA e Inglaterra atropelou os planos do ministro, de um aumento pacífico (!?) do meio circulante dentro do país.
A economia brasileira entrava em crise como mero reflexo da crise na economia dos EUA e países europeus, pela súbita contração da procura pelos produtos que o Brasil exportava.
Em seu relatório ao Parlamento, Souza Franco apontou especificamente essa circunstância:
“… nova dificuldade surgia com a crise, que partindo dos Estados Unidos da América, fez grave impressão na praça de Londres e em outras da Europa, e veio repercutir nas deste Império, cujas transações entorpeceu, sendo causa da baixa do cambio a cerca de 23 pence por mil réis, equivalente à subida da oitava de ouro ao preço de 4$910. (…) Ao passo que o cambio baixava, subia a taxa dos descontos, elevada a 10% pelo Banco do Brasil no dia 15 de Dezembro, e a 11% no dia 24; sendo porém tal a pressão, que fora dos Bancos eram escassos os descontos para firmas regulares, mesmo a 12, 14 e 15%” (cf. Bernardo de Souza Franco, Proposta e Relatorio do Ministerio da Fazenda, anno de 1857, apresentados à Assembleia Geral Legislativa na Segunda Sessão da Decima Legislatura, Typographia Nacional, 1858, p. 7).
Era uma crise causada pela extrema dependência da economia brasileira em relação às economias dos EUA e países da Europa, especialmente a Inglaterra.
Souza Franco, nesse relatório, diz que o país foi salvo da bancarrota por Mauá, depois que o presidente do Banco do Brasil, José Pedro Dias Carvalho (que, no ano seguinte, seria nomeado senador por Pedro II), recusou-se a cooperar: “… dirigi à Casa Bancária Mauá Mac Gregor & Cia. desta Praça os Avisos de 12 de Março e 8 de Abril, que achareis sob nº 8 e 9, em consequência dos quais a mesma Casa sacou sobre a sua filial em Londres as somas de £ 400.000 pelo vapor de Março, e de £ 200.000 pelo de Abril, sob as condições expressas nos referidos Avisos. Devo porém observar que esta operação tinha sido cometida antes ao Banco do Brasil, o qual propondo-se a fazê-la na forma do Oficio, e parecer sob n° 10, com a condição de que o Tesouro se encarregaria de pôr em Londres os fundos precisos, não aceitou depois as modificações propostas no meu Aviso de 12 de Março (nº 11) conforme declarou em seu Oficio desse mesmo dia (n° 12)” (idem, grifo nosso).
O problema da industrialização do país, no relatório de Souza Franco ao Parlamento, não é apenas subjacente. Ainda que seja possível, hoje, discutir a sua tentativa de solução do problema, ele é explícito. Diz, sobre os bancos que autorizara o funcionamento:
“Todos estes bancos tiveram por motivo de sua aprovação a satisfação de necessidades da agricultura, comércio e indústrias de localidades, onde ou não havia estabelecimentos de crédito, como em Porto Alegre, ou existiam com forças tão limitadas, que nem ao próprio comércio forneciam os meios de que precisava para suas transações, ficando a agricultura e mais indústrias privadas do adiantamento de capitais necessários ao desenvolvimento de seus trabalhos” (idem, p. 5).
Ou:
“… o Governo, usando da autorização que lhe conferistes para alterar a Tarifa [alfandegária], julgou conveniente aplicar também a isenção, pelo Decreto de 27 de Março já citado, ao carvão mineral ou de pedra de todas as qualidades, que tanto auxilia as máquinas, favorece o progresso da indústria, e facilita as comunicações pelas vias terrestres e marítimas – com reconhecida vantagem para as transações comerciais, para as relações interprovinciais, e para a ação administrativa” (idem, p. 39).
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Como já mencionamos, apesar de ser clara a origem da crise de 1857, Torres Homem atribuiu a responsabilidade por ela à política de Souza Franco – com boa recepção dessas acusações no Paço de São Cristóvão, residência de Pedro II (uma versão sucinta – e apresentada como se fosse realidade – dessas acusações está no livro de Hélio Vianna, Vultos do Império, CEN, 1968, p. 132).
Souza Franco foi substituído no Ministério da Fazenda por Torres Homem – e este por Silva Ferraz.
Como disse um autor – é verdade que republicano, mas que estava bem mais próximo daquela época do que nós – sobre a Lei dos Entraves:
“A reforma bancária de 1860 foi um grande mal diretamente feito ao desenvolvimento econômico do país, quaisquer que fossem os intuitos dos seus autores” (cf. Amaro Cavalcanti, Resenha Financeira do Ex-Imperio do Brazil em 1889, Imprensa Nacional, 1890, p. 128).
A República e a formação do caráter nacional (8)
(continua)
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