CARLOS LOPES
Um historiador republicano sintetizou a situação do Brasil após a quebra econômica de 1864 e o início da Guerra do Paraguai:
- “A crise comercial e agrícola, a baixa do câmbio, a falta de dinheiro, que converte o apóstolo aurista saquarema em papelista, a trocá-la, a vil moeda, por ouro enriquecedor de nossos aliados na guerra, por sua vez intérmina e desanimadora até ao capricho da exterminação do ditador paraguaio, de modo a abrir os ergástulos da paz podre aos condenados, a quem se pedia patriotismo, pedido também aos irmãos escravos, que se libertavam; os matutos algemados e mandados para os matadouros do Paraguai, e uma perseguição política jamais vista, com que os saquaremas agravavam o terror interno; — todos esses cataclismos iam refundir a nação” (cf. Austricliano de Carvalho, “Brasil Colonia e Brasil Imperio”, Tomo II, Rio, 1927, p. 564).
Iriam refundi-la, quase refundá-la. Deodoro não estava errado – nem fazendo blague, o que não era de seu estilo – ao atribuir sua trajetória a Solano López (“… só tive um protetor – Solano López; devo a ele, que provocou a guerra do Paraguai, a minha carreira”). O sequestro do presidente de Mato Grosso, coronel Frederico Carneiro de Campos, e a invasão do Brasil, logo em seguida, tiveram como consequência, pela primeira vez desde a Independência, que brasileiros de todas as partes do país – e de todas as nossas cores humanas – estivessem juntos, para viver ou para morrer.
É isso o que lembra Manuel Querino (o modelo de Jorge Amado para o Pedro Archanjo, de “Tenda dos Milagres”).
Querino, ele próprio um veterano da Guerra do Paraguai, cita, em “Os homens de cor preta na história”, incluído em um de seus livros mais importantes, alguns dos que lá se destacaram por sua coragem, por seu heroísmo.
Por exemplo:
JOSÉ SOARES CUPIM
“Seguiu para a campanha de Paraguai, como segundo cadete-sargento, na primeira companhia de ‘Zuavos Baianos’. Ali se portou com patriotismo e valor nunca desmentidos pelo povo baiano, em defesa dos brios nacionais. Era sempre preferido para comissões de reconhecimento, nas avançadas do corpo do Exército em que servia.
“Certa ocasião, exasperou-se com a incumbência e bradou: ‘Porventura sou eu a fera do Exército destinada às posições mais arriscadas?’. ‘Não’, respondeu-lhe o ajudante do Quartel-General, que lhe transmitira a ordem, ‘Vossa senhoria é um oficial de valor provado no campo de batalha. Daí, a confiança de seus superiores’.
“Foi elogiado diversas vezes em ordem do dia, pela correção com que se portava nos ataques. Obteve a patente de capitão conquistada por acessos, as medalhas do Exército brasileiro e argentino e o diploma de cavalheiro da Ordem de Cristo.
“Faleceu, terminada a campanha, já de volta á terra natal” (cf. Manuel Querino, “A Raça Africana e os Seus Costumes”, Progresso, Salvador, 1955, p. 168).
Ou:
MARCOLINO JOSÉ DIAS
“Declarada a guerra do Paraguai, tinha o posto de sargento num dos batalhões da Guarda Nacional. Organizou a segunda companhia de ‘Zuavos Baianos’ e seguiu para a campanha como tenente comandante da dita companhia.
“Foi sempre elogiado por seus superiores pelo sangue frio e bravura com que se portava nos combates. Nestas condições, coube-lhe a glória de fincar o pavilhão brasileiro na tomada do forte de Curuzu, em 3 de Setembro de 1866, bradando com entusiasmo: ‘ESTÁ AQUI O NEGRO ZUAVO BAIANO’.
“Obteve por essa ocasião a patente de capitão e o título de cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, a mais nobre do império” (idem, pp. 169-170, maiúsculas no original).
O Exército acabara com unidades segregadas – isto é, compostas somente por negros ou somente por brancos – em 1831. Abolira até mesmo a informação “cor” em seus registros, para dificultar a identificação de escravos que fugiam e se tornavam soldados. Essa política levou ao fim da unidade dos Zuavos Baianos, que foram, em seguida, designados para outras unidades.
Então, como, depois das trincheiras, da cólera, da varíola, do sangue vertido no Paraguai, de volta ao Brasil, suportar aquelas tergiversações da monarquia, que eram um modo de não sair do mesmo lugar, aquela miséria e ignorância, misturadas a uma distribuição de títulos de nobreza inventados, quase todos perfeitamente ridículos, jogados “no avanço”, como doces para crianças no dia de São Cosme e São Damião?
Como aceitar a escravidão depois da guerra, onde a vida de um dependia do outro – fosse negro, branco, índio, mulato ou caboclo?
Os 19 anos que vão do final da Guerra do Paraguai até a Proclamação da República, são, assim, anos de agonia insuportavelmente lenta da monarquia – mas, também, anos em que se desenvolve, como nunca, o nosso caráter nacional, exatamente pela luta contra a monarquia e a sua base, a escravidão.
Tem-se a impressão muitas vezes, lendo os debates parlamentares dessa época, que o arcabouço político-jurídico do país deixou de ter relação com a realidade.
Machado de Assis, em seu comentário, hoje bastante citado, no “Diário do Rio de Janeiro”, escreveu:
“Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco.”
Entretanto, esse comentário foi publicado em dezembro de 1861. Antes, portanto, da “quebra do Souto” (1864) e da Guerra do Paraguai (1864-1870).
Depois disso, tudo se tornara muito mais estranho, mais absurdo, no “país oficial”.
Geralmente se apresenta, como exemplo da falta de vínculo com a realidade, a que chegou a monarquia, o famoso baile da ilha Fiscal, celebrado a 9 de novembro de 1889, oficialmente em homenagem aos oficiais chilenos do navio “Almirante Cochrane”.
O que é justo. Basta consultar o que foi servido nessa festa:
“três mil sopas de vinte e duas qualidades, cinquenta peixes grandes, oitocentas latas de lagosta, oitocentos quilos de camarões, cem latas de salmão, três mil latas de ervilhas, mil e duzentas de aspargos, quatrocentas saladas diferentes, duzentas maioneses, oitocentas latas de trufas, doze mil frituras, três mil e quinhentas peças de caça miúda, mil e quinhentas costeletas de carneiro, mil e trezentos frangos, duzentas e cinquenta galinhas, quinhentos perus, oitocentos inhambus, cinquenta macucos, trezentos presuntos, sessenta e quatro faisões, oitenta marrecos, doze cabritos, seiscentas galantinas, trezentos pudins, oitocentos pratos de pastelaria, quatrocentos pratos de doces, quatrocentos pratos de fios de ovos, quinhentas gelatinas, vinte mil sanduíches, quatorze mil sorvetes, – tudo isso regado por dez mil litros de cerveja, vinte caixas de vinho branco, oito caixas de Moscatel, quarenta caixas de Bordeaux, trinta de Borgonha, vinte de Madeira, sessenta de Porto, oitenta de champanha, dez de Tokay, dez de vermute, oito de licores, oito de conhaque e cem de águas minerais” (cf. Raimundo Magalhães Júnior, “Deodoro, a Espada Contra o Império”, Vol. II, CEN, 1957, p. 42).
O cardápio distribuído aos participantes era uma obra suntuosa com 13 páginas (v. o cardápio da ilha Fiscal, na Biblioteca Nacional).
Tudo isso foi publicado pelos jornais em uma “época de vida dura para o povo e de salários miseráveis, que podem ser perfeitamente avaliados pelo ínfimo soldo dos militares. ‘Um soldado, – dizia, em editorial, o ‘Correio do Povo’, – tem o soldo diário de 120 réis! Um voluntário tem a gratificação de 60 réis. Um sargento de infantaria tem o soldo diário de 110 réis quando engajado e 55 réis quando voluntário!’ A situação da tropa era de penúria e a da própria oficialidade não era de abastança” (idem).
Quando o desrespeito é muito grande, ele fica na memória – inclusive das gerações futuras. Sobretudo quando o castigo também já chegou. Quase 80 anos depois, Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau terminariam o samba-enredo da Império Serrano (“Cinco Bailes da História do Rio”) com os versos:
Ao erguer a minha taça
Com euforia
Brindei aquela linda valsa
Já no amanhecer do dia
A suntuosidade me acenava
E alegremente sorria
Algo acontecia
Era o fim da monarquia
No palácio da ilha Fiscal, recém reformado. “alguns vitrais traziam a imagem de Isabel como imperatriz do Terceiro Reinado” (cf. Mary del Priore, “O Castelo de Papel“, Rocco, 2013).
Como sabem os leitores, na mesma noite em que foi realizado o baile na ilha Fiscal, Benjamin Constant, substituindo Deodoro, que estava acamado, reuniu a oficialidade republicana no Clube Militar.
Depois, no seu ataque à República, publicado no exílio, o então presidente do Conselho de Ministros, Afonso Celso, visconde de Ouro Preto, disse que foi informado sobre a reunião da oficialidade. Quanto ao baile, ele não faz comentário, mas diz que “Sua Alteza Imperial” – a princesa Isabel – iria oferecer um jantar aos oficiais chilenos. Mas esse jantar, marcado para o dia 17, não aconteceu, pois a República foi proclamada no dia 15. Ouro Preto esqueceu rapidamente sua participação no baile da ilha Fiscal, oferecido por ele no dia 9, em nome do governo, com a ideia estúpida de que a ostentação alucinada reforçaria a monarquia, por mostrar o seu poder (v. visconde de Ouro Preto, “Advento da Dictadura Militar no Brazil”, Imprimerie F. Pichon, Paris, 1891).
***
Porém, não é somente nesse terreno – a insensibilidade à miséria do povo, no momento em que, inclusive, uma parte dele acabara de sair da escravidão – que se manifestava o mundo paralelo da monarquia, aquele que somente no infinito (talvez) se encontrava com o mundo real.
Existe algo mais fora da realidade do que a dissolução da Câmara em 15 junho de 1889, a convocação de eleições para 31 de agosto, e a vitória (evidentemente) do Gabinete Ouro Preto, que elegeu 130 deputados contra 9 da oposição – e, entre estes, apenas 2 republicanos?
Essas eleições, somente para frisar, ocorreram dois meses e meio antes da Proclamação da República, quando, então, ninguém, absolutamente ninguém, apareceu para defender a monarquia – nem mesmo o barão de Ladário, o único ferido no dia 15 de novembro, mas não porque estivesse defendendo a monarquia; apenas, não queria ser preso.
O sistema eleitoral havia descolado completamente da realidade; seu resultado já não era mais uma representação de qualquer parcela da sociedade, seja lá em que grau fosse essa representação. Era apenas o excremento da cabala liberal.
O que era percebido, inteiramente, pelos republicanos.
Por exemplo, o então principal redator do “Diário de Notícias”:
“Os governos, entre nós, vivem das aparências, em tudo. O próprio sistema político, que nos rege, na sua realidade prática, é apenas um regímen de fórmulas convencionais sem expressão, sem sinceridade, sem vida. Uma impostura de constitucionalismo abriga o arbítrio imperial. Um aparato de normas parlamentares dissimula a tirania violenta, ou corruptora, exercida sobre as funções representativas do eleitorado. Uma hipocrisia de governo de gabinete assegura, em vez da ação política dos partidos sobre a coroa a benefício do país, a exploração dos partidos pela coroa em proveito da corte. Simulacros de programas traduzem, não as condições ditadas por correntes de opinião popular ao poder moderador, mas encenações de conchavos entre o poder moderador e as ambições dos caudilhos políticos. Tudo se acha invertido sob exterioridades especiosas. Não admira, pois, que o ministério evocado por el-rei para salvar a monarquia das grandes águas republicanas, triunfe satisfeito, delirante, inebriado ante a vitória” (Rui Barbosa, “A Eleição”, in Queda do Império, O.C., vol. XVI, t. 5, p. 95).
Além dessa dimensão delirante da vitória dos liberais do visconde de Ouro Preto, a consequência, inelutável, também era clara:
“Para vencer esta eleição, e para levar de assalto a vindoura, lançaram-se às urtigas os princípios mais caros e os mais sagrados compromissos do partido liberal. O tufão da derrubada administrativa passou por sobre a província, como está passando pelo império, com a energia dos bons tempos de outrora, quando as reações conservadoras o sopravam com as bochechas inchadas pela confiança absoluta de Sua Majestade. A ilegalidade falaz dos auxílios à lavoura estendeu a sua rede de ouro sobre a mendicidade das consciências. Os amigos professos da democracia, inflamados ontem contra a profusão dos títulos de nobreza esparsos pelo ministério de 10 de março, abriram em grande, com gigantesca largueza, a maior forja, que já se viu nesta terra, de brasões heráldicos, rasteira moeda de chumbo das simpatias do império em liquidação. Os que repudiavam a guarda nacional como instrumento de opressão das classes laboriosas e sedução à vaidade das influências eleitorais, empreendem-lhe a reorganização, anunciada pomposamente em pelotões de novos tenentes-coronéis. Os advogados calorosos da liberdade de reunião e da liberdade de imprensa decretam a exumação oficial dos mais velhos sofismas contra a independência do jornalismo e da tribuna popular. Eis os destroços de ideias, de crenças, de esperanças liberais, que rejuncam a estrada, por onde o gabinete de 7 de junho semeia a colheita de seus louros. Se, para os governos de reforma e regeneração, a moralidade dos meios domina a apreciação dos resultados, vitórias há mais dolorosas que revezes; e esta é uma delas: porque, no campo onde se conquistou, o inimigo contra o qual combatia o governo, parece ter sido menos o partido conservador e o partido republicano do que a honra do partido liberal” (idem, p. 97).
Afonso Celso, aliás, visconde de Ouro Preto, conseguira, com essa vitória, liquidar com as últimas esperanças, com as últimas ilusões, que se pudesse ter, não apenas no Partido Liberal, mas na monarquia.
Dois meses e meio depois dessa estupenda vitória, a monarquia caiu, ao modo de um fruto que apodrece na árvore.
***
Já nos referimos, antes, a como eram as eleições sob a monarquia, perto das quais as eleições da República Velha parecem democráticas e civilizadas. É verdade que, em geral, não temos consciência de como o Brasil era diferente – sobretudo, de como era pouco habitado em relação aos tempos atuais.
Ao ler o trabalho de Tristão de Alencar Araripe sobre a Guerra dos Farrapos (“Guerra Civil do Rio Grande do Sul”) ou aquele do general Tasso Fragoso (“A Revolução Farroupilha”), é possível espantar-se – foi o nosso caso – com a estimativa que esses autores apresentam para a população gaúcha no início (1835) daquele conflito: 142 mil pessoas.
É como se aqueles 10 anos de guerra civil tivessem ocorrido em um lugar diferente do Rio Grande do Sul, um lugar quase deserto – e, de certa forma, é verdade, mas era o Rio Grande do Sul daquela época.
Isso também ocorre muito depois – e em outros lugares.
Em 1877, o Partido Republicano lançou, pela primeira vez, um candidato a deputado geral (a federação, no Império, não existia, portanto, não havia deputado federal).
Foi em São Paulo e o candidato, o ex-conservador Américo Brasiliense, foi muito bem votado.
Teve 556 votos. O candidato mais votado teve 846 votos. A votação de Américo Brasiliense – que, na República, seria governador de São Paulo – foi superior àquela dos candidatos liberais, desse e de outros distritos de São Paulo, com uma exceção: Martim Francisco de Andrada – não o irmão, mas o neto de José Bonifácio.
As eleições, nessa época, antes da incrível reforma eleitoral dos liberais (1881), era indireta.
Certamente, o problema principal do sistema eleitoral dessa época – e, pior, depois da reforma de Saraiva, em 1881 – era a exclusão da maior parte da população, a começar pelo critério de renda (não tinha direito a voto quem não comprovasse uma renda anual de, pelo menos, 200 mil réis), de sexo (as mulheres não votavam) ou de classe (os escravos eram 1.715.000 em 1864; dez anos depois eram 1.540.829; em 1884, 1.240.806, segundo estimativa em “500 Anos de Povoamento”, IBGE, Rio, 2007, p. 91).
Somente de passagem, frisemos que a população não-branca, no primeiro Censo realizado no Brasil, em 1872, era amplamente majoritária:
CENSO DE 1872
- TOTAL DE HABITANTES: 9.930.478;
- Pardos: 4.188.737;
- Pretos: 1.954.452;
- Brancos: 3.787.289.
Os indígenas não foram recenseados nesse primeiro Censo.
Os pardos e pretos constituem, portanto, 61,86% da população.
***
O outro problema democrático – o maior deles – é que, como já vimos, o resultado das eleições, não importa qual fosse, não precisava ser respeitado pelo imperador.
A isso se chamava “poder moderador”.
A introdução desse poder – além do Executivo, Legislativo e Judiciário – era, exatamente, a diferença essencial entre o projeto de Constituição discutido antes do fechamento da Constituinte por Pedro I, elaborado por Antonio Carlos de Andrada, e o texto outorgado em 1824.
Em sua biografia de Pedro I, Octávio Tarquínio de Souza faz uma interessante discussão sobre a origem dessa ideia – tirada, ao que parece, de Benjamin Constant (não o militar e matemático brasileiro, mas o teórico francês da monarquia constitucional) em que o rei, detentor do “poder neutro”, vigia os outros poderes para que não cometam abusos.
Resumidamente, é possível dizer que o “poder moderador” é uma conciliação com o absolutismo ou uma sobrevivência do absolutismo. Na monarquia que aqui, supostamente, era tomada por modelo, a da Inglaterra, esse poder jamais existiu. Aliás, com exceção do Brasil – e de Portugal, na brevíssima, quase natimorta Constituição de 1826, outorgada pelo mesmo Pedro que outorgou a brasileira – parece que esse “poder” não existiu em lugar algum, em Constituição alguma.
Já nos referimos ao motivo: toda a essência da monarquia constitucional está em limitar o poder do rei, não em permiti-lo ou legalizar o absolutismo.
Mas, então, por que, no Brasil, depois da revolução da Independência, esse poder, que, na prática (e até na teoria, como veremos), colocava o imperador acima de qualquer outro poder, existiu durante 65 anos (1824-1889)?
Porque ele condensava o poder do imperador como representante dos senhores de escravos. O “poder moderador” colocava o imperador acima dos partidos escravistas – e suas contradições, internas e externas, que eram grandes, aliás, eram enormes.
Este é o motivo pelo qual uma Constituição outorgada regulou durante tanto tempo o país, sobrevivendo largamente ao seu outorgante, derrubado em 7 de abril de 1831.
Não é pouco importante que na junta que sucedeu ao afastamento de Pedro I – a Regência Trina Provisória -, ao lado do general Francisco de Lima e Silva e do senador Vergueiro, estivesse o principal redator da Constituição outorgada por Pedro I após o fechamento da Constituinte, Joaquim Carneiro de Campos, marquês de Caravelas, “por votação especial e quase unânime da assembleia geral dos representantes da nação” (cf. S.A. Sisson, “Galeria dos Brasileiros Ilustres”, vol. II, ed. cit., p. 203).
É ao “poder moderador”, do ponto de vista constitucional, que se deve o que foi chamado, com bastante razão, ditadura imperial ou poder pessoal do imperador.
O texto da própria Constituição outorgada é claro:
“Artigo 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da Nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos.
“Artigo 99. A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma.”
Na interpretação do maior jurista do Império, Pimenta Bueno, marquês de São Vicente:
“O Poder Moderador, cuja natureza a Constituição esclarece em seu artigo 98, é a suprema inspeção da Nação, e o alto direito que ela tem, e que não pode exercer por si mesma, de examinar como os diversos poderes políticos, que ela criou e confiou a seus mandatários, são exercidos” (cf. José Antonio Pimenta Bueno, “Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do Imperio”, J. Villeneuve e C., 1857, p. 204, grifo nosso).
Pimenta Bueno podia ser um áulico – e era – mas não um imbecil. Nem lhe faltava erudição. Sabia, perfeitamente, que o resto do mundo dispensava aquela maravilha que estava defendendo.
Como ele se sai dessa dificuldade? Assim:
“Este [o Poder Moderador], assim como os antecedentes poderes, existem sempre em toda a associação nacional, não diferem senão em ser o seu exercício conjunto com o de outro poder, ou separado, sujeito a condições mais ou menos restritas, ou entre si diferentes. O poder moderador em quase todas as constituições faz parte do poder executivo” (cf. Pimenta Bueno, op. cit., p. 31, grifo nosso).
Em suma, o “poder moderador” existe mesmo quando não existe – pois a discussão não é sobre determinada função do Estado, mas sobre a necessidade de um Poder. Nesse caso, um poder exercido somente por uma pessoa, apenas por hereditariedade, vitaliciamente acima dos outros Poderes.
***
O poder moderador, tal como exercido por Pedro II, com a dissolução periódica da Câmara depois da substituição dos partidos no governo (algo que já foi chamado de “gangorra”), é tratado, pela maioria dos trabalhos historiográficos, como um estrito dispositivo da Constituição de 1824. Alguns o acham injusto, abusivo, mas, mesmo assim, um dispositivo constitucional.
Portanto, Pedro II estaria em seu pleno direito, garantido pela Constituição, ao dissolver a Câmara – o que fez, como já dissemos, 11 vezes durante o seu reinado.
Mas isso não é verdade.
Apesar do “poder moderador”, em si, ser uma aberração, nem a Constituição de 1824 permitia o uso que dele foi feito.
A questão foi levantada, já em 1843, pelo deputado Antonio Pereira Rebouças, pai de André Rebouças, e um daqueles mulatos e negros que conseguiram salvar o segundo reinado da completa mediocridade.
[NOTA: Para evitar mal entendidos: também existiram, no Império, evidentemente, brasileiros notáveis que eram brancos – e já citamos alguns; entretanto, em uma sociedade escravagista, onde, como escreveu Luiz Gama, “em nós até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime”, o mais notável é que tenha existido um Machado, um Rebouças, um Montezuma, um Luiz Gama, um Patrocínio. Voltemos ao deputado Rebouças.]
O argumento de Rebouças, formulado nos termos jurídicos da época, contra o uso específico do “poder moderador” por Pedro II, era o próprio texto da Constituição outorgada por Pedro I em 1824:
“Artigo 101. O Imperador exerce o Poder Moderador
“V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua” (grifo nosso).
Pedro II, portanto, não podia – ou não poderia – dissolver a Câmara de acordo com sua opinião, gosto ou conveniências. Era necessário um elemento objetivo: uma situação que “exigisse a salvação do Estado”, ou, em outras palavras, em que o Estado estivesse em perigo.
Diz Rebouças:
“… o Poder Moderador somente pode dissolver constitucionalmente a Câmara temporária nos casos em que o exigir a salvação do Estado” (Antonio Pereira Rebouças, Recordações da Vida Parlamentar, Volume I, Discurso de 21 de abril de 1843, Laemmert, Rio, 1870, p. 543, grifo nosso).
Logo, as dissoluções da Câmara, realizadas por Pedro II, eram inconstitucionais.
Rebouças também, embora tenha se concentrado no uso do poder moderador, era contra todo o “poder moderador”:
“Quanto a mim, entendo que são manifestamente repugnantes à autoridade deste poder, que tem por fim promover em geral a execução das leis; acho-lhe, sem dúvida, repugnantes: 1º, a atribuição de dissolver a Assembleia Geral quando o bem da pátria exigir; 2°, a de demitir ad nutum os próprios ministros que exercitam o poder executivo; 3º, a de perdoar ou moderar as penas, etc.” (Rebouças, Discurso na Câmara, 1º de setembro de 1832, op. cit., p. 141).
Era um poder para fazer com que as leis fossem exercidas. Para fazer isso, ele desrespeitava todas as outras leis.
Esse último discurso foi antes da maioridade de Pedro II, quando havia somente um ano que seu pai fora derrubado, e se discutia, na Câmara, uma reforma constitucional.
Mas o “poder moderador” ficou na Constituição – era, digamos assim, a estabilização do escravismo, do poder dos senhores de escravos. Sem ele – isto é, sem Pedro II como seu representante acima de quaisquer instituições, inclusive acima da Igreja, pois o regime do “padroado” tornava padres e bispos funcionários do Império, essa “estabilização” seria impossível.
Os políticos da monarquia, aliás – talvez com uma exceção: Caxias – eram uma demonstração dessa impossibilidade.
Portanto, o “poder moderador” ficou na Constituição. Doravante, os políticos e jornalistas iriam utilizar esse termo como sinônimo de “imperador” ou de “poder pessoal” do monarca. Ao ler a íntegra do artigo 101 da Constituição, vemos que isso corresponde a uma realidade não apenas teórica (como no artigo 98, que transcrevemos acima, e no comentário de Pimenta Bueno, também acima). Era uma realidade prática, ou seja, política:
“Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador
“I. Nomeando os Senadores, na forma do Art. 43.
“II. Convocando a Assembleia Geral extraordinariamente nos intervalos das Sessões, quando assim o pede o bem do Império.
“III. Sancionando os Decretos, e Resoluções da Assembleia Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.
“IV. Aprovando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciais: Arts. 86, e 87.
“V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua.
“VI. Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado.
“VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.
“VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas aos réus condenados por Sentença.
“IX. Concedendo Anistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado.”
Faltava, provavelmente, um inciso dizendo que o imperador podia fazer chover – mas talvez fosse demasiado incômodo para ele, com as secas que logo assolaram o Nordeste.
A República e a formação do caráter nacional (9)
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