CARLOS LOPES
Jovens que leram meu texto São Borja e o caráter popular da República: uma introdução, observaram que, nas escolas, é geral a versão de que a República – ou a Proclamação da República – foi um “golpe”, e um “golpe elitista”.
Como será possível que essa versão – de resto, falsa, mentirosa – tenha se estabelecido no sistema escolar, desde o ensino superior até aos níveis mais básicos de educação?
Isto torna-se mais compreensível quando percebemos que essa narrativa não diz respeito, fundamentalmente, aos acontecimentos históricos – isto é, aos fatos do passado – que deram origem à República (e que foram consequência dela, até a Revolução de 1930).
Certamente, em caráter explícito, é a Proclamação de novembro de 1889 que é acoimada de “golpe” e “golpe elitista”. Mas o que se quer com isso é estigmatizar a revolução nos dias de hoje, a revolução de que precisamos hoje, a revolução brasileira, a revolução nacional e democrática que – para usar a expressão de um líder e teórico do século XX – é parte do processo da revolução socialista.
Assim, são os mesmos que maldizem a Revolução de 30, relegando-a indevidamente para o baú dos trastes oligárquicos, aqueles que tentam pespegar a pecha de golpe na Proclamação da República.
A revolução, para esses, é sempre um “golpe”. Por isso, jamais deveria ser realizada ou tentada. Aliás, até a Revolução Inglesa – a de Cromwell – e a Francesa – a de Robespierre – são, para esses, e nessa perspectiva, “golpes”.
Voltemos à nossa República.
Toda a nossa tradição histórica é republicana.
Como demonstrou um famoso republicano, ainda antes da Proclamação:
“… nós somos o partido mais antigo da pátria; somos a vanguarda da nação brasileira, representamos as suas tradições mais queridas; — a ideia da Independência primeiro germinou em 79 no cérebro do nosso Tiradentes; a reação contra o despotismo imperial, em 31, se filia à nossa história; e, em que pese aos maus, de nós surgiram os primeiros lutadores desse 88, que libertou a raça irmã, escravizada infeliz!
“O sangue dos mártires consagra a nossa atitude; consagra-a a dedicação de muitos contemporâneos; consagram-na as necessidades unânimes da nação, de combinação de ordem e de progresso.
“Foi um nosso correligionário, Felipe dos Santos, quem em 1720, na província mineira, foi esquartejado por pedir a liberdade de sua terra; foi um nosso correligionário, Tiradentes, o abnegado sublime, a alma de profeta, de estadista em germe, quem subiu ao patíbulo, legando-nos o eterno exemplo da dedicação cívica. Foram nossos correligionários Domingos Martins e Teotônio Jorge, que, em 1817 no Norte, pagaram em bárbaras execuções a audácia da aspiração da Pátria Nova; nossos correligionários o frade ilustre Joaquim Caneca, e o preto ilustríssimo Bezerra Cavalcanti, que, ainda em 24, ‘nos verdes mares bravios’ do setentrião, fecundaram com o sangue o solo nacional; correligionários os que, no decênio glorioso de 35 a 45, numa luta de heróis, vibraram nas coxilhas rio-grandenses os ecos do retintim das espadas e os gemidos da miséria e da fome; correligionários os que, em S. Paulo e em Minas, em 42, pediam, enfim, a reversão de um trono; foi um nosso correligionário, e correligionário não menos distinto, Nunes Machado, quem, com seu corpo heroico, banhado em sangue diante dos muros da cidade pernambucana, nos lançou o último protesto armado contra a submissão à monarquia, e a última consagração sanguinolenta à luta em que nos empenhamos nós agora” (Silva Jardim, “A República no Brasil”, conferência proferida a 12 de agosto de 1888 no Salão da Sociedade Francesa de Ginástica, Rio, Imp. Mont’Alverne, 1888).
A monarquia foi, portanto, um corpo estranho em nossa História. Muitos escrevem, hoje, que o objetivo da monarquia foi manter a unidade nacional, como se esta não pudesse ser mantida sob uma república… O próprio José Bonifácio, depois de sua volta ao Brasil, e reconciliação com D. Pedro I, levantou essa tese – mas essa era a forma de justificar as suas ações, talvez até diante de si mesmo.
A rigor, a função da monarquia foi manter os privilégios da classe proprietária de terras e de escravos. Com isso, sob a monarquia, o Brasil foi afundado em décadas de estagnação, com o intervalo algo turbulento da Regência, chamada por alguns, com justiça, de “quase república”.
A Maioridade (1840) deu fim a esse intervalo revolucionário, cujo último episódio foi a Revolução Praieira de 1844.
Um historiador – talvez o nosso maior historiador – caracterizou bem o período imperial:
“A ideia de fazer a separação mantendo a Monarquia e até mantendo o titular – o mesmo mandante das violências contra os rebelados nordestinos – era a forma com que a classe dominante assegurava os seus privilégios, inclusive os fundamentais: o escravismo e o latifúndio. Esses privilégios foram rigorosamente mantidos pelo Império: o Império foi o escravismo e o latifúndio intocados. Tocá-los foi a ideia que os rebelados dos fins do século XVIII e início do século XIX defenderam. Por isso foram sacrificados. Pagaram com a vida essa ideia maldita, de tocar nas estruturas” (Nelson Werneck Sodré, A República (uma revisão histórica), Editora da Universidade, UFRGS, 1989, pp. 48-49).
E, mais adiante:
“Ela [a classe dominante de senhores de terras e de escravos] limitou a autonomia à separação entre a colônia e a metrópole. E deteve qualquer ultrapassagem desse limite que lhe era conveniente. O problema da liberdade estava, para a classe dominante, fora de cogitações e deveria ser encarado como subversivo, passível de punição. Assim foi estruturado o Império. O Império surgiu das necessidades da classe dominante de senhores de terras e de escravos, na preservação de seus privilégios” (idem, p. 52).
O que não quer dizer que o povo não tenha participado dos episódios que redundaram na nossa Independência, em 1822. Como já vimos em outro lugar, a participação popular foi intensa – o que se expressou, inclusive, na cor daqueles que se bateram pela Independência (v. HP 27/08/2022, Os Andradas e outros heróis da Independência do Brasil).
Mas, se o objetivo da monarquia era limitar a liberdade – ou seja, a democracia, a participação popular – como se explica essa participação na luta pela autonomia em relação a Portugal, registrada por todos os cronistas e todas as testemunhas da época?
O povo sempre participa dos movimentos, mesmo aqueles que não são hegemonizados por ele, desde que sejam movimentos que abram caminhos para outros em que ele poderá ter a hegemonia. Dito de outra forma: mesmo que a etapa de hoje não seja liderada por ele, o povo irá à luta pela consecução dessa etapa, se ela abrir caminho para outra, em que ele poderá ter mais espaço, senão a hegemonia.
Este é o caso, por exemplo, da Independência em relação às revoluções republicanas que se encerram com a Praieira e à própria República.
Este é também o caso da própria República em relação à Revolução de 1930.
Voltemos ao Império.
A partir de 1850, com o fim do tráfico transatlântico de escravos, os capitais até então empregados nessa horrenda (como chamou Castro Alves) atividade são deslocados para outros setores – a agricultura, mas também a indústria.
Não pretendemos aqui lembrar em detalhe os empreendimentos de Mauá e a ascensão da lavoura cafeeira. O importante é que as relações capitalistas se expandem pelo país, mais ainda depois da Guerra do Paraguai, e isso torna a monarquia, cada vez mais, um trambolho institucional insustentável.
Lembremos que foi no mesmo ano em que a Guerra do Paraguai terminou (1870) que os republicanos lançaram o seu manifesto.
Ao mesmo tempo, a própria base econômica do Império, o escravismo, entrava em decadência irreversível.
“O crescimento da população varia em sentido inverso com o do número de escravos entrados. Em 1889, no fim do segundo império, o Brasil conta com cerca de 14.000.000 de habitantes. Triplicara a população. O número de escravos vai descendo, sempre. Se são mais de dois milhões, em 1840, já em 1871, quando passa a lei do ventre livre, são apenas 1.700.000. Dois anos depois seriam 1.584.700. Em 1884, desceria a estimativa para 1.133.200. E, em 1887, há 733.500 escravos. No momento da libertação completa, as estatísticas avaliavam em menos de 600.000 os negros em estado de servidão” (Nelson Werneck Sodré, Panorama do Segundo Império, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 82).
Essa situação seria chamada de “escravismo tardio” por Clóvis Moura (v. Dialética Radical do Brasil Negro) e de “desescravização” por Décio Freitas (v. O Escravismo Brasileiro).
A rigor, isso é a decadência econômica do escravismo, que tinha também (ou se refletia em) um lado político: o movimento abolicionista, que empolgava não somente os republicanos, mas até algumas alas do monarquismo (por exemplo, Joaquim Nabuco e André Rebouças).
A República, portanto, desde 1870, e principalmente na década de 80 do século XIX, passa a ser uma aspiração geral da nação (v. nosso texto, citado acima, HP 03/01/2024, São Borja e o caráter popular da República: uma introdução).
Mas por que é assim?
Muitos apontaram a crise que era produto do choque das instituições atrasadíssimas (isto é, da monarquia escravista) com o conteúdo econômico do país (isto é, as relações capitalistas, que tinham superado as relações escravagistas e passado a predominantes).
Isso é inteiramente verdadeiro. Mas como se manifestava, no sentimento e compreensão dos brasileiros da época?
A melhor caracterização desse sentimento e compreensão foi esboçada pelo mesmo Silva Jardim, já citado por nós: a monarquia era a ditadura dos senhores de terras (e, antes de maio de 1888, dos senhores também de escravos), exercida pelo imperador e pela princesa.
Em discurso no Rio de Janeiro, dizia Silva Jardim, em agosto de 1888:
“Que governo é o nosso, realmente ?
“Segundo a afirmação geral, somos governados pela monarquia dita constitucional, fusão híbrida entre o privilégio de direito divino e o princípio da soberania popular.
“Poder Legislativo! Onde existe poder legislativo, senhores, num país em que, além de intervir o governo em todos os pleitos eleitorais, tem o chefe do Estado, pela carta constitucional, o direito de dissolver as câmaras, sempre que o julgar para bem do Estado?!
“Fazei quantas eleições quiserdes, mesmo com plena liberdade íntima e exterior de voto, escolhendo retamente os vossos eleitos, que, se o chefe supremo da nação, árbitro único de sua felicidade, julgar bom dissolver a reunião dos vossos representantes, poderá fazê-lo sem exorbitar da lei, baseado na carta fundamental do país. Quem, pois, é o legislador, senão aquele de quem todos os legisladores dependem? Mas esse poder de dissolver as câmaras eleitas pelo povo é atribuição do poder moderador; mas o poder moderador é exercido exclusivamente pelo Imperador, e o poder exclusivo de um homem é a monarquia absoluta.
“Poder executivo! Onde existe ele num país em que o chefe do Estado nomeia e demite livremente os seus ministros?! Qual vontade representam esses ministros? A da nação? Vendo-se os simples homens saídos do povo, de sangue vulgar, que não azul, pode-se à primeira vista supô-los tais. Mas não, eles representam unicamente a vontade do Imperador, e tanto que, quando lhe desagradam, são demitidos; nem mesmo o chefe do Estado tem obrigação de escolhê-los no Parlamento, dentre os eleitos do povo; se o Imperador quiser escolher um ministro mentecapto, um louco, o que não seria muito estranhável, poderá fazê-lo; ministro já houve, embora homem inteligente, que nem juiz de paz na sua paróquia tinha sido: nenhum cargo de eleição popular exercera.
“Mas o poder que escolhe e demite livremente ministros, é o poder de um homem — monarquia absoluta.
“Poder judiciário?! Onde se o viu em país, em que, ao lado do direito de nomeação que tem o Imperador acerca de todos os cargos da magistratura propriamente dita, cabe-lhe a atribuição de dispensar a própria lei, de revogar a própria legislação criminal?
“Vós vos reunis, Cidadãos, em tribunal de júri; julgais com a máxima retidão um homem; conheceis do fato; dais a vossa sentença; é a expressão da justiça; nem uma linha mais, nem uma linha menos, nessa sentença; pois bem, o Imperador pode destruir a vossa vontade, perdoando o criminoso, ou minorando-lhe o castigo, destruindo mesmo de fato uma disposição penal.
“Mas assim o fez pelo poder moderador, e o poder moderador é o poder de um homem, e o poder de um homem é a monarquia absoluta.
“O poder moderador… que digo! Senhores, poder imperador, poder absoluto, exclusivo, único, poder dominador!
“Nesse país o chefe do Estado tudo administra, tudo governa: como poder moderador, ele escolhe senadores, convoca a assembleia geral extraordinariamente, sanciona leis, prorroga ou adia a assembleia geral, dissolve a câmara dos deputados, nomeia e demite livremente ministros, suspende magistrados, perdoa e modera as penas, concede anistia; como chefe do poder executivo, convoca a assembleia geral ordinária, nomeia bispos, e provê os benefícios eclesiásticos, nomeia magistrados, provê empregos civis e políticos, nomeia e remove comandantes da força de terra e de mar, nomeia embaixadores e mais agentes diplomáticos e comerciais, dirige as negociações políticas com as nações estrangeiras, faz tratados de aliança, de subsídio e de comércio, declara a guerra e faz a paz, concede títulos, honras, ordens e distinções, expede decretos, aplica os rendimentos, concede ou nega beneplácito aos decretos dos concílios, letras apostólicas e constituições eclesiásticas. Vede, Senhores, a carta constitucional política do país; segundo ela tudo pode fazer o monarca. Intervém até nos negócios do Papa no país, e nesses negócios com ele colabora. É até meio papa” (Silva Jardim, “A República no Brasil”, conferência proferida a 12 de agosto de 1888 no Salão da Sociedade Francesa de Ginástica, Imp. Mont’Alverne, 1888, Rio de Janeiro).
E sobre o problema econômico da época:
“É certo que possuímos um vasto e belo território; esplêndida natureza, terra úbere, clima quase sempre suave; porém território mal aproveitado, mal dividido, mal administrado, mal representado.
“Não jazem porventura, aí, ainda desconhecidas essas regiões enormes, cuja exploração tanto serviria à riqueza pública? Não jazem ocultos tantos minérios, tantas camadas de matéria prima, preciosa ou bruta, mas sempre útil ao desenvolvimento à indústria, e bem estar ao operário? Não estão os rios desaproveitados para a navegação, abandonados os canais naturais, estragados os portos? Não estão, por falta de ensino agrícola, as matas devastadas?
“Além do desconhecimento das regiões, do estrago dos nossos portos de mar, somos um povo sem indústria fabril e manufatureira quase, exportamos pouco, tudo importamos do estrangeiro; e são-nos desprotegidos os poucos germens de vida industrial.
“É mau o estado da lavoura, sem braços…
“… o proletariado, principalmente nas cidades do Norte, na miséria e com fome, quando um bom sistema de trabalhos públicos poderia tirá-lo desse estado.
“Estamos, sobretudo, paupérrimos! O país deve muito ao estrangeiro, e aos próprios cidadãos; pedindo todos os dias dinheiro emprestado, pagando sempre juros de empréstimo, e nunca podendo quitar-se de grandes obrigações.
“Um país que vive sempre a pedir dinheiro emprestado é um país pobre”…” (idem)
Daí a conclusão de Silva Jardim, que era corrente entre os republicanos – até porque espelhava a verdade:
“Será preciso um dia dizer com franqueza que este Império do Brasil, de que tanto enchemos a boca, é um fetiche de palha, que pode cair ao primeiro empurrão, um pobre e desgraçado país, sem liberdade religiosa e de pensamento, sem instrução, sem administração, sem justiça, e acima de tudo sem dinheiro algum, um pobre diabo que anda a contrair empréstimos diariamente!
“… Nós precisamos, meus senhores, ter a modéstia de dizer que somos muito fracos, uns pobretões…
“Decididamente, cidadãos, é irremediável a situação financeira do Brasil dentro da monarquia; deixai que os pseudo-estadistas se deem tratos à imaginação para o suposto equilíbrio de seus imaginosos orçamentos; não será com as águas do Amazonas, que de um momento para outro pagaremos as nossas dívidas, nem as folhas dos arvoredos correm como cédulas de banco” (Silva Jardim, idem, grifos no original).
Essa situação faz com que os republicanos se aproximem cada vez mais da revolução, como uma necessidade do país. Por isso, quando Rui Barbosa escreve e publica, no Diário de Notícias, o artigo “Plano contra a pátria” (9 de novembro de 1889), o tenente-coronel Benjamin Constant lhe diz:
“O seu artigo de hoje fez a República e nos convenceu da necessidade imediata da Revolução.” (cf. Rui Barbosa, Queda do Império, Obras Completas, vol. XVI, tomo I, p. XIV).
E, realmente, o Exército tornara-se o elemento decisivo da revolução, inclusive antes da Proclamação. A própria Abolição fora decidida pela atitude do Exército – como registrou um historiador reacionário:
“Diante da recusa do Exército em prender negros fugidos, a anarquia se estabeleceu nas fazendas. Os escravos se levantaram; passaram a desconhecer a autoridade dos senhores. Desertavam das senzalas; partiam em massa; cerca de 10.000 desceram as encostas do Cubatão para o asilo de Santos. Outros se faziam conspiradores em conjurações perigosas. Outros, rebelando-se, assassinavam os senhores. Correra mesmo, certa vez, um boato temeroso, que enchera de pavor todo mundo rural: os escravos conspiravam uma sorte de Saint-Barthélemy senzaleiro, em que desaparecia, numa só hecatombe, toda a classe senhorial” (Oliveira Vianna, O Ocaso do Império, ABL, ed. 2006, pp. 63-64).
Da mesma forma, não é por acaso que o discurso de Silva Jardim no Congresso Republicano de São Paulo, na noite de 24 de maio de 1888, intitulou-se A Revolução.
2
É notável que os artigos que compõem Queda do Império, de Rui Barbosa, tenham sido escritos, para o Diário de Notícias, por um homem que, na época, era ainda, segundo suas próprias palavras, “sinceramente monarquista”.
Seu objetivo, ao publicá-los no jornal que dirigia, não era derrubar a monarquia e substituí-la pela república, mas (outra vez segundo suas próprias palavras) “republicanizar a monarquia”, isto é, democratizá-la.
Entretanto, foi inevitável o choque com a monarquia, devido ao atraso incomensurável desta. Aos poucos, torna-se claro para Rui que era impossível reformar o antigo regime, sobretudo com a princesa Isabel – e seu marido, o conde D’Eu – como sucessora.
Aliás, a primeira questão com que Rui se debate, nos artigos dessa época, é a tentativa da monarquia de usurpar a Abolição. Escreve ele:
“A extinção do elemento servil foi estritamente uma conquista popular.
“A coroa não teve nela a iniciativa, nem interferência dominante.
“Não reconhecemos à regência imperial glória, heroicidade, virtude: por isso que não as há em se submeter ao que não podia evitar.
“A Regência cedeu, mas depois de vacilar, e repugnar” (Rui Barbosa, Queda do Império, 03/04/1889, Obras Completas, vol. XVI, t. I, pp. 275-276).
Ou, antes disso:
“A lei de 13 de maio constitui, pois, um troféu revolucionário; troféu em que não há sangue, porque foi arrancado às inconsciências da política imperial, desarmada pela rebeldia incruenta dos escravos, com o apoio da opinião pública e do exército brasileiro. Não representa um benefício dos partidos, nem liberalidade alguma da coroa, mas a mais estrondosa submissão desta à intransigência de forças indisciplinadas e extralegais, assim como a mais inaudita decepção por que aqueles já passaram — um, vendo envolvidos os seus créditos conservadores na mais radical de todas as ousadias, o outro achando-se reduzido a protestar contra uma usurpação, que vinha merecidamente punir-lhe os conluios recentíssimos com o escravismo” (Rui Barbosa, Queda do Império, 10/03/1889, OC, vol. XVI, t. I, p. 36).
A posição de Rui vai se radicalizando contra a monarquia – a monarquia concreta de D. Pedro II -, apesar de continuar, conscientemente, monarquista em geral, ou seja, em teoria:
“Seca, peste e mau governo: três pestes numa só: o desgoverno público.
“Embora! contanto que se amanse a nação, e o exército se amanse. O campo está-se arrasando para a mediocracia geral do absolutismo, que nos há de vir de França, como a língua, a moda e a cozinha. As alturas abatem-se. A liberdade civil perdeu José Bonifácio. O civismo militar perdeu Sena Madureira… e, dizem-nos, agora mesmo, ao cerrar deste artigo, escrito como um pressentimento… o marechal Severiano da Fonseca, fulminado, hoje, ao amanhecer do dia, pela surpresa dos últimos atos do ministério em relação à escola militar” (op. cit., 20/03/1889, p. 127).
Esse conflito do exército com a monarquia – que começa com o abolicionismo dos militares e evolui para o republicanismo – é precisamente desenhado por Rui, ao evocar os acontecimentos políticos:
“A Regência [da princesa Isabel] entregara-se de corpo e alma à reação escravista, personificada no gabinete Cotegipe. Dera-lhe carta branca a todas as medidas de caráter mais acentuadamente antiabolicionista. Facultara-lhe autoridade absoluta, para aniquilar o direito de reunião na capital do império, converter a polícia do Rio de Janeiro em acessório das fazendas, por a preço, em Campos, a delação venal contra os amigos dos cativos, reescravizar por um aviso treze mil homens, tentar o aviltamento do exército brasileiro, arremessando-o em matilhas de sangue contra os escravos pacificamente esparsos nas serranias paulistas à busca da liberdade, e sufocar, assim no espírito dos nossos soldados, como no dos nossos marinheiros, o impulso, que fazia deles, nesta cidade, a legião militante do abolicionismo” (op. cit., 22/03/1889, p. 150).
E quando o professor Moreira Pinto é excluído da Escola Militar por mencionar os crimes da monarquia francesa – a qual pertencia o príncipe consorte, conde D’Eu – Rui Barbosa, depois de reafirmar o passado sangrento dos antepassados do pretendente francês ao nosso trono, lembra os crimes da dinastia de Bragança, a qual pertencia D. Pedro II, em especial os crimes do pai do atual imperador:
“Prevenimo-nos, pois, observando o segredo mais religioso quanto aos atos de dobrez, tirania e atrocidade sanguinária de Pedro I.° em conspirar contra a independência proclamada; em cobrir de honras o oficial, que, em 1823, no Pará, fuzilou, a descargas de mosquetaria, 257 brasileiros, encerrados, sem crime, nem processo, no porão do navio Palhaço; em dirigir, das janelas do paço, a violência de 12 de novembro contra a constituinte; em esmagar a liberdade de imprensa; em criar, no Batalhão do Imperador, com primazia sobre o exército, uma guarda pretoriana, que se quer hoje reviver sob outra forma; em suspender por dois anos o governo constitucional no Brasil; em expedir, de 1824 a 1829, os célebres quatorze decretos, que romperam as garantias legais, e entregaram a nação às comissões militares, sem lei, nem regimento; em mandar processar, verbal e sumariamente, sob acusações de pena capital, para os assassinar, depois, judiciariamente, quatorze patriotas, no movimento de 1824; em mutilar e salgar o corpo de Ratcliff; em se rodear de um gabinete secreto, onde lacaios seus, como o Chalaça, eram promovidos a secretários privados; em dignificar com os mais altos títulos de nobreza as suas concubinas graduadas; em absorver para a casa imperial uma dotação de mil contos num orçamento de seis mil e oitocentos de renda, com dois mil e seiscentos de déficit; em multiplicar medidas, para cujo caráter truculento Bernardo Pereira de Vasconcelos, em 1829, não achava equivalência ‘no mundo’, e desenvolver um sistema de administração, que Holanda Cavalcanti averbou de ‘infame despotismo’.
“Se as misérias da dinastia francesa no século dezasseis estão, ainda hoje, protegidas pelo respeito à presença do seu ilustre descendente [o conde D’Eu], em país estrangeiro, — como não o hão de estar, em seu próprio país, as da dinastia brasileira no século dezanove, as de ontem, as de hoje… as de amanhã?
“Silêncio, pois, à história!” (op. cit., 25/03/1889, pp. 186-188, itálicos no original).
A afirmação do caráter da Abolição é a ponte ideológica que aproxima Rui do Exército – e da República:
“Repitamos, pois: a abolição é uma vitória popular, cujos instrumentos foram o escravo e o exército brasileiro” (op. cit., 03/04/1889, p. 282, grifo nosso).
A partir dessa constatação é que a posição de Rui torna-se inconciliável com a monarquia. Mas essa inconciliabilidade acompanha o ataque da monarquia ao Exército, do qual ele se torna, também, um defensor, pois as tropas representam, para ele, o povo e a pátria:
“O contingente militar, que foi atirado a monte para aquelas paragens, entre o material sobre que se têm de levantar os emprestados e serôdios louros daquela repartição, não tem merecido aos servos de el-rei, por cujo instrumento se põe e dispõe da existência das praças briosas do nosso exército à mercê dos caprichos do poder, maior consideração do que se se tratasse de animais inutilizados pelo trabalho, lazarados e daninhos, que o lavrador, pago do seu desembolso, lança ao abandono, por não saber outro meio de os destruir” (op. cit., 10/04/1889, p. 371).
Este “sincero monarquista” jamais foge a considerar a realidade – em especial as ideias que têm origem na luta política:
“… A reação republicana contra a monarquia procede, direta e beneficamente, da reação monárquica contra as leis.
“Não é verdade que a ideia de república, entre nós, nascesse da imaginação dos moços, ou do despeito dos contrariados. Sua origem está neste vasto reservatório de cóleras populares, que o desgoverno público enche, há cinquenta anos, solapando as instituições constitucionais pela prática habitual do abuso. A história das duas primeiras gerações da dinastia reinante resume-se num conflito contínuo entre a dominação do arbítrio protegido nas alturas do poder e a majestade do direito consagrado nos códigos escritos” (op. cit., 14/03/1889, p. 65).
E, no famoso artigo Liberdade, ou República, em que ele, mais uma vez, se declara monarquista – mas defensor da liberdade de propaganda para os republicanos, atacada pela monarquia:
“Sustentamos que a propaganda republicana é legítima, legal, benfazeja, e gloriosa. Sua legitimidade nasce da pureza do seu patriotismo: sua legalidade, da natureza de uma constituição, que se declara a si mesma reformável, em todas as suas instituições, pela soberania nacional: sua utilidade, da ação reconstituinte, que as lutas ardentes pela democracia vêm exercer numa sociedade apodrecida pela inércia: sua glória, da filiação, que a liga, pelo entusiasmo, aos magníficos modelos contemporâneos desse regímen peculiarmente americano.
“Se não suporta o contacto destas opiniões, o embate destes movimentos, a monarquia não é digna de existir” (op. cit., 17/03/1889, p. 90).
Rui não é, ao contrário da lenda (em geral, de origem jurídica), um romântico, mas, sempre, um político prático, como mostrou em toda a sua vida, tanto no que se refere à monarquia, quanto no que se refere à república:
“No fundo das causas mais desinteressadas há sempre interesses. Sem eles não se rege a terra. Querer fazer do grêmio republicano um cenáculo de evangelistas sem o mínimo vínculo com as abominações do mundo; impor à república a exigência de se librar em um ideal de transparência absoluta como o éter só atravessado pela irradiação sidérea, seria fazer romance, poesia, ou namoro, se quiserem: mas não política” (op. cit., 21/03/1889, p. 142-143).
Aqui, para tornar mais explícita a concepção histórica de Rui, vale a pena transcrever um trecho de sua polêmica com o jornal republicano Gazeta:
“Se a república necessita de deturpar a história, para se justificar, a república é uma aspiração desonesta: do mesmo modo como a monarquia, se precisasse de abastardar a história, como se pretende, para resistir à revolução, seria um regímen perdido. Não há dois modos de escrever a história; há um só, o da verdade, para monarquistas e republicanos, se a consciência é o móvel de uns e outros. A monarquia corrompe-se, e arruína-se, quando não sabe encarar em rosto a lição dos seus erros, buscando nela a reconstituição de suas forças e a reabilitação do seu crédito. E eis aqui por que o Diário é um monarquista exigente, ao passo que a Gazeta é um mau republicano” (op. cit., 05/04/1889, p. 304).
Na edição do Diário de Notícias do dia seguinte, Rui Barbosa faria uma sintética advertência – ou previsão:
“Não estamos longe da república, é certo, se a monarquia continua a degenerar, em vez de se regenerar” (op. cit., p. 330, grifo nosso).
Nesse início de abril de 1889, as convicções de Rui Barbosa parecem fletir em direção à República, ainda que mantenha, conscientemente, seu credo liberal, portanto, monarquista:
“Há uma impressão geral de que os dias do antigo regímen estão contados. Pela democratização da monarquia, ou pela república, a emancipação do país vai suceder à emancipação dos escravos. Enquanto os ministros se embevecem, e contratam; enquanto os príncipes se distraem, e se vingam: enquanto os parasitas roem, e prosperam, o espírito público rapidamente se dispõe à transformação, que nos há de adaptar ao meio americano” (op. cit., 07/04/1889, p. 333).
3
A crise econômica de 1864/1865 – conhecida como “Crise do Souto”, por ter como epicentro financeiro a Casa Souto, o banco do português Antonio José Alves Souto – foi o dobre de finados do escravismo, e, portanto, da monarquia.
Já na época, alguns, como Mauá, perceberam que aquela era uma crise da economia escravista, que necessitava ser superada ou levaria de roldão as instituições monárquicas.
Realmente, as relações capitalistas que se desenvolviam no país eram incompatíveis com as relações escravistas, que eram a base econômica do Império. Essa contradição, antagônica, atinge uma agudização extrema na década de 80 do século XIX:
“Trabalhando no sentido de liquidar com a escravatura, havia também aparecido em cena, incipiente mas empreendedor, o capitalismo brasileiro ou, mais propriamente, o capital industrial. Compreende-se que este necessitava ter à sua disposição um mercado de trabalho livre.
“Em 1882, através dos Arquivos da Exposição da Indústria Nacional, vemos homens de negócios discutir seriamente o abolicionismo. O dr. Luiz Goffredo de Escragnolle Taunay diz, por exemplo: ‘As grandes usinas de transformação industrial não só fabricam melhor e mais barato, como fomentam o desenvolvimento da pequena lavoura e tornam-se (serviço inapreciável entre nós) verdadeiros núcleos de trabalho livre. Daí decorre o papel valiosíssimo que são chamados a desempenhar no período melindroso, para o Brasil, da substituição do trabalho’.” (“Archivos da Exposição da Indústria Nacional”, Tip. Nac., R. J., 1882, pág. 320, cit. por Maurício Vinhas de Queiróz, Uma Garganta e Alguns Níqueis, Aurora, 1947, pp. 21-22).
O movimento republicano (assim como o movimento abolicionista) tem como base, portanto, o desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil, a partir de 1850, ou seja, a partir do fim do tráfico de escravos.
“Em 1877 vemos crescer significativo movimento de industriais, em prol do protecionismo alfandegário. Essa burguesia começa a existir como classe em plano nacional. Começa a ter consciência de si mesma, e faz exigências. Nas ‘Informações sobre o Estado da Indústria Fabril’, publicadas pela seção de Indústria Fabril da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, se levantam os nossos capitalistas contra as teorias liberais da Escola de Manchester (citam J. B. Say e Adam Smith), rotineiramente manejadas em nosso meio para justificar a livre entrada dos produtos ingleses. A essas teorias, contrapõem Thiers e o exemplo norte-americano. Os argumentos revelam sempre acentuado cunho anti-britânico. Mostram os objetivos da política colonial inglesa no mundo. Patenteiam certa arrogância própria dos movimentos jovens: … ‘o Brasil não é hoje apenas um país agrícola, como geralmente se supõe; ele já conta em seu seio diversas indústrias, diversas fábricas’…
“Em 1882, promovem os nossos capitalistas uma ‘Exposição da Indústria Nacional’, afim de dar uma demonstração pública do que eram capazes em matéria de fabricação, e fazer propaganda em favor das suas ideias protecionistas e anti-inglesas. A exposição foi promovida pela ‘Associação Industrial’, ‘fundada por alguns dos nossos mais ativos industriais para promover o adiantamento da indústria nacional e defender os justos interesses desta’. Numa introdução à espécie de catálogo da mostra, lemos, de autoria do engenheiro civil Antonio Augusto Fernandes Pinheiro, o seguinte trecho, que consideramos bastante expressivo da mentalidade de todo esse grupo social:
‘Durante muito tempo foi moda aqui dizer-se que o Brasil devia ser um país essencialmente agrícola… Foi uma chapa por muito repetida e que grande mal nos tem feito… Como essa sentença nos vinha especialmente da Inglaterra ficou logo em moda; a agricultura já ia em progresso e tomando como boa moeda o que era ouro falso, dissemos: — o inglês tem razão. Cada dia melhor se demonstra o vazio daquela fórmula, cada dia a indústria conquista mais terreno e exuberantemente prova que nela poderá em breve o Brasil apoiar-se tanto quanto na sua agricultura. Devemos aproveitarmos a lição que daí tiramos; sujeitemos, dora em diante, ao menos a uma cautelosa quarentena os conselhos de nossos bons amigos de Inglaterra, e se aquela lição ainda não nos bastar, aproveitemos as lições alheias, tenhamos sempre em vista o resultado da política da Inglaterra na Índia’” (cf. Maurício Vinhas de Queiróz, op. cit., pp. 44-45).
Em seguida, Maurício Vinhas de Queiróz reproduz as estatísticas industriais referidas por Roberto Simonsen para o final do século XIX:
“Entre 1880 e 1884 foram fundadas 150 indústrias no Brasil, com o capital de 58.368:338$000 e de 1885 a 1889 fundaram-se 248 estabelecimentos industriais, com 203.404:521$000 de capital. No último ano da monarquia existiam no país acima de 636 estabelecimentos industriais, com 401.630:600$000 de capital (valor de 1920), correspondendo a cerca de 25.000.000 de libras; empregavam 65.000 cavalos vapor e se utilizavam de 54.169 operários; a produção global estava avaliada em 507.092:537$000. Dos capitais investidos na indústria, 60 por cento estavam no setor têxtil; 15 por cento no da alimentação; 10 por cento no de produtos químicos e análogos; 4 por cento na indústria de madeira; 3,5 por cento na de vestuários e objetos de toucador, 3 por cento na metalurgia” (Roberto Simonsen, Brazil’s Industrial Evolution, Esc. Livre Soc. e Pol., S.P., 1939, pág. 24).
É essa expansão das relações capitalistas que serve de base ao movimento republicano.
4
A crise de 1865 abalou o escravismo – e o Império.
Mas, então, começou a Guerra do Paraguai – e a derrocada do Império foi, aparentemente, adiada. É sintomático que muitos republicanos e abolicionistas jamais tenham simpatizado com o esforço brasileiro no Paraguai. Um exemplo frisante foi Castro Alves.
No entanto, do ponto de vista histórico mais geral, esses brasileiros não tinham razão em suas preocupações. A Guerra do Paraguai acabou por acelerar a Abolição – e, mesmo, a República (v. nosso texto, em 12 capítulos, A República e a formação do caráter nacional).
Um historiador militar – aliás, um general – sublinha fortemente as mudanças no Exército, durante e após a Guerra do Paraguai:
“Um lustro de campanha, durante a qual a mobilização cobrira, em certos períodos, mais de 100 mil homens – homens de todas as províncias, e em particular daquelas onde a massa escrava era mais numerosa, e de todas as origens, particularmente as camadas inferiores -, teria de forjar nova mentalidade no Exército. O acontecimento, sob todos os aspectos, fora demasiado traumatizante e demasiado longo para que deixasse de produzir efeitos consideráveis, tanto mais que tinha antecedentes e significativos. O Exército que surge da guerra com o Paraguai é força nova na vida do país – não será relegado mais a segundo plano, não se conformará com isso, não se conformará com um papel subalterno na vida nacional. Até aí – e é interessante verificar esse aspecto -, fora possível a participação, e nem era vedada, de grandes chefes militares na vida política, fazendo parte das agremiações partidárias em que se repartia a luta parlamentar no Império. Pelas suas origens, Caxias, de tradição indefectivelmente conservadora, será das figuras de prol do partido com que se afina; pelas suas origens, Osório, figura espontaneamente liberal, será dos vultos marcantes do partido contrário. Isso não significa a intromissão do Exército na vida política, e contra isso jamais se levantou voz ponderável, não representava isso nenhum fenômeno ou anomalia, não se discutiu nunca o problema, nem se propôs impedimentos ou se ergueu protesto, ao tempo. Isso não tinha importância – porque o Exército não tinha importância.
“Depois da guerra com o Paraguai, entretanto, o cenário fica mudado inteiramente. Na proporção do envolvimento de cada figura ilustre de chefe militar na vida política existia o fato ou a possibilidade de envolvimento do Exército. E o Exército, agora, tinha importância. É curioso que a tese, evidentemente falaciosa, de que o lugar do militar é no quartel, de que a força militar deve ser muda, de que os seus elementos devem apenas cuidar de seus afazeres profissionais, como autômatos, não foi levantada até aquela fase” (Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Editora Expressão Popular, 2ª edição, 2010, pp. 180-181).
Até a Guerra do Paraguai, o efetivo do Exército era insignificante em relação ao nosso território. No momento da invasão paraguaia, o exército de Solano López era cinco vezes maior que o nosso.
A monarquia se sustenta, militarmente, com base na Marinha, em tropas mercenárias e na Guarda Nacional – uma coleção de milícias provinciais, fundada por Feijó na época da Regência.
A guerra com o Paraguai modifica completamente esse quadro. Foi necessário constituir um grande exército, não só em número de efetivos, mas em chefes militares.
Há, então, uma alteração social – e uma alteração social qualitativa – na composição do Exército. Como registra um trabalho acadêmico:
“O Exército brasileiro era uma instituição de Estado com portas muito diferentes das tradicionais da elite política: para ela dirigiam-se pessoas de menores recursos em busca de educação e ascensão social, nela se concentrava a maioria absoluta da burocracia proletária do Império, seu oficialato era composto por indivíduos que provinham de famílias de rendas modestas, normalmente militares. Daí que mesmo seus oficiais de alta patente sentiam-se representantes da classe média brasileira – de certa forma, o eram. Isso compreendido, é possível traçar paralelos mais claros entre o crescimento das reivindicações militares e o crescimento dos discursos da geração de 1870, que também entendia-se como classe média excluída do sistema” (cf. Bruno Veçozzi Regasson, O liberalismo de Rui Barbosa entre o Império e a República, UFSC, 2021, p. 104).
Além disso, “essa composição seria afetada também pelo ingresso de libertos e de escravos, em grande número: a maioria da tropa regular que combateu no exterior era constituída por negros; depois de carregar o fardo do trabalho, carregariam o fardo da guerra. Mas voltariam ao país com novo espírito, com capacidade muito mais ampla de analisar a sociedade escravista brasileira” (Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 183).
É nesse contexto – melhor dizendo, nessa situação – que a figura do marechal Deodoro da Fonseca, depois tão injuriada, aparece como líder do Exército. Em outro texto, abordamos as deturpações históricas em torno da Proclamação da República e dos republicanos – em especial, dos militares (v. HP 14/01/2015, O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores).
Aqui, podemos, pois, ser mais resumidos.
Deodoro, alagoano e mestiço, tinha imenso prestígio, obtido por atos de bravura no Paraguai, onde lutou, com cinco irmãos (dois morreram na batalha de Curupaiti, outro morreu em Itororó, batalha na qual o próprio Deodoro foi gravemente ferido). Referindo-se à sua ascensão, sempre ou quase sempre por atos de bravura, disse ele uma vez: “só tive um protetor: Solano López. Devo a ele, que provocou a guerra do Paraguai, a minha carreira”.
Em 1879 – portanto, 10 anos antes da Proclamação da República – devido ao conflito entre o comandante de armas da Bahia, brigadeiro Barros Falcão, e o presidente da província, Deodoro é nomeado para substituir o comandante. Apesar de pertencer ao partido conservador, já nessa época Deodoro mostra-se irritado com a monarquia. Da Bahia, escreve ao ministro da Guerra, o liberal Manuel Luís Osório, marechal e marquês do Herval: “Não passo de um verdadeiro comandante superior de Guarda Nacional da roça”.
Não pretendemos, aqui, historiar as “questões militares” do Segundo Reinado, nem mesmo a intervenção de Deodoro em relação ao seu subordinado no Rio Grande do Sul, tenente-coronel Sena Madureira. Estes episódios são bastante conhecidos, para que necessitem ser recontados.
No entanto, eles demonstram que a suposta amizade de Deodoro com o imperador é uma lenda cujo objetivo é rebaixar a República a um acontecimento fortuito e sem importância.
Vejamos o desfecho das “questões militares”, que, em última instância, decidiram o destino político da monarquia:
“A Questão Militar, nos seus aspectos formais, foi encerrada com solução que deixou totalmente desprestigiado o gabinete Cotegipe, que só viria a cair em março de 1888, solução longa e asperamente debatida no Senado. A doença de que era mero sintoma, porém, persistiu no seu processo natural. Quem via o problema na sua exterioridade, supunha-o simples questão disciplinar, e ainda hoje há quem o veja assim. Mas se assim fosse, teria sido resolvida depressa, e bem. Quando os regulamentos e as leis e as normas e os dispositivos escritos não alcançam, entretanto, debelar o ímpeto dos que se levantam é porque já não correspondem a uma situação real, já foram superados nas suas vigências. A questão era política e não disciplinar. Denunciava, no seu vulto, a gravidade da situação que o país atravessava e, nela, a deterioração das instituições” (Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 195).
Mais importante – para os objetivos deste ensaio – do que historiar os casos de Sena Madureira, Cunha Matos, etc., é essa avaliação geral do fundo político que se expressava nessas questões supostamente disciplinares.
Da mesma forma, e agora em relação aos fatos, é a consequência imediata dessas questões: a fundação do Clube Militar, em 26 de junho de 1887, para a presidência do qual foi eleito Deodoro da Fonseca.
No Clube Militar, o capitão Serzedelo Correia apresentou Deodoro como candidato ao Senado – obviamente, candidato contra a monarquia.
Então, o major Benjamin Constant, vice-presidente do Clube, lente da Escola Militar e republicano assumido, tomou a palavra:
“Sou, em princípio, a favor da proposta. Mas acho que é necessário ouvir- se, primeiro, o marechal Deodoro, sobre as ideias que atualmente mais agitam o espírito público. Por exemplo: as da abolição, da autonomia das províncias, do casamento civil, da separação da Igreja e do Estado, da secularização dos cemitérios. Uma vez que esta candidatura não deve ter espírito partidário, deve fundar-se no interesse coletivo e no exame de problemas tão abandonados. Até hoje, nunca votei. Mas estou disposto a exercer pela primeira vez esse direito, sufragando um candidato que aceite o programa contido nas ideias que apontei”.
A resposta de Deodoro é sucinta – e sintética:
“Não é de hoje, mas de há muitos anos, que sou adepto das ideias manifestadas pelo major dr. Benjamin Constant”.
A primeira entidade – após o Clube Militar – a apoiar a candidatura de Deodoro ao Senado é a Confederação Abolicionista. Em seguida, os republicanos apoiam o marechal. Ambos, abolicionistas e republicanos, reconhecem o marechal como representante de suas ideias – ou de sua causa.
Deodoro não pretendia ser – e não foi – eleito. Como mostrou Taunay, em O Senado do Império, as eleições para o senado vitalício da monarquia eram tão antidemocráticas que era possível eleger um senador com 10 votos – e a escolha final, a partir de uma lista tríplice, era, sempre, do imperador.
No entanto, esta “anticandidatura” de Deodoro teve profunda repercussão no povo – que, quase todo, não votava – e no Exército.
Ainda mais pelo discurso de agradecimento, no qual Deodoro disse:
“Estou profundamente convencido de que a pátria não poderá atingir os gloriosos destinos a que está fadada enquanto tiver em seu seio a mancha da escravidão!”
Era uma declaração de guerra à monarquia, já em 1887.
No mesmo ano, em outubro, reunidos no Clube Militar, sob a presidência de Deodoro, os militares decidem recusar-se a perseguir os escravos que se libertam das fazendas.
A rigor, a Abolição está realizada. Desta decisão até a Lei Áurea, distam apenas sete meses de insurreição escravista. Esta é a razão pela qual Rui Barbosa atribui, e com justiça, a Abolição aos escravos e ao Exército.
Esta, também, é a razão pela qual Rui inclui a Abolição no processo geral de queda do Império. Seria longo – e fastidioso – repetir, aqui, a série de incidentes que preenchem o período entre a Abolição e a República. Preferimos, assim, reproduzir a síntese de Nelson Werneck Sodré:
“Os episódios do 15 de novembro, assim, não foram mais do que o coroamento de longo processo. A República não teve nada de acidental; muito ao contrário, resultou de desenvolvimento progressivo de condições que, no penúltimo decênio do século, tinham se agravado consideravelmente. Um dos aspectos mais sérios desse agravamento estava, sem dúvida, no fato de não contar a monarquia com a força armada, para defendê-la. Ao lado do povo, na Abolição e na República, essa força armada refletia os anseios de mudança, esposava os novos ideais, defendia-os ardentemente. Nem teve o positivismo, que tão largamente influiu no grupo que se formava na Escola Militar, o papel causal que lhe tem sido atribuído. Conquanto fosse enorme o prestígio de Benjamin Constant, e, realmente, a doutrina de Comte, penetrando por via da matemática, influísse no pensamento dos cadetes e em determinados meios civis, ajustando-se bem aos reclamos democráticos daquela fase, sua influência foi apenas parcial e reduzida. A origem de classe da oficialidade, esta sim, explicaria as atitudes tomadas, face aos acontecimentos, pelos militares. O positivismo, permitindo-lhes acomodar os anseios libertários com todo um conjunto de valores éticos ligados ao passado, e como tais consagrados, foi um dos veículos propícios. Nada mais do que isso. Mesmo porque a insatisfação era generalizada, não abrangia apenas aqueles elementos jovens que, nos bancos da Escola Militar, recebiam os ensinamentos de Benjamin. Nem seria este um positivista ortodoxo. E, salvo em alguns sinais exteriores, a doutrina pouco influiria nas instituições novas” (Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, ed. cit., pp. 207-208).
Análise que é inteiramente coerente com a ordem do dia do Ajudante-General do Exército, Floriano Peixoto, divulgada 14 dias após a Proclamação da República:
“Exultando do mais vivo contentamento, cumpro hoje o dever de levar ao conhecimento do bravo Exército brasileiro que, desde o dia 15 do mês andante, acha-se o torrão sagrado da pátria sob a forma – república federativa. Meu contentamento é tanto maior quanto, com brilho que jamais se apagará das páginas da história de todo o mundo, ficou patente que ao Exército e à Armada brasileira, cujo patriotismo tantas vezes provou-se nos campos de batalha em meio das lutas mais renhidas em defesa da honra da nação – e ao povo se deve não só o êxito da empresa, como também a maneira altamente digna e honrosa por que ela foi alcançada”.
De certa forma, essa ordem do dia confirmava a previsão de Silva Jardim, ainda em agosto de 1888:
“Se a revolução abolicionista fez-se nos quilombos e nas fazendas, a revolução política precisa ser feita nas ruas, e em torno dos palácios do Imperante e de seus ministros… Nada pode dispensar, portanto, um movimento francamente revolucionário…”.
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