Com a perseguição política à atleta Carol Solberg, surgiu, agora, na berlinda, o cripto-bolsonarismo.
Ora, dirá a esperta leitora, se surgiu, deixou de ser “cripto” – que é o prefixo grego para “escondido”, “oculto”.
A leitora terá razão, mas apenas em parte – ou seja, naquela parte que é a essência da questão.
Pois o subprocurador Wagner Vieira Dantas, que denunciou Carol ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), pelo crime, ou delito, de dizer “fora Bolsonaro” em uma entrevista ao SporTV, continua afirmando que “eu comungo da mesma opinião política [de Carol]. Mas nós temos que saber separar as coisas”.
Para legitimar – ou tentar legitimar – o que é uma reles perseguição, o subprocurador apresenta suas publicações em redes sociais e até foto com máscara, aliás, ridícula, onde está escrito “fora Bolsonaro”.
Infelizmente, esse tipo de ostentação – de resto, própria de rastaqueras – não apaga (muito menos absolve) o ato do subprocurador ao tentar submeter Carol Solberg a uma inquisição, simplesmente por exercer seu direito constitucional à liberdade de expressão.
Mesmo que o subprocurador tivesse razão quanto ao Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que, segundo ele, Carol teria infringido, é claro que o CBJD – ou qualquer legislação ordinária – não poderia estar acima da Constituição.
Mas nem nisso o subprocurador tem razão. Aliás, ele mesmo declarou: “eu posso estar errado, mas na minha concepção, no meu juízo de valor pessoal, acho que ali tem um ato indisciplinar”.
O problema, portanto, não é a lei, mas o “juízo de valor pessoal” do subprocurador.
Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que o Código Brasileiro de Justiça Desportiva não pode suspender a Constituição. As manifestações políticas de um subprocurador – isto é, um membro do Ministério Público – são muito mais discutíveis do que aquelas de uma atleta, de acordo com a própria Constituição.
Sobretudo quando, segundo o subprocurador, ele tem de separar a sua carreira daquilo que pensa (será que pensa?) que é o certo para o Brasil.
Já mostraremos em que consiste a ética exibida pelo subprocurador. Por agora, basta uma observação do ex-jogador Casagrande: quantos atletas que elogiaram Bolsonaro foram punidos – ou foram denunciados ao STJD por elogiar Bolsonaro?
Quantos atletas, que se manifestaram a favor de Bolsonaro, o subprocurador Wagner Vieira Dantas tentou arrastar para o pelourinho?
Então, se ninguém falou em punir atletas que se manifestaram por Bolsonaro, ninguém pode ser punido por se manifestar contra Bolsonaro.
Trata-se de um critério básico de justiça, pois justiça que vale apenas para um lado não é justiça. Pelo contrário, é odiosa injustiça, é perseguição.
O subprocurador, conhecido por dizer na Internet que Lula está sendo perseguido por Moro e pela Operação Lava Jato, não acha, entretanto, a mesma coisa em relação a Carol Solberg.
Então, temos aqui uma amostra do que é um cripto-bolsonarista. Mas, vamos devagar.
MÃE
Carol Solberg é filha de Isabel, grande jogadora de vôlei da nossa Seleção, que, em janeiro deste ano, publicou carta-aberta, denunciando a devastação bolsonarista na cultura:
“Resolvi escrever essa carta aberta, não para falar de esporte, mas para falar da cultura, porque acredito que só pude ser a jogadora que fui e a pessoa que sou graças aos filmes que vi, aos livros que li, às músicas que ouvi, às histórias que minha avó me contava. (…) depois de um ano de governo Bolsonaro, preciso expressar meu horror com o que tem acontecido com a cultura.
“Essa carta é só pra dizer que eu me sinto muito ofendida, senhor Bolsonaro. Não sou uma intelectual, sou uma cidadã brasileira que acredita que a cultura é essencial para qualquer pessoa. Ela só existe ser for plural, em todas as formas de expressão. Por meio dela, formamos a nossa identidade. (…) Não aguento mais assistir a tantos absurdos calada. Vocês estão ofendendo uma grande parcela do povo brasileiro. (…) Compreendi, vivendo no esporte, o quanto é importante ser democrático. Inspire-se no esporte, senhor presidente! (…) Governe democraticamente, e não apenas para quem pensa como o senhor” (v. HP 17/01/2020, Isabel, da seleção de vôlei, alerta para o “horror que Bolsonaro representa para a cultura”).
É óbvia a relação entre a atual tentativa de perseguir a filha de Isabel e a carta desta, que provocou, segundo fontes absolutamente seguras, alguns despejos histéricos entre cartolas do vôlei que se tornaram cortesãos de Bolsonaro (v. a interessante matéria de Maria Eduarda Cardim e Maíra Nunes, do Correio Braziliense, Caso Carol Solberg: Até onde a CBV pode limitar o discurso político de atletas?).
Porém, Carol Solberg não está sendo perseguida apenas em função das posições de sua mãe. Carol tem posições próprias – no que, a seguir o conhecido ditado, ela não degenera.
FILHA
Vejamos as razões apresentadas por Carol, para pronunciar “fora Bolsonaro”:
“… não planejei nada, foi totalmente espontâneo naquele momento. Meu grito foi pelo Pantanal que está em chamas em sua maior queimada já registrada e continua a arder sem nenhum plano do governo. Pela Amazônia, que registra recordes de focos de incêndios. Pela política covarde contra os povos indígenas. Por acreditar que tantas mortes poderiam ter sido evitadas durante a atual pandemia se não houvesse descaso e falta de respeito à ciência. Por ver um governo com desprezo total pela educação e a cultura. Por ver cada dia mais os negros sendo assassinados e sem as mesmas oportunidades. Por termos um presidente que tem coragem de dizer que ‘o racismo é algo raro no Brasil’. São muitos absurdos e mentiras que nos acostumamos a ouvir, dia após dia. Não posso entrar em quadra como se isso tudo me fosse alheio. Falei porque acredito na voz de cada um de nós.
“Esse papo de que não se deve misturar esporte e política não dá mais. Numa democracia, todas as pessoas podem e devem expressar suas opiniões sobre qualquer assunto. Todo mundo tem o direito de se manifestar” (v. ‘Esse papo de que não se deve misturar esporte e política não dá mais’, diz CarolSolberg, OESP 25/09/2020).
E, sobre a parcialidade pró-bolsonarista, que foi mencionada por Casagrande:
OESP: Por que você acha que a CBV [Confederação Brasileira de Vôlei] teve um tratamento diferente nesse caso em comparação quando o Wallace e o Maurício declararam apoio ao Bolsonaro em 2018?
CAROL SOLBERG: Acho que eles foram sim, tendenciosos. A pergunta é essa: por que numa manifestação a favor do presidente eles agem de uma forma e em uma contra eles agem tão diferente? Não dá para entender isso.
HONRA
Em 1968, portanto, há 52 anos, no segundo dia das Olimpíadas do México, os atletas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos, que subiram ao pódio para receber as medalhas de ouro e de bronze na corrida de 200 metros livres, ao ouvir o Hino dos EUA, fizeram a saudação antirracista – punho fechado e erguido com luva preta – dos Panteras Negras.
Foram expulsos da delegação norte-americana e ferozmente atacados nos EUA.
O segundo colocado na mesma prova, o australiano (e branco) Peter Norman, que recebera a medalha de prata, apoiou o protesto de Tommie Smith e John Carlos – o que provocou anos de perseguição a ele por parte dos racistas da Austrália, até a morte, quando seu féretro foi carregado pelos dois companheiros negros no pódio da Olimpíada de 1968.
Todo mundo – sobretudo quem se interessa por esporte – sabe, hoje, o que fizeram Tommie Smith, Peter Norman e John Carlos.
Eles honraram sua condição de atletas e seres humanos – que não podiam ficar indiferentes a uma aberração fascista.
Mas quem se lembra dos que perseguiram Tommie Smith, Peter Norman e John Carlos?
Em 1967, Muhammad Ali teve cassado seu título de campeão mundial de boxe dos pesos-pesados – e proibido de lutar por quase quatro anos – por se recusar a fazer parte da invasão genocida ao Vietnã (“Por que me pedem para vestir um uniforme e me deslocar 10.000 milhas de casa para jogar bombas e balas no povo marrom [brown] do Vietnã, enquanto os chamados negros de Louisville são tratados como cachorros, e têm negados os mais elementares direitos humanos? Não, não vou viajar 10.000 milhas para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre para que simplesmente continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor mais escura mundo afora. É hora de tais males chegarem ao fim”).
Ali honrou sua condição de atleta, isto é, ser humano – pois é preciso ser humano para ser atleta, algo tão óbvio que somente os tempos atuais podem justificar que coloquemos a questão desta forma.
Quem se lembra de quem cassou o título de Ali – ou de quem, em cada Estado dos EUA, negou licença para que o magnífico Ali praticasse o boxe?
O caso de Carol Solberg é da mesma ordem – da mesma classe de honra.
Ela poderia ficar indiferente ao Pantanal em chamas, à Amazônia incendiada, à covardia contra os índios, aos – agora quase 150 mil – mortos pela pandemia de COVID-19, ao descaso e falta de respeito à ciência, ao desprezo total pela educação e a cultura, ao aumento dos assassinatos de negros.
Ela poderia ignorar os absurdos e mentiras de Bolsonaro.
Mas seria negar a si própria – inclusive ao esporte que pratica.
“Falei”, disse ela, “porque acredito na voz de cada um de nós”.
CONSTITUIÇÃO E DIREITO
O subprocurador Wagner Vieira Dantas quer enquadrar Carol Solberg em dois artigos do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD): o artigo 191 (“deixar de cumprir, ou dificultar o cumprimento de regulamento, geral ou especial, de competição”) e o artigo 258 (“assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras deste Código à atitude antidesportiva”) – v. a íntegra do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.
Nenhum dos dois artigos é aplicável a Carol Solberg e seu “fora Bolsonaro”.
Desde quando uma declaração, em uma entrevista a um canal de TV, é um “descumprimento” ou “dificultação de cumprimento” a um “regulamento, geral ou especial, de competição”?
Desde quando manifestar posição a favor dos interesses do país e da sociedade é uma “conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva” equiparável a uma “atitude antidesportiva”?
Mas o bolsonarismo – e o cripto-bolsonarismo do subprocurador – pode considerar que se trata da manifestação de uma determinada posição política, e, apesar de Carol não expressar apoio a qualquer partido, nem pertencer a algum deles, de uma posição partidária.
Mas, se é assim, por que não propuseram a punição dos atletas que se manifestaram a favor de Bolsonaro?
Nas palavras de Casagrande:
“Eu dei todo o apoio a Carol porque ela se manifestou. Tem livre expressão. Isso é democracia. Agora, quando os jogadores masculinos de vôlei fizeram gestinho de arma e número do candidato, hoje presidente, não aconteceu nada. Então, a Carol tem o meu total apoio. Não estou falando nem de direita nem de esquerda, é liberdade de expressão para todo mundo. Agora, se tiver uma punição ou advertência, tem que ser para os dois lados.”
Na sua nota contra Carol, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) diz que “tomará todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem (sic) a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados”.
Resta saber em que a entrevista de Carol Solberg “denegriu” (sic) a imagem do vôlei.
Pelo contrário.
O apresentador Felipe Andreoli, da TV Globo, resumiu bem a questão, no “Globo Esporte”:
“Segundo o regulamento, é proibido falas que denigram a imagem da CBV e de seus patrocinadores. Engraçado, é a mesma CBV que teve Ary Graça renunciando por causa de corrupção e Carlos Nuzman preso pela Polícia Federal em 2017. Esses não sujam a imagem da entidade”.
Depois de Nuzman, que tinha entre seus contratados – ilegalmente, porque pago com dinheiro público – o atual ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, a atitude em relação a Carol poderia redimir o establishment do vôlei.
Infelizmente, até agora, esse establishment está preferindo o caminho oposto.
CARLOS LOPES
Parabéns, excelente.
O artigo deu ao episódio sua devida dimensão.